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architexts ISSN 1809-6298


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Quando Caminha aqui aportou no último ano do século 15, o conceito de paisagem ainda estava sendo construído; por esse motivo, perdemos a oportunidade de conhecer a feição de nosso litoral antes da sanha destrutiva dos conterrâneos do escrivão.


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BARRA, Eduardo. Caminha e a paisagem. Arquitextos, São Paulo, ano 18, n. 215.04, Vitruvius, abr. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.215/6964>.

“A paisagem participa da eternidade da natureza, um constante existir, antes do homem e, sem dúvida, depois dele. Em suma, a paisagem é uma substância.” (1)

Caminha, quem?

A ideia de escrever este artigo surgiu após um episódio ocorrido em aula para turma de graduação em arquitetura. Ao citar a carta de Pero Vaz de Caminha, espécie de certidão de nascimento do Brasil, não nutria expectativa de que alguém a tivesse lido, pois estou convencido de que a grande maioria dos brasileiros não o fez. Infelizmente. Mas, para minha surpresa, nenhum dos presentes havia sequer ouvido falar não só da carta, mas também da personagem. Para aquele grupo de pessoas, o nome de Pero Vaz de Caminha não possuía qualquer significado – não sei que planeta habitaram durante o ensino fundamental. Diante da minha estupefação, um deles tentou me reconfortar, mas arremessou um comentário que me destroçou de vez: “Talvez o conheça, mas não estou ligando o nome à pessoa”.

Pois é... Mas o que fazia Caminha em uma aula de paisagismo para futuros arquitetos? É exatamente isso que vou tentar explicar.

Pero Vaz de Caminha
Imagem divulgação

O escrivão

Nascido provavelmente no Porto em 1450, cavaleiro das casas de D. Afonso, D. João II e D. Manuel I, além de vereador da câmara portuense, Caminha foi nomeado em 1500 escrivão da feitoria de Calicute, na Índia – onde veio a morrer brutalmente em dezembro do mesmo ano, em meio aos conflitos de uma invasão moura. Para chegar à colônia distante, nossa personagem pegou carona na esquadra de Pedro Álvares Cabral, pois constava que este para lá se dirigia. Entretanto, as coisas não aconteceram exatamente como ele previa e a trupe cabralina acabou vindo parar no lado de cá do Atlântico.

Ao deparar com o território desconhecido, um mês e meio após a partida, Caminha logo pensou em valer-se da capacidade de escrever bem para comunicar o descobrimento ao rei, na esperança de ser atendido em um pleito particular: o indulto de seu genro Jorge Osório, então degredado em São Tomé por reincidência, pela terceira vez, em crimes de furto e extorsão a mão armada. Esse fator motivador da elaboração do documento inaugural do novo país talvez explique muita coisa.

A carta (2)

A bem da verdade, Caminha não foi o único membro da esquadra a escrever ao rei. Tem-se conhecimento de dois outros documentos: a Relação (3) do Piloto Anônimo e a carta do judeu espanhol João Faras.

Página da carta de Caminha
Imagem divulgação [Website Sapo]

O primeiro tem origem um tanto obscura e suspeita-se que o autor o tenha escrito posteriormente, após regressar a Portugal. Além disso, não acrescenta informações relevantes às transmitidas de forma detalhada por Caminha. Portanto, é documento que nem todos levam a sério.

Já a carta escrita por Mestre João, médico da coroa portuguesa, astrônomo, astrólogo e físico, se detém quase exclusivamente nas questões da localização exata da nova terra, com base nos astros. O signatário é considerado o primeiro cientista a estudar o Brasil, sendo também responsável pela atribuição do nome Cruzeiro do Sul à constelação que, naquelas noites escuras, chamava a atenção no firmamento. O grande frisson causado por sua carta se deve ao trecho em que recomenda ao monarca que verifique “um mapa-múndi que tem Pero Vaz Bisagudo (4) e por aí poderá ver Vossa Alteza o sítio desta terra; mas aquele mapa-múndi não certifica se esta terra é habitada ou não”, que parece confirmar a ideia, por alguns defendida, de que os portugueses, àquela época, já tinham conhecimento do Brasil. Mas isso é outra conversa.

