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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo analisa a mudança de paradigmas no campo do urbanismo que levou, por um lado, a uma revalorização de questões como a memória e a identidade dos lugares e, por outro, à emergência de intervenções pontuais e elitizantes

english
Sandra M. Ortega analyses the changes on urbanism that led to both the reconsideration about memory and identity, and punctual and elitist interventions

español
Sandra M. Ortega analisa los cambios en el urbanismo que han llevado tanto a una revalirización de la memória e identidad del lugar, como a la aparición de intervenciones puntuales elitistas


how to quote

ORTEGOSA, Sandra Mara. Cidade e memória: do urbanismo “arrasa-quarteirão” à questão do lugar. Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 112.07, Vitruvius, set. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.112/30>.

Desde os anos 60, o tema da memória vem merecendo destaque cada vez maior nos estudos sobre as cidades, numa perspectiva de abordagem que se contrapõe ao pensamento e prática do Movimento Moderno Internacional, especialmente no que se refere ao descaso em relação às características históricas, geográficas e culturais que dão identidade ao lugar. Tal perspectiva vem reavivando o interesse sobre a obra de alguns pensadores, entre os quais Walter Benjamin, que privilegiava a leitura do texto inscrito nas cidades. Para Benjamin, cujo olhar tem-se mostrado uma das chaves de interpretação mais fecundas sobre a sociedade moderna, a memória é constituída de impressão, de experiência e sua importância e significado especial estão no fato de que ela é o que nós retemos e o que nos dá a nossa dimensão de sentido no mundo (2).

A arquitetura e os lugares da cidade constituem o cenário onde nossas lembranças se situam e, na medida em que as paisagens construídas fazem alusão a significados simbólicos, elas estão evocando narrativas relacionadas às nossas vidas. Assim, a maneira como interpretamos nossas experiências no espaço converte-se em nossa realidade e possibilita-nos dar significado ao nosso mundo físico. Com o passar do tempo, uma constelação de signos se estratificam na memória coletiva constituindo uma cidade análoga.

Como ilustra Maria Alice Rezende de Carvalho, “uma praça das grandes manifestações políticas, uma esquina boêmia, um ponto da praia com seu velho pier, um Café centenário, um edifício bisonho que parece ter resistido ao ímpeto destrutivo da moderna linguagem arquitetônica são os fundamentos dessa cidade análoga”, que se repõe insistentemente, mesmo que a cidade real se altere (3). Um dos aspectos fundamentais na vida de uma cidade, portanto, é o conjunto de recordações que dela emergem: a memória urbana é a realidade que marca nossa própria fugacidade na história, ao mesmo tempo em que anuncia a possibilidade de transcendermos nossa temporalidade individual.

Essa segunda dimensão da cidade imprime a determinados espaços físicos que a conformam, a capacidade de falar pelo todo. Assim como podemos encontrar constelações históricas específicas que assumem o caráter de mônadas em relação ao presente, também nas cidades existem determinados lugares cuja compreensão transcende os seus limites pela capacidade de iluminar o todo. São lugares que apresentam uma força de representação simbólica capaz de despertar ilhas de afetividade em seus habitantes e de expressar com particular clareza as relações com o todo, assumindo a condição de espaços-síntese (4). Na visão benjaminiana, cada presente possui uma reserva de passados intactos, sob a forma de constelações históricas específicas, que podem ser resgatadas pelo historiador para delas extrair o genuinamente novo. A decifração das diversas camadas de escritura desse imenso palimpsesto impresso na cidade objetiva a construção de sentido do presente: a promessa do novo situa-se no passado, enquanto produto de um trabalho processual de construção, aberto para o leque de possíveis que ele encerra.

Nestes termos, proteger a memória significa proteger o passado, o presente e o futuro. Cabe a cada presente resgatar o próprio passado, arrebatando-o ao esquecimento e revelando os possíveis futuros que ele comportava. Ao extrair-se o passado do continuum da história, sob a forma de mônada, ele torna possível a legibilidade do todo. É este o sentido exato que Benjamin deu a esse termo referindo-se às Passagens de Paris: um fragmento do real que abre a via a uma interpretação completa do todo (5).

