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my city ISSN 1982-9922

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A construção de torres no terreno ao lado do Teatro Oficina desconsidera as áreas envoltórias de um conjunto amplo de bens históricos. O que está em questão é o impacto do empreendimento em aspectos simbólicos da constituição do bairro.

how to quote

FERNANDES, Gabriel; CAMARGO, Mônica Junqueira de. A Casa de Dona Yayá na preservação do Bexiga. Minha Cidade, São Paulo, ano 18, n. 209.01, Vitruvius, dez. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/18.209/6796>.


Casa de Dona Yayá, São Paulo
Foto Ana Sieds [Wikimedia Commons]


A Casa de Dona Yayá, que sedia o Centro de preservação Cultural da USP é tombada pelo Condephaat e pelo Conpresp, e como tal, impõe que qualquer intervenção inserida na sua área envoltória, precisa ser analisada sob essa ótica. O terreno da rua da Abolição, onde se pretende construir um conjunto de torres residenciais, encontra-se nessa área envoltória, exigindo que este projeto seja analisado levando em consideração esse bem cultural e sua articulação com o contexto urbano, geográfico, social e simbólico. Além das eventuais interferências que a nova estrutura possa promover à visualidade de seus bens vizinhos, cabe pensar nas interrupções simbólicas e das práticas culturais que esta pode acarretar à articulação desses e de outros bens, além dos atores aos quais se vinculam.

A Casa de Dona Yayá encontra-se em posição privilegiada em meio ao território conhecido como “Bixiga”: implantada quase no topo de uma colina que margeia o Ribeirão do Bixiga (hoje localizado sob o curso da Rua Japurá), a Casa, ao mesmo tempo que se volta para o tecido urbano da Rua Major Diogo (na qual pouco se vê a topografia de seu entorno), se comunica também com a conformação paisagística caracterizada pela grota propiciada pelo rio, descoberta assim que o transeunte penetra em seu jardim. Pelas peculiaridades de sua trajetória, permitiu-se ao terreno no qual se encontra a Casa de Dona Yayá que nele permanecesse um resquício de jardim (espécie de indício do que já foram as antigas chácaras que caracterizaram a região antes de sua urbanização) que não só revela-se como único no entorno como também uma espécie de mirante para esta configuração territorial: além dos fundos da Casa de Dona Yayá, quase não há outros pontos deste lado do vale que permitam a explicitação do panorama do vale. Do outro lado do vale, esta geografia – marcada sobretudo pela presença ausente do Ribeirão do Bixiga, hoje invisível e canalizado, mas reconhecível pelas marcas que resistem na paisagem – também é visível apenas a partir de alguns poucos mirantes (alguns na Rua Santo Amaro) e sobretudo pelo janelão construído na intervenção de Lina Bo Bardi no Teatro Oficina.

Casa de Dona Yayá, São Paulo
Foto Ana Sieds [Wikimedia Commons]

Não se trata apenas de uma relação meramente física entre objetos posicionados no território: na mesma medida em que da Casa de Dona Yayá é possível construir memórias e narrativas sobre o bairro por meio da salvaguarda da relação entre sua implantação e o vale com que se comunica (visto que um dos motivos do seu tombamento é o fato do imóvel testemunhar as transformações na urbanização do bairro). Não se trata de isolar documentos históricos do cotidiano da cidade, pelo contrário, os bens materiais inseridos no espaço urbano propiciam relações simbólicas sem as quais sua preservação perde o sentido, constituindo-se referências culturais para os vários grupos sociais com os quais se articulam. Tais bens devem, portanto, se adaptar e responder às mudanças próprias da dinâmica da vida urbana e da cultura, mas também devem ter salvaguardadas as condições pelas quais tais relações entre suas dimensões materiais e imateriais se efetivam. Importante ressaltar que desde os anos 1980 foi incorporado o termo patrimônio cultural em substituição à expressão patrimônio histórico (ou artístico, arqueológico, paisagístico, turístico etc.), com o objetivo de reforçar que a salvaguarda dos valores que justificam a preservação de um bem é igualmente importante, não sendo possível a desvinculação e alienação dos objetos preservados dos sujeitos e grupos que constituem as matrizes de tais valores.