Fragmento da carta de Caminha
Imagem divulgação [Website Sapo]

A carta de Caminha, portanto, vem a ser o documento mais completo, com vinte e sete páginas de texto e mais uma de endereçamento a “El Rey noso Sñor”. Datada “deste Porto Seguro, da vossa Ilha de Vera Cruz” de 1° de maio de 1500, sexta-feira, a carta perdeu-se nos arquivos reais ao chegar a Portugal e permaneceu ignorada pelo público até 1817, curiosamente, o ano em que os naturalistas Spix e Martius chegaram ao Brasil para descobri-lo mais uma vez. Trata-se do único texto conhecido de Caminha, que nele demonstra notável habilidade descritiva e de síntese da enorme quantidade de informações absorvidas naqueles dez dias em que permaneceu por aqui. Em linguagem atual, eu diria que o escrivão narra os acontecimentos de forma cinematográfica, recheando o relato objetivo com curiosidades, humor, momentos de tensão, euforia e suspense.

A esquadra partiu de Belém no dia 9 de março e tudo seguiu normalmente, (5) até que em 21 de abril perceberam sinais de terra, algo como sargaços e aves. Ao fim da tarde do dia seguinte, uma quarta-feira, finalmente avistaram “um grande monte, mui alto e redondo”, a que o capitão Cabral chamou de Monte Pascoal – a Páscoa estava próxima –, nomeando a planície ao sul de Terra de Vera Cruz. O Piloto Anônimo desconfiou: “A terra é grande e não sabemos se é ilha ou terra firme”. Pernoitaram a distância segura da costa.

A esquadra de Cabral
Imagem divulgação

Na manhã da quinta-feira, avistaram gente na praia. Coube a Nicolau Coelho ir até lá num barquinho, para reconhecimento inicial. Ao aproximar-se, cerca de vinte homens pardos e nus, “sem nada que lhes cobrisse suas vergonhas”, surgiram da mata com arcos ameaçadores, mas os abaixaram quando o português fez sinal pedindo que os pousassem. Então, deu-lhes o barrete e o chapéu que usava, recebendo em troca um cocar de penas e um colar de contas brancas. E encerrou-se o encontro, com Nicolau voltando aliviado ao navio.

A chegada ao Brasil, na visão de Oscar Pereira da Silva (1865-1959) [Wikimedia Commons]

(Sou de uma geração que assistiu boquiaberta, através da televisão, à chegada do homem à Lua e, lendo o texto de Caminha, visualizo os navegantes portugueses como astronautas. No caso mais recente, não existiam indígenas ou alienígenas nus do lado de lá, mas a apreensão do primeiro contato com um mundo desconhecido deve ter sido bem semelhante.)

Astronauta registra a paisagem lunar com sua câmera, do ponto de vista não mais de um satélite em órbita, mas de um humano
Imagem divulgação [Nasa]

Até esse momento, o homem que passara mês e meio sacolejando no mar, numa embarcação desconfortável e lotada, (6) e que aportara no deslumbrante cenário tropical do sul baiano, inédito para um europeu, repleto de palmeiras então desconhecidas e densos arvoredos pouco alterados, não havia mencionado nada além das referências geográficas identificadas pelo capitão do navio, como um monte redondo com uma planície ao lado. Ou seja, não se deslumbrou. Talvez estivesse mais preocupado com as questões relativas à aproximação com os nativos.

O cordão de recifes e o “porto seguro”
Imagem divulgação [Google Earth]

Mas eis que na madrugada seguinte, o tempo muda e o mar fica muito agitado, obrigando Cabral a deslocar sua frota em busca de local mais abrigado, (7) até encontrarem um recife “com um porto dentro, muito bom e muito seguro”, grande o suficiente para abrigar duzentos navios. Aos pouquinhos, através de informações pingadas, ainda que de forma bastante esparsa, vamos construindo mentalmente a organização geográfica do lugar.

