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drops ISSN 2175-6716

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O arquiteto José Lira, professor da FAU USP, estava no restaurante Petit Cambodge, um dos alvos do atentado terrorista ocorrido no dia 13 de novembro em Paris e assumido pelo Estado Islâmico, conta o ocorrido e a sobrevivência pessoal e de quatro amigos.

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LIRA, José. Sobre os cinco brasileiros durante o atentado em Paris. Drops, São Paulo, ano 16, n. 098.05, Vitruvius, nov. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/16.098/5813>.


Nessas horas parece que tudo nos escapa. Não sabemos o que fazer, o que pensar, não sei o que dizer, mas muitos amigos me escrevem, preocupados, as noticias terríveis aqui de Paris, que amplificam-se com a distância, também graças à voz dessa mídia muito ruim hoje no Brasil, nos ouvidos desse público que gosta de tragédia, de sangue, de medo. Teve gente que até inventou que um arquiteto brasileiro morreu nos atentados… Escrevo pra dizer que estou bem, e compartilhar um pouco do que sinto. Talvez isso lhes ajude e me ajude a pensar um pouco, talvez a sentir um pouco mais de perto o que se passou. Ainda não tive condições de ler muito sobre o que ocorreu, e confesso que me choca a maneira ora abstrata, ora apelativa como se trata essas noticias. O fato é que não consigo esquecer o olhar frágil mas sereno das vítimas ao meu lado ontem à noite.

Passei um fim de tarde de sexta-feira adorável na companhia de dois ex-alunos da FAU USP (1), a quem foram se juntando outros amigos e amigas, quase todos brasileiros, arquitetos, e decidimos ir jantar no Petit Cambodge, um restaurante muito gostoso, numa parte alegre, juvenil, descontraída no 10eme. Por volta das 21h30, quando já terminávamos de comer, começaram os estampidos. Estávamos numa mesa à calçada, o som da metralhadora muito próximo, vi faíscas do outro lado da calçada. Juro que pensei que eram bombinhas de São João, uma girândola talvez, que poderia fazer parte de alguma brincadeira cenográfica nesse bairro apinhado de artistas e gente animada, e achei meio estranho as pessoas saírem correndo. Que exagero! Mas os tiros não paravam e começaram a atingir os pratos e as garrafas em toda parte e impulsivamente lancei-me no fluxo das pessoas que corriam do restaurante para um supermercado ao lado. La dentro, dei-me conta que estava com dois de meus amigos, dos outros 5 não sabíamos. Ao fundo, éramos umas 20 pessoas, ninguém sabia o que se passara. Um de meus amigos sangrava, talvez de estilhaços que atingira-lhe a testa. Dez minutos depois, chegaram os bombeiros e saímos; depois a polícia, como de praxe truculenta e insensível.

A cena é indescritível. Um holocausto digno do velho Camboja. Não sabia pra onde olhar, pessoas pelo chão, grupos de amigos consolando os seus feridos, pessoas chorando, algumas pessoas já mortas sozinhas, outras quase morrendo. Procurávamos os nossos amigos. Vi uma delas ao chão apoiada por seu amigo francês, também muito ensanguentado. Aproximei-me dela. Uma jovem linda, um corpo pequeno, uma pele fina, bastante ferida, que me dizia serena em português, “eu preciso sair daqui, preciso ir para um hospital”. Tentávamos consolá-la, acariciá-la, ficar ao seu lado enquanto o socorro não chegava. Os bombeiros a ajudaram com o oxigênio e a manta, mas não sabiam quem estava pior, não sabiam o que fazer. Outros dois amigos apareceram bem e nos levaram a um de meus ex-alunos, um jovem incrível, pessoa da cepa mais preciosa, que estava estirado no interior do restaurante. Ele estava muito machucado, mas acordado, meus amigos ao seu redor, ajudando-lhe como podíamos, ele repetindo conosco que ia se manter firme. Vez em quando eu tremia, suplicava por socorro médico, olhava para um lado e para outro e encontrava aqueles olhares serenos das outras vítimas, talvez as únicas pessoas que meio em choque, meio na modéstia ou resistência das pessoas vulneráveis, olhavam aquele movimento como anjos, esperando. Processando, olhando o mundo do alto, talvez, mais do que nós, estarrecidos com esse mundo cada dia mais terrível, mais intolerante, mais cheio de ódio, de ressentimento, de pavor, de desespero. Não conseguia me mexer pra ajudar os outros, as outras, corpos tão frágeis, mais e menos feridos, com seu olhar atento a tudo o que se passava. Estávamos magnetizados pelo objetivo único de salvar nosso amigo, e os bombeiros e policiais sem saber quem resgatar antes, quem estava pior, dizendo-nos o tempo todo: “há 10 mortos, há 20 mortos, há 40 feridos, patientez!”

Não vou entrar na questão agora, mas é estranho ver tanta segurança, tantos militares e policiais pelas ruas de Paris, e tão pouco preparo para lidar com as vítimas eventuais do que eles tanto temem. Não vou entrar nisso, porque só quero lhes dizer que o que me preocupa mesmo, e cada vez mais na vida, é o sentimento no singular, a dor no singular, de gente no singular. Algo tão difícil de transmitir, de co-sentir como sabemos, e também (e não apenas) por isso tão negligenciada pelas análises, pelas notícias, pelos dirigentes, seus técnicos e tecnologias, pelos agressores, pelas pessoas e grupos, acostumados a falar de dezenas, de centenas, de milhares. Não falo de suas personalidades, se são inteligentes ou não, legais ou caretas, felizes ou nem tanto, bem sucedidas ou frustradas. Mas de seus corpos, sua dor, seu olhar, sua fragilidade, sua ínfima condição, de nossa pele que se rasga facilmente. De nossos ossos que se partem, mesmo. De nossos órgãos que às vezes falham. De nossa respiração, entrecortada às vezes. De nossa voz que murmura, que suspira, que geme, que fala, pede ajuda se precisa, quando pode, de nossos corpos que se chocam, travam, podem apoiar outros corpos, acalentá-los, proteger outros em risco, fugir quando ameaçado, de nossas reações meio automáticas que dizem o tempo todo, “eu quero a vida”, quero preservar a vida, essa potência de sentir, de agir, de pensar. Tão brutalizada hoje.

Mas o que queria dizer é que cinco brasileiros, entre os quais eu, não tiveram seus corpos atingidos pelas balas. Nossos dois amigos foram operados e estão se recuperando. Estamos todos juntos. Sua fragilidade e sua força, seu olhar sereno e vulnerável, sua maneira delicada de dizer “sinto dor, não sinto, aqui, me ajuda por favor”, hão de fazer diferença. Porque a vida não espera. Vamos voltar para o Brasil logo. E bem. Pra esse Brasil que tem dado tantos sinais de intolerância religiosa, ideológica, étnica, política, moral, de gênero. Mas enfim, nossa casa. Obrigado pela preocupação!

nota

1
Os arquitetos Gabriel Sepe e Guilherme Pianca estavam em Paris para complementar suas pesquisas para um artigo que iriam apresentar no colóquio de Valencia sobre Le Corbusier na semana que vem. O colóquio é importantíssimo e os textos dos dois ex-alunos da FAU USP (Pianca está cursando mestrado) foram aceitos entre dezenas de submissões. Gabriel Sepe, ferido com gravidade, está se recuperando muito bem.

sobre o autor

José Tavares Correia de Lira é arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

 

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098.05 terror
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