Em A Poética do Espaço, Gaston Bachelard discorre a respeito das imagens que emergem do “fundo poético do espaço da casa”, afirmando que “é exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas como devaneios que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós”. Para ele, “todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa” e sua preciosidade está na proteção que ela oferece ao sonhador, na paz de se poder devanear, permitindo que pensamentos e experiências deste devaneio produzam “valores que marcam o homem em sua profundidade”. Um espaço feliz é um lugar que provoca, pacífica e espontaneamente, uma sensação de acolhimento, instigando a troca e a criação, e despertando uma ligação afetiva em quem nele vive, pela memória que persiste nas pedras, solidificando imagens, identidades e signos (6).

Na visão de Bachelard, a lembrança tem função primordial no espaço, atribuindo-lhe a condição de âncora da memória: “o inconsciente permanece nos locais. As lembranças são imóveis, tanto mais sólidas quanto mais bem espacializadas”. Todos os espaços com os quais estabelecemos uma relação de intimidade adquirem “valores oníricos consoantes”. São justamente as lembranças localizadas na região da intimidade que nos dão o sentido de valorização dos aposentos, praças, ruas, edifícios e paisagens que constituem patrimônios da história da humanidade, de uma determinada sociedade ou das histórias íntimas e individuais. Os devaneios suscitados pelas lembranças convidam-nos à imaginação e provocam transformações nas profundezas do ser. A ausência de possibilidade de devanear gera, ao contrário, o estreitamento da imaginação e a acomodação em relação à realidade. Em outras palavras: a ausência do sonho, do devaneio, impede a construção de utopias. É neste sentido, e não como tentativa de um resgate de um tempo perdido ou de uma cultura já morta, que a preservação da arquitetura e dos ambientes urbanos adquire importância (7).

Numa crítica ao modelo de habitat das grandes cidades modernas, nas quais predomina uma paisagem “oniricamente incompleta” de edifícios verticais e ausência da natureza, Bachelard, reportando-se a Paris, nos diz que lá “não existem casas. Em caixas superpostas vivem os habitantes da grande cidade”. E nessas caixas anônimas, identificadas apenas pelo número da rua e o algarismo do andar, “as peças se amontoam e a tenda de um céu sem horizontes encerra a cidade inteira”. Acresce-se a isso a “falta de cosmicidade da casa das grandes cidades. As casas ali já não estão na natureza. As relações da moradia com o espaço tornam-se artificiais. Tudo é máquina e a vida íntima foge por todos os lados. ‘As ruas são como tubos onde os homens são aspirados’(Max Picard)” (8).

Mais contemporaneamente, Marc Augé, em oposição ao conceito de lugar associado à tradição antropológica de uma cultura localizada no tempo e no espaço, emprega a idéia de não-lugares referindo-se aos espaços destituídos de identidade e história, verdadeiros espaços do anonimato, resultantes do processo de mundialização que vem conformando o que ele chama de uma supermodernidade. No cerne desta abordagem, destaca-se a idéia de que a megalópole segue um princípio de intencionalidade de descaracterização e assepsia em relação ao passado e aos traços de identidade local. Referindo-se ao caráter cada vez mais artificial e museulógico do centro monumental de Paris (onde “mora-se cada vez menos”), Augé identifica o sinal de uma mudança mais geral na França: “a relação com a história que povoa nossas paisagens talvez esteja em vias de estetizar-se e, simultaneamente, dessocializar-se e artificializar-se”. Comparando o centro de Paris com os das cidades francesas mais modestas e até das aldeias, ele afirma que nelas “o centro da cidade é um lugar ativo, realmente. (...) Em intervalos semanais regulares (o domingo e o dia de feira), o centro ‘se anima’, e é uma reclamação freqüentemente dirigida às cidades novas, originárias de projetos de urbanismo ao mesmo tempo tecnicistas e voluntaristas, não oferecerem um equivalente aos lugares de vida produzidos por uma história mais antiga e lenta, onde os itinerários singulares se cruzam, onde se trocam palavras e se esquecem as solidões por um instante, na porta da igreja, da prefeitura, na porta do café, na padaria: o ritmo meio preguiçoso e a atmosfera propícia à conversa da manhã de domingo são sempre uma realidade contemporânea da França provinciana” (9).