Abrigados no tal porto seguro, o piloto Afonso Lopes se mete num barco para ir ao encontro de dois indígenas que os espreitam em uma canoa, e os convida a bordo da nau capitânia. Caminha observa encantado que os rapazes têm “bons rostos e bons narizes, bem feitos”, e também “andam nus, sem cobertura alguma; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto”. Mais adiante, o escrivão comenta que “a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.” Esse é um aspecto que impressiona bastante o escrivão, levando-o a voltar ao assunto em várias passagens de sua carta, para explicar que a genitália não era circuncidada “e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas”, que ficara impressionado com as moças de “vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”, sendo uma delas “tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela”. Com essas coisas, Caminha se deslumbrou – talvez tenha sido o efeito de tanto tempo ao mar.

A bem da verdade, preciso dizer que o escrivão também descreveu outros costumes indígenas, como os adereços labiais, os cabelos “corredios” e respectivos cortes, os adornos de cabeça com penas, assim como comentou que Cabral andava “muito bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço”, e que sentava em sua cadeira com almofada à frente para apoio dos pés. Caminha conta que nesse encontro inicial, os índios, ao verem o colar do capitão e um castiçal de prata, se puseram a gesticular, como dizendo que ali também havia ouro e prata. Penso que isso seja pura fantasia do narrador (8) com o fim de agradar ao rei, pois mais à frente constata que os nativos ainda não usavam qualquer tipo de metal e suas raras e toscas ferramentas eram de pedra em forma de cunha. Como também não cultivavam, vivendo da caça, da pesca e de frutos, (9) comportavam-se como verdadeiros caçadores-coletores primitivos, o que faz parecer inverossímil que tivessem qualquer interesse ou conhecimento de ouro ou prata.

Quando Cabral tomou coragem para pisar em terra firme, mandou que todos os tripulantes desembarcassem juntos. Muitos nativos vieram à praia e misturaram-se aos portugueses, numa aparente comunhão. Havia um pequeno rio para atravessar e Cabral ordenou que dois homens o carregassem no colo, pois queria ser reconhecido pelos indígenas como o senhor, mas eles devem ter achado aquilo ridículo e nem tomaram conhecimento do fato.

Nesse primeiro contato físico com o novo mundo, Caminha registra que “andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de água muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não mui altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos”. Outra das histórias mal explicadas do escrivão: já conheciam palmitos ou foram apresentados pelos indígenas? como se “colhem” palmitos? podem ser degustados in natura ou exigem algum tipo de preparo? Deixando de lado esses pequenos detalhes, o mais importante dessa visita coletiva à terra firme é que agrega mais algumas peças à composição mental que formamos da paisagem local. Por exemplo, ficamos sabendo que Cabral caminhou ao longo da praia até uma “lagoa grande de água doce, [...] porque toda aquela ribeira do mar é apaulada (10) por cima e sai água por muitos lugares”.

Em outro momento, Caminha desembarca com um grupo de marinheiros para cortar lenha e carregar os barris de água, e avista muitos papagaios verdes e pardos, grandes e pequenos. “Os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!”, fato confirmado pelo relato do Piloto Anônimo: “muitas aves de muitas espécies, especialmente papagaios de muitas cores, entre os quais alguns grandes como galinhas e outras aves muito belas. E das penas das ditas aves fazem chapéus e barretes que usam”.

Já no final da carta, no trecho em que objetiva caracterizar tecnicamente o território, o escrivão estima que a terra descoberta possua de vinte a vinte e cinco léguas de costa. “Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, (11) delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã  (12) é muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é tudo praia-palma, muito chã e muito formosa.” É a melhor e mais abrangente descrição que faz do conjunto paisagístico. Logo a seguir, complementa: “a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados” e “águas são muitas; infindas”. O Piloto Anônimo confirma: “A terra é muito abundante em muitas árvores e muitas águas boas e inhames (13) e algodão”. A grande frustração fica por conta da inexistência da suposta frase mais famosa da carta – “em se plantando, tudo dá” –, pelo menos não exatamente dessa forma. O que há de mais parecido é “em tal maneira [a terra] é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, pelo bem das águas que tem”.

