O livro de Helio Piñón sobre a obra de Paulo Mendes da Rocha constitui uma contribuição excepcional à nossa reflexão crítica sobre a arquitetura moderna brasileira. Guardadas as especificidades, o livro de Piñón se aproxima da leitura de Sophia Telles, ensaísta responsável por recuperar a obra de Paulo Mendes para as novas gerações, então iludidas pelas modas pós-modernistas dos anos 80 (1).
A excepcionalidade se justifica pelo enfoque do autor espanhol, que necessita ser apresentado ao leitor brasileiro apesar de gozar de amplo prestígio na Europa e na América Latina. Professor de projeto da Escola Técnica Superior de Barcelona, Helio Piñón é um arquiteto que combina sua carreira teórica com uma vasta obra de arquitetura, produzida em parceria com Albert Viaplana até recentemente, quando passou a dedicar-se inteiramente aos projetos desenvolvidos no interior do Laboratório de Arquitetura da universidade.
Crítico radical das tendências pós-modernas e militante da retomada dos valores das vanguardas modernas, Piñón encontrou na obra de Paulo Mendes da Rocha mais uma confirmação das suas teses – assim como fez com a obra do argentino Mario Roberto Alvarez, outro título da coleção espanhola à qual pertence o original do qual esta publicação é uma tradução. Para o autor, a produção desses arquitetos demonstra que o projeto moderno não está circunscrito a um tempo histórico passado, mas constitui uma posição que continua a se desenvolver em contraposição a outras concepções que usam do anacronismo como argumento para sua auto-legitimação.
Piñón evita a utilização da obra de Paulo Mendes como mero exemplo e avança ao reconhecer as características específicas do arquiteto em relação ao projeto construtivo brasileiro e à produção moderna internacional. No contexto brasileiro, o arquiteto se distingue por evitar a presença de traços pessoais geniais e por se definir pela ação de um sujeito que expressa através de sua obra um modo de entender a realidade. Assim, além da consistência formal da obra, sua arquitetura pertence à tradição americana fundamentada na relação com a natureza – enquanto a européia estaria mais baseada na relação com a história.
O autor se contrapõe a alguns mal entendidos correntes sobre a arquitetura moderna em São Paulo, em especial ao desmontar a idéia de um "brutalismo" paulista. Em textos anteriores, Piñón se apóia em Alan Colquhuom para desmontar os fundamentos do brutalismo inglês formulados por Reyner Banham, considerando esse um primeiro momento de distorção de princípios modernos por fatores extrínsecos à arquitetura (2). Não poupa a superficialidade de uma crítica mais preocupada em reduzir sua atividade a uma simples identificação de evidências suficientes para enquadrar uma obra em “ismos” pré-estabelecidos pela moda editorial. Assim, nem o uso do material rústico nem a economia e nem a síntese presentes na obra de Paulo Mendes poderiam ser associadas ao brutalismo ou ao minimalismo, pois pertencem a um desenvolvimento intrínseco ao projeto construtivo brasileiro e que necessita de um entendimento de suas implicações no campo da estética para ser plenamente avaliado.
A construção metodológica desse entendimento pode ser identificado em outras publicações do autor (3), que combina uma formação de filosofia (estética) com uma experiência projetual que lhe permite rastrear “por dentro” as razões que engendram a obra comentada. Animado pelas teorias puro-visibilista, Piñón procura no programa, na tectonicidade e na implantação da obra arquitetônica parâmetros que conferem uma “legalidade” à forma.
Piñón insiste que a arquitetura é algo que se frui e que se julga através do olhar – concebido como categoria histórica em contraponto à visão, um sentido natural – fato que pode ser verificado através da publicação de uma série de fotos suas no livro Miradas Intensivas (1999) de sua autoria. Assim, suas fotos são fundamentais para a construção do seu entendimento sobre a obra de Paulo Mendes da Rocha e não mera ilustração de argumentos apostos. Os enquadramentos constroem um olhar moderno, comprometido com os conceitos intrínsecos à obra ali apresentada. Fotos do autor e desenhos de projeto (inclusive de detalhes) são usados para apresentar em profundidade alguns poucos trabalhos, coisa rara em um momento como o atual, onde predomina a superficialidade editorial caracterizada por publicações com imagens cenográficas e desenhos diminutos.
A edição das entrevistas, realizadas por Luiz Espallargas Gimenez, é também uma peça importante do livro. Quem já ouviu Paulo Mendes falar ou leu suas entrevistas transcritas literalmente, sem edição (como a publicada recentemente pela revista Caros Amigos em abril de 2002) sabe que seu discurso é rico de imagens e beira o limite da divagação. Bem conduzidas e editadas, as entrevistas deste livro são econômicas e eficientes, apresentando com clareza as principais idéias e intenções do autor. Junto com a publicação dos projetos, temos instrumentos para construir uma compreensão das intenções e decisões do arquiteto e formarmos um juízo sobre sua obra. Temos aqui um bom exemplo do que pode ser um papel relevante para a crítica de arquitetura, pena que seja raro.
[texto originalmente publicado no Jornal de Resenhas, Folha de S. Paulo, nº 91, 09/11/2002, p 6. Reprodução proibida sem autorização do autor]
notas
1
TELLES, Sophia S. Museu da Escultura, revista AU, n. 32, ano 6, out/nov 1990.
2
PIÑÓN, Helio. Reflexión histórica de la arquitectura moderna, Ediciones Península, Barcelona, 1981; COLQUHOUM, Alan. Arquitectura moderna y cambio histórico, Ed. G. Gili, Barcelona, 1978.
3
PIÑÓN, Helio. El sentido de la arquitectura moderna (1997) e Curso básico de proyetos (1998), ambos da Ediciones UPC, de Barcelona.
sobre o autor
Renato L. S. Anelli é Livre-Docente do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da USP- São Carlos.