A questão da memória e do lugar e a reformulação de paradigmas no campo da arquitetura e do urbanismo

Quando se examina o resultado das diversas experimentações do Movimento Moderno na arquitetura e no urbanismo, o que se destaca é que a herança moderna é marcada por um rastro de intervenções com características homogeneizadoras, que rechaçam qualquer perspectiva de continuidade histórica. A própria noção de modernismo/modernidade e sua identificação com a estratégia de vanguardismo, pressupõem oposição frontal ao passado e induzem o conflito formal permanente. Um dos exemplos mais conhecidos é o Plan Voisin de Paris (1925), de autoria de Le Corbusier, que nega radicalmente a tipologia arquitetônica e urbana preexistente, contrapondo uma ordem estruturante euclidiana, numa das manifestações mais claras de ruptura com a cidade tradicional e sua base figurativa, mediante uma solução calcada nos modelos abstratos.

Em contraposição à concepção modernista de cidade, especialmente na sua vertente haussmann-corbusiana, começa a ganhar espaço na Europa e Estados Unidos a partir dos anos 50, uma série de propostas baseadas numa visão crítica contra a paisagem funcionalista e os espaços desérticos resultantes da estandardização na sociedade de massas, numa perspectiva de revalorização dos elementos vernaculares e tradicionais da cidade. Vale lembrar que o rompimento com o racionalismo funcionalista propugnado pela Carta de Atenas (11) deu-se no interior do próprio CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna). Em 1951, o CIAM VIII, realizado na Inglaterra, teve como tema O coração da cidade: por uma vida mais humana da comunidade. Em 1953, no CIAM IX, realizado na França, manifesta-se uma preocupação central com a questão da identidade dos espaços da cidade. A relação entre a forma física e as necessidades de ordem social e psicológica tornou-se tema do CIAM X, último encontro dos CIAM, realizado em Dubrovnik, em 1955. O grupo responsável pela sua organização, conhecido como Team X, opunha aos esquemas cartesianos derivados do zoneamento da cidade funcional, as categorias mais fenomenológicas de casa, rua, bairro e cidade.

De meados da década de 60 em diante, esta revisão das doutrinas legadas pelo Movimento Internacional Moderno abre espaço para novas formulações: uma produção literária crítica passa a advogar um novo respeito pelas necessidades subjetivas e a redescoberta dos símbolos culturais no ambiente construído. A questão da permanência dos elementos arquitetônicos e dos traçados urbanos, o interesse pelo simbólico e pelo arquetípico, como aspectos de fundamental importância para a memória coletiva e subjetiva, adquirem centralidade, expressando-se politicamente na cidade pelos movimentos sociais engajados na luta pela preservação de lugares significativos.

A visão comunitária de um espaço urbano re-humanizado, preconizada por Camillo Sitte (12) em sua crítica à paisagem moderna de Viena, terá importante repercussão em nossos dias através do clássico “Morte e Vida das Grandes Cidades Norte-americanas”, de Jane Jacobs, publicado em 1961. Jacobs argumentava que os paradigmas mecanicistas e redutivos do urbanismo modernista produziam espaços urbanos fisicamente limpos e ordenados, mas social e espiritualmente mortos; e que, para Le Corbusier e a maior parte dos arquitetos da vanguarda modernista, a rua era vista apenas como uma “fábrica de tráfego”, o que resultou na demolição de diversos bairros para a abertura de vias expressas, implantação de projetos de renovação urbana e outras obras públicas. Em “Tudo que é sólido desmancha no ar – A aventura da modernidade” (13), Marshall Berman relata a destruição do Bronx, onde viveu sua infância, quando Robert Moses, no final dos anos 50 e início dos 60, rasga o bairro ao meio com uma via expressa, desalojando cerca de 60 mil pessoas. Robert Moses, o grande construtor de vias expressas em Nova York durante 40 anos, representou o clímax do modernismo aplicado à cidade (14).

Jacobs, talvez a mais famosa crítica do urbanismo modernista, demonstrou os efeitos destrutivos do planejamento racional centralizado sobre a vida urbana, defendendo a preservação das relações comunitárias e dos espaços urbanos personalizados. Para ela, a resposta à falta de animação e vitalidade das ambiências urbanas resultantes do planejamento funcionalista deveria ser buscada num planejamento na escala humana, no qual os marcos e as referências culturais, e os locais de encontro dariam sustentação às associações intersubjetivas e a um sentido de lugar. A diversidade de pessoas e usos era um de seus princípios cardeais, em contraposição aos usos urbanos segregados pelo zoneamento funcional da cidade.