A missiva vai chegando ao fim, mas antes de clamar pela liberdade do genro facínora, Caminha faz papel de bom cristão e declara que “o melhor fruto que dela [da terra] se pode tirar me parece que será salvar esta gente.” No caso, “salvar” significa transmitir o evangelho aos “bestiais” tupiniquins, porque, “segundo parece, não têm nem entendem nenhuma crença”, estando aptos a absorver qualquer conceito que se queira introduzir. (14)

A paisagem através dos olhos de Caminha

Evidentemente, Caminha não era paisagista e não se propôs a elaborar uma leitura meticulosa da paisagem do novo mundo, como nós, paisagistas, apreciaríamos. Teria sido a grande oportunidade de conhecermos a fisionomia litorânea brasileira antes da sanha destruidora dos conterrâneos do escrivão, das corridas ao pau-brasil, ao ouro, à borracha, à cana-de-açúcar, ao café, e da urbanização desenfreada sem qualquer planejamento. Em lugar disso, o narrador preferiu pincelar informações esparsas sobre o ambiente ao longo das vinte e sete páginas, deixando que El-Rey e os futuros leitores montassem o quebra-cabeça, cada um a seu modo. Naquele momento, ele estava visivelmente mais envolvido com o povo recém-descoberto, suas atitudes e costumes, e alinhavou uma espécie de extensa reportagem daqueles dias de aventura.

Caminha não era de fato astronauta, por isso não coletou amostras de solo, conchas, pedras e gravetos para posterior apreciação pelos cientistas reais.

Caminha também não era naturalista, pois esse tipo de gente só marcou presença por aqui três séculos mais tarde. A respeito do grande universo de plantas completamente desconhecidas por ele, há um único comentário mais pormenorizado, muito provavelmente sobre o urucum (Bixa orellana), quando repara que os indígenas trazem consigo “ouriços verdes, de árvores, [...] cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagados entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que eles andavam tintos”. Seu relato, ainda que repleto de detalhes sobre vários assuntos, permite que visualizemos aquele fragmento da paisagem litorânea apenas através de seus aspectos funcionais, ou seja, sabemos dos recifes porque os navios precisavam de abrigo, das palmeiras e seus palmitos porque considerava que eram saborosos, da fartura de água porque era questão de sobrevivência, da lagoa e dos pântanos (manguezais) porque seu espírito jornalístico o levou a acompanhar as andanças do comandante, e assim por diante.

Mencionar alguns elementos da paisagem não é o mesmo que analisá-la, que mergulhar em sua “substância”, que regozijar-se diante da fartura das águas, dos pássaros e do multicolorido espetáculo tropical, na certa distinto dos cenários cotidianos do missivista e, sobretudo, da ondulante monotonia marítima que vivenciara nos meses anteriores. Sabemos que a paisagem não se conforma através de seus elementos observados isoladamente, mas a partir da relação deles entre si e, por sua vez, das interações que o observador consegue estabelecer com o conjunto. Podemos lamentar que o escrivão não tenha se dedicado a descrever com mais minúcias a paisagem que acabara de descobrir, mas a verdade é que ele ainda não sabia o que vem a ser paisagem – e esse foi o motivo que me levou a citá-lo na aula de paisagismo para graduandos, suspeitando que também não sabiam.

Construção cultural

A paisagem ao fundo da costa baiana contava há muito tempo com as evidências geográficas do monte alto e redondo e a planície ao sul, assim como a foz do rio, o manguezal e a lagoa próxima à praia. Foram necessários muitos anos para a formação dos recifes, mas o porto seguro já existia naquele local bem antes de Caminha aparecer. Só que, sem os portugueses, não havia paisagem.

O planeta Marte na ficção, na série de ficção Flash Gordon, 1936
Imagem divulgação

Explicando melhor, paisagem é um conceito exclusivamente humano, portanto, sem humanos, não existe paisagem. Bem, existe, mas não existe, se é que me faço entender. Um exemplo: para os humanos, a paisagem marciana só passou a existir de fato a partir do momento em que os avanços da exploração espacial permitiram que substituíssemos as feições fantasiosas impressas em nossas mentes através dos quadrinhos e do cinema. Hoje, podemos dizer que conhecemos razoavelmente a paisagem real do planeta vermelho a partir de um rápido passeio pelo Google, e temos plena consciência de que tipo de paisagem nos espera naquele mundo distante.

