Os belos pilotis em V do Estádio de Remo da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, obra exemplar da arquitetura moderna brasileira, projetada por Benedicto de Barros (1), em 1954 e tombada por Lei Ordinária pela Câmara Municipal (Lei nº 4149 de 10 de agosto de 2005), serão em breve vedados por uma cortina de vidro, descaracterizando o estádio como espaço público, aberto e democrático.
Em seu lugar, uma “praça” de alimentação à prova de chuva, de luz e calor solar e também de pedintes, de assaltos e de balas perdidas encerrarão, em total segurança e conforto térmico, os espectadores das competições de remo dos Jogos Panamericanos de 2007. E, quando este passar e com ele forem embora da cidade todos os atletas convidados, visitantes e turistas pagantes, 1.120 consumidores cariocas poderão freqüentar assiduamente a “praça”, isto é, o Shopping e 7 salas de cinema Multi-Plex anexas, 330 dos quais com direito a uma vaga de estacionamento.
Cidade genérica maravilhosa, não ?! Como disse Rem Koolhaas, o pós-modernismo é o único movimento que teve sucesso em conectar a prática da arquitetura à prática do pânico. “Seus edifícios de formas complexas dependem da indústria do muro-cortina, de adesivos e agentes colantes cada vez mais eficazes, que transformam cada edifício em uma mistura de camisa de força e câmara de oxigênio” (2). Difícil é remar contra esta maré global agorafóbica, privatizante e consumista.
Já protestaram contra a redução do espaço de remo pelo Projeto Lagoon, da Glen Entertainment, a FRERJ – Federação de Remo do Estado do Rio de Janeiro; o presidente do Comitê Olímpico Brasileiro – COB, Carlos Artur Nusman; o dirigente desportivo João Havelange; os clubes Flamengo; Botafogo; Guanabara; Escola Naval e Piraquê; o Ministério dos Esportes, os grandes campeões de Remo, o Comitê Social do Pan e a Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro (3).
Já protestaram contra a sobrecarga do tráfego da área, já congestionada pelo acesso à Barra da Tijuca, todas as Associações de Moradores do entorno e adjacências da Lagoa , o Ministério do Transporte e o Ministério do Meio-Ambiente (4).
Já protestaram contra a destruição do estádio tombado Oscar Niemeyer, os membros do Docomomo-Brasil e do Docomomo-Rio e uma centena de arquitetos e urbanistas de todo o país (5).
Leis, abaixo-assinados, ações cívicas e declarações não têm conseguido comover os concessionários e as autoridades responsáveis. Os pilotis do Estádio de Remo da Lagoa já não se encontram mais cobertos pela parede de tijolo em estado de petição de miséria, mas sim por tapumes e placas com credenciais dos autores do projeto e logomarcas das firmas de construção que, em breve, irão apagar da memória mais um espaço público da cidade do Rio de Janeiro.
É certo que o movimento moderno não conseguiu sustentar o V de vitória pela provisão de moradia mínima digna a todos os cidadãos, nem o V de vitória de um urbanismo não excludente, mas não se pode jogar fora a criança junto com água da bacia ou vender todos os ideais na bacia das almas ulceradas de pessimismo pós-modernista. Ok, let´s entertain ! Mas não ao custo de se correr o risco de um tsunami social. Isto seria o V de vitória da burrice.
A própria antropóloga anti-modernista Jane Jacobs, que em seu livro Morte e vida das grandes cidades norte-americanas (6) criticava os grandes viadutos e conjuntos habitacionais por secionarem e isolarem as vizinhanças, alertava que para não sucumbir à barbárie, toda cidade tem necessidade de espaços públicos abertos e acessíveis, isto é, não excludentes por meio de vidros, grades, seguranças e entradas pagas. Um espaço público onde todos podem entrar e sair permite que os cidadãos sejam expostos a diferentes pessoas e visões de mundo, à interação com pessoas heterogêneas vindas de lugares os mais espalhados e distantes, e a novas impressões e experiências. Inclusive à experiência do auto-domínio do medo.
Paradoxalmente, uma das características da arquitetura moderna brasileira mais admirada e copiada e da qual devemos nos orgulhar é justamente a permeabilidade generosa, livre e criativa entre o que está dentro e o que está fora. A grandeza expressa nos pilotis do Estádio de Remo, do Edifício do MEC, do prédio da FAU-USP, das superquadras e das colunas dos palácios de Brasília e de tantos outros exemplos, deve ser preservada não apenas porque pertence ao nosso patrimônio histórico e artístico, mas também porque inspira iniciativas urgentíssimas de inclusão social como, por exemplo, foi a oferta de cursos para crianças das favelas próximas da Lagoa, antes do Estádio ter sido fechado e começado a degradar.
Por outro lado, quando os remadores pan-americanos e turistas forem embora, a auto-sustentabilidade do estádio poderá ser viabilizada por cursos de treinamento, academia e spa de remo, atividades ao ar-livre de pequeno porte, conferências, recepções e pequenas lojas de artigos esportivos, paralelamente aos projetos esportivos de inclusão social.
