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Mostra traz uma seleção de 40 anos de atividade da importante produção em xilogravura da gaúcha Anico Herskovits. A individual destaca a visualidade urbana e a paisagem natural que caracterizam essa obra singular.
A obra de Anico Herskovits, desde seus começos, na metade dos anos 1970, se nutre de original simbiose entre a tradição da técnica milenar da xilogravura e a contemporaneidade da temática urbana. Tudo isso surge recortado por um olhar que incorpora vocabulário visual vindo também da fotografia. Embora nunca se sirva da foto como referência direta e sempre do desenho de observação, é inegável que a rigorosa seleção do que desenha e de como articula essas figuras na superfície do papel adota a soma de fragmentos com que a fotografia organiza nossa percepção do mundo.
Esse constante diálogo entre processos de criação que revigoram práticas antigas está na obra que abre o percurso expositivo desta mostra. “Pantanal: Terra de Sonhos”, extensa e idílica imagem panorâmica, recria em detalhes deliciosos a paisagem natural do pantanal mato-grossense, com toda fauna e flora características do lugar. Anico retoma, aí, um gênero praticado pelos artistas viajantes que, especialmente a partir do século 17 e até o século 19, retrataram o Novo Mundo para apresentá-lo à Europa. Paisagens panorâmicas também caracterizaram, na mesma época, a gravura japonesa. Ainda, nos primórdios da fotografia, foi habitual a documentação da paisagem estendida em 180 e até em 360 graus.
O registro à moda antiga do Pantanal nos faz mergulhar na sensação de maravilhamento que despertavam nos europeus as imagens de uma terra quase intocada pela denominada civilização. É um relato visual de irremediável nostalgia do que se perde a cada avanço do suposto progresso feito à custa do equilíbrio ambiental. A pouca presença de seres humanos ao longo de toda cena sublinha, em tom de fábula e ironia, o único modo daquele paraíso existir.
A mostra, integrada também pela gravura “O Circo”, realizada em módulos que se articulam em uma grande e sedutora imagem, está costurada de sutilezas de um trabalho que só na aparência é inocente. Cuidado: é uma estratégia. Ela fica bem visível na série “Construção”, ácida metáfora que assinala desde o título seu ponto de partida: a poesia “O Operário em Construção” de Vinicius de Moraes e a música “Construção”, de Chico Buarque. A geometria dos prédios sendo erguidos pelos operários trata das desigualdades da estrutura social brasileira, sem escorregar jamais nas facilidades do panfleto e sempre alicerçada por um domínio técnico de alto nível.
As saborosas anotações de cenas urbanas, que constituem outro segmento importante do conjunto exposto, revelam o denominador comum de tudo que a artista produz: seja gente ou bicho, paisagem rural ou esquina do centrão da cidade, o tempo todo Anico está tratando de construir uma ode à vida. Por mais humilde e precária que a vida possa ser ou estar. O carroceiro, os cachorros vira-latas, os botecos, os gatos nos muros, a vendinha suburbana e a feira são imemoriais. Por essas não coincidências da pátria em nada mãe gentil, eles espelham os sobreviventes que frequentam as gravuras e também, feitos de (pouca) carne e (muito) osso, o entorno do local da exposição, espraiando-se pela Praça da Sé e daí afora.
Anico Herskovits retrata com compaixão essa humanidade agarrada de unhas e dentes à vida. Miúda e marginal, a população de personagens na madeira e na tinta nos contém e nos define na teimosia do viver. São também eles que podem nos mover para fora de nós e para junto do outro fora de nós. Um movimento cada vez mais vital e urgente.