O planeta Marte na ficção (DC Comics)
Imagem divulgação

Sabemos que os indígenas já ocupavam aquele trecho do litoral brasileiro há algum tempo, mas aqui precisamos levar em conta dois aspectos: desconhecemos completamente o entendimento que eles faziam da paisagem que usufruíam – e é provável que estivessem tão preocupados com isso quanto uma arara ou uma jaguatirica – e, detalhe horrível, até o início do século 19, por incrível que pareça, ainda havia quem discutisse, nos meios científicos, se os “bestiais” deveriam ser considerados Homo sapiens. Humanos, mas de uma espécie inferior, menos evoluída e, consequentemente, desprovida da capacidade de emitir qualquer opinião de interesse. “Blumenbach, por exemplo, considerado uma autoridade no campo da anatomia craniana comparada, deduz, após o exame do crânio de um botocudo, que se tratava de uma espécie de elo perdido entre o orangotango e o homem.” (15) O próprio Lineu, (16) algumas décadas antes, havia admitido a divisão da espécie H. sapiens em subgrupos, cabendo o epíteto específico ferus ao “selvagem”. (17) E Spix e Martius, trezentos e tantos anos depois de Caminha, consideravam que “a América somente começa a existir com a conquista dos europeus”, (18) principais agentes da veloz e radical transformação da paisagem. Portanto, tendo em vista que os conquistadores ignoravam os conquistados e, consequentemente, não tiveram a menor preocupação em conhecer a visão que tinham sobre seu hábitat, ficamos sem qualquer registro mais apurado de nossas paisagens originais.

O planeta Marte na realidade
Imagem divulgação

A filósofa francesa Anne Cauquelin (19) explica que a paisagem, tanto a expressão quanto a noção, “como conjunto estruturado, dotado de regras próprias de composição, como esquema simbólico de nosso contato próximo com a natureza”, só veio a ser inventada no início do século 15, relacionada às leis da novidade chamada perspectiva e diretamente aplicada à pintura. Os primeiros paisagistas, portanto, eram pintores. Mas a autora elege o quadro A tempestade, pintado por Giorgione somente no início do século seguinte (1508), como uma das primeiras representações pictóricas da paisagem, por considerar que não há um tema na tela, ou seja, o relato subjacente à cena representada, fator gerador da pintura desde seus primórdios. Até então, representava-se a ascensão do Senhor, a Santa Ceia, o calvário de Cristo, personagens socialmente valorizadas no momento ou a família real, mas jamais a mera visão dos campos ao redor. Em A tempestade, nada há além de “árvores, céu, nuvens, uma ruína, um regato e, perdidos, isolados nos dois cantos extremos da tela, dois personagens que parecem se ignorar mutuamente”. O importante mesmo parece ser o temporal ameaçador que se aproxima, o curso do rio e a cidade ao fundo – a paisagem! Apesar de corriqueira ao olhar de hoje, a obra provocou muitos comentários a partir de 1530, época que Caminha não chegou a conhecer, dada a desventura de falecer no último ano do século anterior.

A tempestade, Giorgione, 1508
Imagem divulgação

Cauquelin acrescenta: “Tomada exclusivamente no contexto da pintura, a paisagem se reduziria, pois, a uma representação figurada, destinada a seduzir o olhar do espectador, por meio da ilusão da perspectiva”. Com o passar do tempo, a representação pictórica da paisagem foi-se solidificando como o equivalente da natureza, sua expressão fiel, um recorte do panorama que envolve o ser humano e conjuga todas as suas dimensões e todos os seus elementos, não mais como objetos desconexos, isolados, mas como um conjunto único. Segundo a autora, “a perspectiva, apesar de artificial, tornou-se um dado de natureza e as paisagens em sua diversidade pareciam uma justa e poética representação do mundo. [...] Em suma, a paisagem adquiriria a consistência de uma realidade para além do quadro, de uma realidade completamente autônoma, ao passo que, de início, era apenas uma parte, um ornamento da pintura”.

De acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, a expressão francesa paysage surge somente em 1549 na acepção empregada nas escolas de belas-artes. A partir disso, chega ao idioma português em 1567 com a forma paugage e passa por várias grafias até que assume em 1656 a forma paizagem, que ainda encontrei em texto publicado em 1949 pela Revista Municipal de Engenharia, do então Distrito Federal. (20) Na sua origem, a expressão paisagem se relacionava diretamente ao conceito de país, mas não entendido como divisão política do território, apenas como território, pedaço de terra que se pode descortinar em uma visada a partir de um ponto privilegiado. Vale a pena perceber que essa relação entre termos ocorre tanto em idiomas latinos, quanto em anglo-saxões: paisagem/país (português), paysage/pays (francês), paisaje/país (espanhol), paesaggio/paese (italiano), landschaft/land (alemão) e landscape/land (inglês).