Diversão sim, por que não? Mas sem necessidade de confinar e excluir. Nada contra o cinema, mas a atual proliferação de tantas salas de exibição pelas cidades obriga a refletir sobre o significado de um slogan publicitário de um distribuidor de filmes, muito repetido na minha adolescência carioca: “Cinema é a maior diversão”. No dicionário Houaiss, a terceira definição de diversão é uma “ação que tem a finalidade de desviar a atenção do inimigo” e na etimologia, o verbo latim divertère significa “afastar-se, apartar-se, ser diferente, divergir”. As futuras 7 salas MultiPlex do Estádio de Remo podem até vir a exibir em looping os premiados “Cidade de Deus“ e “Central do Brasil”, para citar dois exemplos de filmes que abordam a crise habitacional, mas jamais serão espaços que, entre outras coisas, “permitem que um sem-teto possa emergir de seu confinamento a uma imagem ideológica e declarar seu direito à cidade, seu direito à política”, como na definição de espaço público da crítica de arte Rosalyn Deutsche (7). Aliás, neste sentido e ironicamente, o cine drive-in no qual o ex-governador Lacerda, indevidamente, transformou o Estádio de Remo durante um período, seria mais propício.
Basta viver a violência cotidiana das nossas cidades e não precisa ser um teórico da gentrificação (8) ou da globalização (9) para desconfiar que as bolhas de assepsia social que estamos importando – shoppings, condomínios residenciais, parques temáticos, enclaves de uso misto etc - estão furadas. Como disse recentemente em entrevista o vencedor do Prêmio Pritzker, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, a urbanidade depende também de formas e relações espaciais construídas “no sentido público, democrático, livre, esclarecedor, positivo” (10).
Se você também é a favor da conservação do projeto original do Estádio de Remo da Lagoa, por favor, assine o abaixo-assinado.
notas
1
Benedicto de Barros, arquiteto do Departamento de Obras do Governo Getúlio Vargas e foi também remador. O projeto do estádio foi realizado em conjunto com outros dois remadores, o engenheiro calculista Antonio Arlindo Laviola e o advogado Carlos Osório de Almeida, responsável pela dotação orçamentária para a construção pela Câmara de Vereadores. Benedicto de Barros diplomou-se Engenheiro Arquiteto em 1932 pela Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, e classificado no concurso de Grau Máximo de arquitetura em 1º lugar, recebendo a medalha de ouro. Principais projetos realizados: A Refinaria Duque de Caxias, Sede da Rede Ferroviária Federal,Sede da do Departamento de Estradas de Rodagem; Sede náutica do Botafogo Futebol e Regatas; Clube do Congresso em Brasília; Imprensa Nacional em Brasília; Sede da Imprensa do Estado da Guanabara; Centro administrativo do Estado da Guanabara; Hotel Primus em São Lourenço; Usina Elétrica de Manaus etc. Foi diretor do DER, da SURSAN, do Patrimônio do Estado, entre outros cargos.
2
KOOLHAAS, Rem. La ciudad genérica. In MARTÍN RAMOS, Angel (org.). “Lo urbano en 20 autores contemporáneos”. Barcelona, Ediciones UPC, 2004. Traduzido do original: KOOLHAAS, Rem / OMA. S,M,L,XL, Rotterdam, 010 Publishers, 1995, p. 1247-1264.
3
Informações fornecidas por Zezé Barros, filho do arquiteto autor do projeto do Estádio e membro da FRERJ.
4
Idem
5
Ver em anexo o abaixo-assinado coletado com apoio do DOCOMOMO.
6
JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades norte-americanas (1961). São Paulo, Martins Fontes, 2000.
7
DEUSTCHE, Rosalyn. The question of "public space". Seminário organizado pelo The Photography Institute, 1998.
8
Gentrificação é um termo cunhado pela socióloga Ruth Glass, em Londres, em 1964, para se referir ao processo de expulsão dos residentes originais de classe operária, em decorrência do aumento de preços de imóveis e aluguéis, subseqüente à ocupação e reabilitação pela classe média de grandes casas vitorianas degradas em vários quarteirões de Londres. Este processo vem ocorrendo em várias áreas centrais revitalizadas: em Islington em Londres; na Philadelphia; no Harlem em Nova Iorque; em Budapeste; em Amsterdã; no distrito de Shinkuju em Tóquio; em Montparnasse em Paris; em Glasgow na Escócia, para citar alguns exemplos. Ver SMITH, Neil. The New Frontier: Gentrification and the Revanchist City (1996). London / New York, Routledge, 2002; BIODU-ZACHARIASEN, Catherine (coord). De volta à cidade: dos processos de gentrificação às políticas de “revitalização” dos centros urbanos. São Paulo, Annablume, 2006.
9
SASSEN, Saskia. Globalization and its Discontents: essays on the mobility of people and money. NovaYork, The New Press, 1998; SASSEN, Saskia; ROOST, Frank. “A cidade: local estratégico para a indústria local do entretenimento”. In Espaço& Debates: Revista de Estudos Regionais e Urbanos, Ano XVII, n. 41. São Paulo, NERU, 2001, p. 66-74.
10
ROCHA, Paulo Mendes da. Geometria da intervenção. Entrevista à Guilherme Wisnik e Martin Corullon. Folha de São Paulo, 16 abr. 2006.
sobre o autor
Maria da Silveira Lobo, socióloga, doutora em arquitetura e urbanismo pela FAU-USP, professora e pesquisadora pela FAPERJ/EAU/UFF, membro do Docomomo-Rio e Brasil.