Esta conclusão é decorrente, em larga medida, de sua própria experiência cotidiana na Hudson Street, onde morava em Nova York, observando a movimentação dos vizinhos e estranhos, cuja diversidade e variados ritmos de tempo-espaço definiam uma característica “ecologia e fenomenologia das calçadas” (15). Do ponto de vista político, ela advogou um método participativo que preconizava uma comunicação direta entre a vida cotidiana e a prática do planejamento.

Como ressalta Berman, “a ação e o pensamento de Jacobs anunciaram uma grande onda de ativismo comunitário e uma grande irrupção de ativistas em todas as dimensões da vida política” (16). A partir de então, a luta pela preservação de lugares significativos para a população avançou nas principais cidades do mundo por uma década ou mais, conquistando alguns resultados importantes: planos de vias expressas foram derrubados, projetos de renovação urbana foram rejeitados ou redefinidos, áreas históricas foram preservadas, ruas foram recuperadas para usos mais nobres que o tráfego exclusivo de veículos.

Neste quadro, o plano de preservação e reabilitação do centro histórico de Bolonha, implantado a partir de 1969, aparece como uma das mais importantes experiências européias e expressão emblemática de uma nova visão de urbanismo, rompendo definitivamente com a idéia da preservação entendida como um simples problema de “cenografia urbana” aliada a adaptações funcionais (17).

A partir dos anos 70, a perda da identidade cultural e o empobrecimento do ambiente urbano provocado pelos códigos redutivos da arquitetura contemporânea tornaram-se objeto de preocupação cada vez maior. Contra a uniformização, emerge um renovado interesse pela especificidade do regional e dos estilos históricos, e pela diversidade das subculturas urbanas. A supressão do contexto local e da cultura, e a imposição da uniformidade como meio de se alcançar a universalidade encontra uma reação explicitada no léxico pós-moderno, pela valorização do contexto, da diversidade, do sentido do lugar, da experiência, do cotidiano e da cultura (18). Em oposição à visão globalizante e unificadora propugnada pela vanguarda modernista, delineiam-se novos códigos formais que convertem a fragmentação da configuração urbana num valor positivo: o pluralismo, em oposição à rigidez dos modelos estabelecidos pelo funcionalismo, e a valorização das particularidades regionais e dos conceitos de lugar/identidade, em oposição ao princípio da tabula rasa na produção ex-niilo de um novo espaço. A cidade-colagem, resultante da somatória de diferentes estratégias de intervenção no espaço urbano, e a revitalização urbana, no lugar dos procedimentos de renovação urbana, transformam-se em princípios-chave nas práticas urbanísticas contemporâneas.

A obra “Complejidad y Contradición en La Arquitetura” (1972), de Robert Venturi (19), constitui um dos marcos na formulação do repertório das correntes pós-modernas. Venturi opõe-se de forma radical à monotonia do racionalismo funcionalista, defendendo a complexidade, as contradições, a riqueza formal, a ambigüidade, o híbrido, o distorcido, o vernacular e o irregular. Colin Rowe (20) - um dos defensores dessa concepção - adota, em “Collage City” (1978), a Villa de Adriano como referência na proposta de uma cidade resultante de uma colagem de utopias pretéritas: a cidade bricolage. Numa reação à larga escala do movimento moderno, as intervenções pontuais e fragmentárias, bastante freqüentes na atualidade, fundamentam-se no princípio da multiplicidade. Como pano de fundo dessa visão, subjaz um reconhecimento implícito na inevitabilidade da fragmentação da forma urbana na cidade contemporânea.

Outra referência teórica importante – “A Arquitetura da Cidade” (1971), de Aldo Rossi -, apresenta uma teoria geral da cidade, fundamentada precisamente na análise da cidade histórica. Em contraposição ao urbanismo “arrasa-quarteirão”, emerge a noção de lugar ou genius loci – conceito teórico-filosófico que se refere a um campo perceptivo resultante, na definição de Rossi, da “relação singular e, ao mesmo tempo, universal entre certa situação local e as construções existentes naquele lugar” (21).