Segundo o arquiteto Marco Cavalcanti, para os biólogos, a paisagem é constituída por biomas, ecossistemas, flora e fauna; para os urbanistas, pode ser caracterizada como rural, urbana, cultural ou natural; já os geógrafos classificam por regiões, territórios, lugares e não lugares; “porém, acredito que todas essas [abordagens] são insuficientes diante das sensações que a paisagem pode oferecer”. (21)

Talvez por compartilhar do mesmo sentimento, o arquiteto argentino César Naselli, lá pelos anos 1960/1970, se deu ao trabalho de compilar o significado atribuído por diversos grupos à paisagem, de arquitetos e paisagistas a geógrafos, engenheiros florestais, biólogos, fotógrafos e turistas, entre muitos outros. Foram mais de cinquenta definições com enfoques diferentes e muitas nuances, ao fim resumidos por Naselli em um conceito aparentemente universal: “paisagem é o meio ambiente visível”. Com a certeza de que deficientes visuais também compreendem as paisagens, eu, hoje, modesta e politicamente correto, ampliaria o conceito para “paisagem é o meio ambiente perceptível”.

Paisagens idílicas e opressoras: tudo é paisagem
Foto do autor

Em um primeiro impulso, acredito que todos imaginam cenários naturais quando escutam a expressão paisagem. Florestas, rios de águas plácidas e cristalinas, cachoeiras espetaculares, oásis cinematográficos em regiões desérticas, praias paradisíacas... Essa é a visão do cartão postal, a visão clássica do turista, que viaja exatamente em busca desse tipo de impregnação visual, que admite deslocamentos de muitos quilômetros para fotografar cataratas ou cânions, ou mesmo grandes momentos da arte paisagística internacional. Em contrapartida, recomendaria internação para quem de pronto fosse remetido a ambientes enfumaçados e barulhentos, áreas de mineração ou centros urbanos áridos e densamente construídos, embora tudo isso também seja paisagem (ambiente perceptível).

Paisagens idílicas e opressoras: tudo é paisagem
Foto do autor

Hoje, temos jornais, revistas, filmes, canais de televisão, programas avulsos e séries, sites, páginas do Facebook e perfis no Instagram dedicados à divulgação de imagens paisagísticas, preferencialmente as excepcionais e oníricas, de ambientes naturais a felizes intervenções humanas realizadas em todos os cantos do planeta. A paisagem passou a ser um objeto de desejo, um bem de consumo cada vez mais valorizado. Todos fazem selfies diante de paisagens deslumbrantes para apresentar em seguida a seus pares reais ou virtuais. Profissional ou amadoristicamente, de forma aprofundada ou superficial, todos são capazes de fazer leituras das paisagens que vivenciam, de eleger suas favoritas, aquelas que mentalizam nos momentos de estresse.

Paisagens idílicas e opressoras: tudo é paisagem
Foto do autor

Observar criteriosamente as paisagens, descrevê-las com detalhes, identificar seus elementos componentes e registrá-las através de fotos ou desenhos tornou-se prática comum. Considero que isso seja apenas o primeiro passo. O segundo é analisar, estabelecer relações e tentar compreender as interações entre as partes do todo, exercício de leitura da paisagem que todo aspirante a paisagista precisa praticar cotidianamente.