Kenneth Frampton, também presente neste debate, desenvolve a teoria do lugar em contraposição à idéia de totalidade, norteadora do ideário de proposições da cidade modernista. Para ele, o espaço não deve ser tratado como algo abstrato, mas sim como o lugar de habitar dos homens. Tomando essa acepção de Heidegger, formula a proposta de um regionalismo crítico, no qual a questão do lugar é pensada a partir de suas significações e referências históricas, geográficas e culturais. Apresentando-se como uma alternativa de resistência contra o mito do progresso da vanguarda moderna, mas contrapondo-se também ao mito de retorno às realidades pré-industriais, presente em algumas formulações pós-modernas, o regionalismo crítico se propõe pensar o particular em função do universal. Neste sentido, trata-se de um movimento que se opõe ao crescente domínio da globalização cultural e tecnológica sobre as diversas formas de manifestação das culturas regionais, preconizando o cultivo de uma cultura resistente, portadora de identidade (22).

Verifica-se, assim, no desenho urbano, a transição da grade cubista do urbanismo moderno para o que os geógrafos e arquitetos têm chamado de o sentido do lugar – formas construídas que sugerem e evocam associações simbólicas. A preservação histórica passa a ocupar um lugar fundamental na revitalização das áreas centrais nas políticas urbanas em curso no mundo inteiro. A ênfase dos projetos recai sobre a preservação das características do contexto histórico e cultural do lugar através da revitalização e reciclagem da arquitetura e espaços urbanos preexistentes.

A arquitetura contextual é definida por Francisco de Gracia, como sendo “aquela que, sem utilizar os recursos da mímesis superficial nem a analogia direta, estabelece uma rara simbiose com o contexto”, mediante a construção de nexos figurativos com o entorno e de critérios definidos pelas próprias características do lugar, mas com a marca de seu tempo. Dessa maneira, mesmo que toda intervenção resulte numa modificação do locus, o que está em questão para a arquitetura contextualista é a possibilidade de “transferir para o futuro os valores da cidade antiga, sem renunciar à própria sincronia histórica” (23).

No Brasil, um dos exemplares mais emblemáticos dessa tentativa de expressão de uma arquitetura do lugar é o Centro de Lazer SESC Fábrica da Pompéia, projetado por Lina Bo Bardi no final dos anos 70. A antiga fábrica do final do século XIX foi transformada num centro de produção de cultura e de lazer mediante algumas intervenções mínimas, acrescentando um novo significado ao local, ao mesmo tempo em que preserva a memória de uma atividade que teve presença marcante na vida dessa região. Na avaliação de Eduardo Subirats, esse projeto - expressão de uma visão de cultura enquanto convívio e não como espetáculo midiático - manifesta uma vontade poética de transformar a realidade local à medida que busca criar um espaço aberto às mais diversas formas de manifestação artística e cultural da comunidade (24).

Num outro bairro industrial vizinho à Pompéia, a Barra Funda, localiza-se o monumental conjunto arquitetônico do Memorial da América Latina, projetado por Niemeyer em 1989, a partir de uma concepção arquitetônica e urbanística marcadamente abstrata. Como aponta Subirats, o Memorial da América Latina, embora se apresente na perspectiva de criação de um espaço simbólico da resistência dos povos latino-americanos, não procura estabelecer nexos com o entorno existente, comportando-se “como um corpo estranho que, em duelo desigual, se confronta energicamente com a paisagem urbana” (25).

O caráter excludente e estetizante das intervenções urbanísticas contemporâneas

A partir dos anos 80, diversos locais com significados simbólicos e determinados atributos de urbanidade, tornam-se objeto de intervenções urbanísticas, passando a ser ocupados, quase que com exclusividade, pelas classes médias e altas. Esse processo, denominado gentrification pelos sociólogos norte-americanos, é provocado pela elevação do valor dos imóveis e aluguéis que, expulsando os antigos moradores dessas áreas, elimina a diversidade social e cultural e leva à formação de guetos de elites. Paradoxalmente, a política de preservação dos centros históricos, bairros e vizinhanças, como forma de resistência às intervenções modernizantes acaba resultando, na maior parte dos casos, no crescimento de mecanismos elitistas de apropriação do espaço.

Tomando Los Angeles como paradigma, Mike Davis, numa alusão às reformas haussmanianas em Paris, assinala o caráter “contra-revolucionário” dos projetos de revitalização dos centros das cidades norte-americanas. Referindo-se à reurbanização do centro de Los Angeles, o autor demonstra que “várias grandes empresas foram convencidas a construir novas sedes na área do centro da cidade na década de 1960”, após uma “desapropriação generalizada dos bairros da classe trabalhadora pobre”, configurando um espaço completamente elitizado e desertificado (26). Na visão de Davis, a maior parte das intervenções contemporâneas nas áreas centrais das grandes cidades reflete, cada vez mais, a escalada da especulação financeira internacional, produzindo apenas enclaves de arranha-céus/fortalezas ou megaestruturas que incorporam espaços pseudopúblicos e pseudonaturais. São complexos com pretensões de auto-suficiência, totalmente isolados por vias expressas e protegidos por fossos e muros de concreto, com o objetivo de impedir o acesso de indesejáveis populações oriundas dos bairros de baixa renda, com é o caso do Hotel Bonaventure, de Portman, construído com o objetivo de alojar minorias abastadas de trabalhadores assalariados e executivos que optam em morar no centro da cidade (27).

Outra tendência urbanística que vem se disseminando nessas últimas três décadas, são as edges cities - cidades criadas à margem das principais cidades norte-americanas. As edges cities concentram edifícios de escritórios erguidos em centros empresariais, áreas de moradia, shoppings e áreas de lazer, de forma que seus moradores não precisem se deslocar para os centros das cidades. Não se trata, no entanto, de um fenômeno apenas norte-americano. Também nas metrópoles brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, vêm proliferando desde os anos 70, ao lado dos shopping-centers, os “condomínios fechados” como opção de moradia para as classes mais abastadas. No Rio de Janeiro, por exemplo, a Barra da Tijuca, com seus inúmeros condomínios fechados, shoppings e edifícios altíssimos, de padrão arquitetônico americanizado, é o paraíso dos novos ricos da cidade.

Tanto as edges cities, como os shoppings, os hipermercados, os condomínios fechados, os centros empresariais e as megaestruturas de múltiplas funções refletem a tendência atual de fragmentação urbana, resultante da tentativa de negação da cidade existente e da substituição dos centros tradicionais, através da configuração de espaços regidos sob a lógica da especulação imobiliária e da segregação. A visão de uma cidade sem centro, dividida por muralhas invisíveis, mas claramente definidas pelas crescentes desigualdades sócio-econômicas, culturais, étnicas e raciais, é cada vez mais concreta. Em muitas cidades já não se pode sequer identificar um centro, entendido como “um lugar geográfico preciso, marcado por monumentos, cruzamentos de certas ruas e avenidas, teatros, cinemas, restaurantes, confeitarias, ruas de pedestres, anúncios luminosos cintilando no líquido também luminoso e metálico que banha os edifícios”, como assinala Beatriz Sarlo. A própria idéia de centro é cada vez mais vaga: “Los Angeles (essa imensa cidade sem centro) não é tão incompreensível, como foi nos anos sessenta”. Tomando como referência o caso de Buenos Aires, Sarlo chama atenção para o fato de que o “processo de angelização” está se tornando um fenômeno cada vez mais comum nas cidades latino-americanas: “as distâncias se encurtaram, não só porque a cidade deixou de crescer, mas porque as pessoas já não se deslocam por ela de ponta a ponta. Os bairros ricos configuraram seus próprios centros, mais limpos, mais ordenados, mais bem vigiados, mais iluminados e com ofertas materiais e simbólicas mais variadas”. O protótipo desse mundo asséptico e seguro é o shopping center: “simulacro de cidade de serviços em miniatura, onde todos os extremos do urbano foram liquidados” (28).