Paisagens idílicas e opressoras: tudo é paisagem
Foto Eduardo Barra

Venho acompanhando com admiração um movimento mundial (uma comunidade global, como eles preferem), com representação expressiva no Brasil, denominado Urban Sketchers – USK, formado por grupos de pessoas que se reúnem simplesmente para passar algumas horas desenhando à mão e ao ar livre, registrando edificações e panoramas urbanos. Uma reedição das aulas de desenho artístico das faculdades de arquitetura ou uma espécie de retorno à atividade regular dos grandes arquitetos e paisagistas da história, (22) que os profissionais mais jovens haviam abandonado, talvez inebriados pelos computadores. Faço questão de ressaltar que há muita diferença qualitativa, quanto à apreensão da paisagem, entre o registro fotográfico e o desenho. Ambos são ricos em quantidade de informações e um não substitui o outro, mas a atividade de desenhar, mesmo que um esboço rápido, exige bem mais da percepção em relação às proporções, protagonismos, texturas, cores, nuances etc, sem contar que o tempo necessário para sua produção permite o desenvolvimento de múltiplas interpretações, fato impossível de ocorrer no átimo do clique de uma foto. No caminho acima mencionado para a leitura de determinada paisagem, considero o desenho como uma significativa transição entre o primeiro e o segundo passo.

Desenho da arquiteta Luana Kallas
Fonte Facebook

Esboço do arquiteto Juan Guillén diante da paisagem retratada
Fonte Facebook

Vale ainda registrar que essa nossa conversa, que hoje parece tão óbvia e espontânea, é fruto de um lento e minucioso aprendizado desenvolvido ao longo dos últimos seis séculos, que Caminha e seus contemporâneos não tiveram oportunidade de acompanhar. Se o Brasil só viesse a ser descoberto agora, as observações e consequentes registros sobre o novo mundo seriam bem diferentes.

Parte do grupo USK-Brasília exibindo sua produção ao fim de uma manhã de trabalho
Fonte Facebook

notas

1
CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo, Martins Fontes, 2007.

2
Texto consultado: Carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, edição de bolso da Editora Martin Claret, São Paulo, 2006. A publicação contém pequena biografia de Caminha, fac-símile do manuscrito e respectiva transcrição em tipografia convencional, além de versão adaptada à linguagem atual.

3
No sentido de “relato”.

4
Xará de Caminha, mera coincidência.

5
Exceto pelo desaparecimento inexplicável de uma nau, da qual nunca mais se ouviu falar, apesar do bom tempo em todo o trajeto.

6
Cerca de 190 homens a bordo, sendo 80 marinheiros, 70 soldados e 33 passageiros, incluindo 8 frades franciscanos e 8 intérpretes.

7
Caminha diz que se encaminharam para o norte, mas acredito que estivesse equivocado, pois o referido porto seguro fica ao sul da atual Santa Cruz Cabrália, reconhecida como o local de chegada da esquadra.

8
A esse respeito, o próprio Caminha dispara uma frase que explica tudo: “Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos”.

9
“Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária [...]. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e fruitos, que a terra e as árvores de si lançam.” Caminha confunde mandioca com inhame, talvez por já conhecer essa última raiz por intermédio da colonização africana.

10
Pantanosa.

11
Declives acentuados, falésias.

12
Plana.

13
O Piloto Anônimo também confunde mandioca com inhame.

14
“E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho que lhes quiserem dar.”

15
LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius. São Paulo, Editora Hucitec, 1997.

16
Carl Lineu, criador da nomenclatura binária, em 1753, adotada até hoje na taxonomia aplicada aos seres vivos.

17
LISBOA, Karen Macknow. Op. cit.

18
LISBOA, Karen Macknow. Op. cit.

19
CAUQUELIN,  Anne. Op. cit.

20
Grupo Biológico das Lagoas Litorâneas do Distrito Federal, de Roberto Burle Marx, Henrique Lahmeyer de Mello Barreto e José Candido de Mello Carvalho.

21
Fonte: Facebook, página Jardim Imaginário.

22
Como Gordon Cullen, Le Corbusier, Lucio Costa, Richard Neutra, Humphry Repton, Geoffrey Jellicoe, Lawrence Halprin, Shlomo Aronson e Roberto Burle Marx, entre tantos outros.

sobre o autor

Eduardo Barra é arquiteto (UFRJ, 1976) atuante nas áreas de arquitetura paisagística, desenho urbano e meio ambiente. Autor do livro Paisagens Úteis: escritos sobre paisagismo, publicado pelas editoras Senac São Paulo e Mandarim (2006) e vencedor do Prêmio IAB-RJ (2009) é titular exclusivo do Studio Eduardo Barra.

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215.04 paisagismo
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