Neste sentido, o shopping talvez seja um modelo miniaturizado da realização mais plena do capitalismo ou, na acepção de Walter Benjamin, uma mônada da pós-modernidade. Semelhante, como diz Sarlo, a uma “cápsula espacial acondicionada pela estética do mercado”, que mantém “uma relação indiferente com a cidade à sua volta: essa cidade é sempre o espaço externo, sob a forma de autopista ladeada por favelas, avenida principal, bairro suburbano ou rua de pedestres. (...) No shopping, não só se anula o sentido de orientação interna, como desaparece por completo a própria geografia urbana”, assim como a noção do tempo, a distinção entre o dia e a noite, e as variações climáticas. A concepção arquitetônica dos shoppings vem, aliás, adquirindo o status de referencial paradigmático para as diversas megaestruturas urbanas que proliferam na paisagem de nossas cidades. Assim como as passagens e galerias comerciais da Paris do século XIX eram, para Benjamin, o embrião da cidade moderna do século XX, nos shoppings pode-se antever “um ‘protótipo premonitório do futuro’: shoppings cada vez mais extensos, dos quais nunca se precise sair, como se fossem uma fábrica flutuante. Já são assim alguns hotéis-shoppings-spas-centros culturais de Los Angeles e, é claro, Las Vegas. São aldeias shoppings, museus-shoppings, bibliotecas e escolas-shoppings, hospitais-shoppings” (29).

Esse mesmo paradigma, elevado a uma dimensão exponencial, está presente no Maharish São Paulo Tower - uma versão pós-moderna do urbanismo “arrasa-quarteirão” que um grupo de empresários do setor imobiliário pretendia erigir no centro de São Paulo. O polêmico caso desse megaedifício de múltiplas funções - uma gigantesca torre piramidal com 510 metros de altura e 108 andares, que iria aterrissar em pleno Parque D. Pedro II -, é uma das expressões máximas da tentativa de criação de uma cidadela intramuros (30). A estimativa era de que em torno de 100 mil pessoas iriam circular por essa versão indiana da “Torre de Babel” diariamente. Nele previa-se a instalação de um mix de funções que ia desde uma área residencial, hotéis, escritórios, comércio, uma faculdade védica, serviços diversificados, atividades culturais e de lazer, um grande centro de convenções e exposições, estações de trem, metrô e ônibus. Seria possível nascer, crescer, estudar, praticar esportes, trabalhar, adoecer, fazer compras, namorar, casar, procriar e morrer, sem que precisassem por os pés para fora da “pirâmide”. Felizmente para os paulistanos, com o término da gestão Pitta, este assustador casulo futurista foi abortado.

A guisa de conclusão podemos afirmar que, se por um lado, as críticas do pensamento pós-moderno no que se refere às questões da memória e da identidade na arquitetura e urbanismo modernistas são bastante legítimas, por outro, suas soluções de projeto ainda estão muito distantes de atingir o ambicioso programa emancipatório a que se propôs. A ênfase nas intervenções pontuais, em muitos casos de caráter meramente cenográfico, e a supervalorização da fachada dos edifícios, evidencia que tais soluções ainda são de ordem essencialmente estética e mercadológica, integradas aos códigos culturais e exigências da sociedade capitalista de consumo. O que parece ser inegável, portanto, é que a necessidade de se refundir o funcional e o simbólico nas ambiências urbanas, de forma a repor as significações que o progresso unidimensional da modernidade erradicou, continua sendo um dos maiores desafios no campo do urbanismo.

notas

1
Versão revisada do segundo capítulo da tese de doutorado O Lugar do Centro nas Metrópoles Contemporâneas: O Caso de São Paulo, PUC-SP, 2000.

2
Ver, a esse respeito, AGGIO, Sandra Mara, Cidade e Memória em Walter Benjamim in revista Caramelo , n◦ 8, São Paulo: FAU-USP, nov./95, pp. 153 – 162.

3
CARVALHO, Maria Alice Rezende de, Quatro Vezes Cidade, Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994, p. 96.

4
ALBANO, C. e WERNECK, N., "Anotações sobre Espaço e Vida Cotidiana" in Espaço & Debates, n°17, São Paulo: NERU, 1986, pp. 33-43.

5
Na condição de mônada, a passagem aparece para Benjamin como o embrião da modernidade: síntese da Paris do século XIX, assim como Paris representa a síntese da modernidade oitocentista. Cf. ROUANET, S. P., "As Passagens de Paris" in As Razões do Iluminismo, São Paulo: Cia. das Letras, 1987, p.52.

6
BACHELARD, Gaston, A Poética do Espaço, São Paulo: Martins Fontes, 1993, pp.25 e 26.

7
Idem, pp.28, 29 e 31.

8
Idem, pp. 44-45.

9
AUGÉ, Marc, Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade, Campinas/São Paulo: Papirus, 1994, pp. 63-69.

10
A Carta de Atenas foi o documento resultante do CIAM IV, realizado em 1933, cujo tema foi A Cidade Funcional. As idéias de Le Corbusier foram hegemônicas neste Congresso e nortearam as propostas de um modelo de cidade organizada racionalmente segundo as quatro funções-chave da vida urbana: habitação, trabalho, circulação e lazer.

11
Neste momento o livro do arquiteto austríaco Camillo Sitte, A Construção da Cidade segundo seus Princípios Artísticos, do final do século XIX, até então rechaçado pelo Movimento Moderno como o principal portador de uma visão urbanística antimoderna, volta a ser valorizado.

12
BERMAN, M., Tudo que é sólido desmancha no ar: A aventura da modernidade, São Paulo: Cia. das Letras, 1986.

13
É também de autoria de Moses a via expressa conhecida como Radial Leste, que rasgou ao meio, no final dos anos 50, os tradicionais bairros operários paulistanos Brás e Moóca.

14
BERMAN, M., op. cit., p.305.

15
Idem, p.306.

16
O caso de Bolonha é, até hoje, uma referência exemplar entre as várias experiências de recuperação de áreas centrais. O seu sucesso deve-se, fundamentalmente, ao fato de a administração da cidade ter-se pautado por mecanismos de descentralização, não apenas burocrática como também política, que garantiram a participação da população, organizada em “comissões urbanísticas de bairro”, durante todo o processo de elaboração e implantação do plano. Cf. CERVELLATI, P. L. e SCANAVINI, R., Bolonha: politica e metodologia del restauro nei centri storici, Bolonha: Il Mulino, 1973.

17
VENTURI, Robert, Complejidad y Contradición en la Arquitetura, Barcelona: Ed. Gustavo Gilli, 1972.

18
Segundo David Harvey, “as peculiaridades do pós-modernismo devem ser vistas como sintomas e expressões de um dilema novo e historicamente original, dilema que envolve a nossa inserção como sujeitos individuais num conjunto multidimensional e complexo de realidades radicalmente descontínuas, cujas estruturas vão dos espaços ainda sobreviventes da vida privada burguesa ao descentramento inimaginável do próprio capitalismo global, incluindo tudo o que há entre eles. Nem mesmo a relatividade einsteiniana nem os múltiplos mundos subjetivos dos modernistas mais antigos conseguem dar qualquer configuração adequada a esse processo, que, na experiência vivida, se faz sentir pela chamada morte do sujeito ou, mais exatamente, pelo descentramento e dispersão esquizofrênicos e fragmentados deste último...” (HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 8ª ed. São Paulo: Edições Loyola,1999:274)

19
ROWE, C. e KOETTER, F., Collage city, Cambridge: MIT Press, 1978.

20
ROSSI, Aldo, A Arquitetura da Cidade, São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 185.

21
FRAMPTON, Kenneth, História Crítica de la Arquitetura Moderna, Barcelona: Ed. G. Gilli, 1981.

22
GRACIA, F. de, Construir en lo Construído. La Arquitetura como Modificacion, Madrid, 1996, p.310 (T. da A.).

23
SUBIRATS, E., “Arquitetura e poesia: dois exemplos latino-americanos” in Vanguarda, Mídia, Metrópoles, São Paulo: Studio Nobel, 1993, 73-88.

24
Idem, ibidem.

25
DAVIS, Mike. “O renascimento urbano e o espírito do pós-modernismo” in Kaplan, Ann. O Mal-Estar no Pós-Modernismo, São Paulo, Ed. Zahar, 1993, pp.106-116.

26
DAVIS, Mike, Cidade de Quartzo, São Paulo: Scritta Ed., 1993.

27
SARLO, B., Cenas da Vida Pós-Moderna, Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, pp.13 a 15.

28
Idem, pp. 17 e 18.

29
ORTEGOSA, Sandra Mara, “A negação da cidade” in revista Opinião PUC-SP, n° 12, São Paulo: PUC-SP, Nov/99. p.5.

30
HOLSTON, James, A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia, São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.316.

sobre o autor

Sandra Mara Ortegosa é arquiteta urbanista e cientista social pela USP, mestre e doutora em antropologia pela PUC-SP

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