Qualquer construção no fundo do supracitado vale (justamente aquele que propicia as relações acima delineadas entre objetos, pessoas, narrativas e práticas culturais) poderá romper a conexão entre tais bens e a geografia do vale. Além da agressão à continuidade simbólica dos elementos presentes no panorama local, pode-se perder a oportunidade de promover uma discussão mais ampla a respeito da implantação mais adequada de intervenções em lugares de memória repletos de significado, bem como de promover projetos de interesse social e que valorizem o perfil do bairro.

Casa de Dona Yayá, São Paulo
Foto Ana Sieds [Wikimedia Commons]

Qualquer interferência em uma paisagem consolidada pode promover o rompimento de laços simbólicos. É neste sentido que a definição de áreas envoltórias para bens tombados deve ser avaliada: não como um isolamento para a consagração de monumento, mas, como um conjunto de referências com as quais os bens se articulam. É assim que entendemos a relação, por exemplo, da Casa de Dona Yayá com o vale que dela se avizinha. Não se trata de coibir a inserção de quaisquer novos objetos que pudessem romper sua visualidade, mas da possibilidade de aproveitar esta área envoltória como potencializadora de relações.

Deve-se, portanto, não se limitar à apreciação da paisagem do bairro apenas como um agrupamento de objetos físicos dispostos em um certo tecido topográfico: estamos falando, ao contrário, de uma realidade muito mais complexa na qual narrativas várias se entrelaçam, constituindo um conjunto de valores imateriais associados fortemente à materialidade do território e de seus objetos. A paisagem deve ser entendida como uma entidade relacional e não apenas como um panorama — para usar a famosa expressão de Berque — ou mais propriamente como uma "experiência partilhada", como sugere Sandeville, dependente que é da interação entre os vários sujeitos que a constituem.

Neste sentido, ainda que não oficialmente chancelado como paisagem cultural, o bairro do Bixiga pode ser entendido na perspectiva desta abordagem patrimonial renovada, seja pela enorme quantidade de bens tombados aí presentes, seja pelas várias outras manifestações culturais que nele se efetivam. A inserção de um novo objeto no cruzamento das ruas Jaceguai e Abolição, não pode ignorar esta teia de narrativas. Não se trata de uma recusa a qualquer tipo de inserção de um novo objeto neste sítio, mas da devida apreciação de suas relações. Entre as práticas culturais que se dão nesse território, para além da sua fruição cotidiana pelos seus moradores, encontra-se a própria incorporação do espaço urbano pela ação teatral e cênica da Companhia de Teatro Oficina, tomando sua sede como elemento articulador.

Casa de Dona Yayá, São Paulo
Foto Dornicke [Wikimedia Commons]

O terreno em questão se encontra justamente em meio a um conjunto amplo de bens tombados: além da Casa de Dona Yayá e do Teatro Oficina, cabe citar o Edifício Japurá, o Castelinho da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, a antiga sede do Teatro Brasileiro de Comédia, a Escola Maria Augusta Saraiva, entre outros. Qualquer intervenção nessa área tão central de uma rede de bens e práticas culturais parece-nos demandar ao menos uma discussão que articule os atores ligados a esses vários bens e práticas — que não se limitam aos bens oficialmente reconhecidos, estendendo-se às manifestações culturais que ocorrem, por exemplo, nos baixios do viaduto vizinho ao terreno, em suas várias formas de ocupação. Na mesma medida, ainda em uma chave patrimonial, é preciso discutir o impacto do empreendimento na fruição cotidiana deste território promovida pelos que nele vivem e trabalham: em um bairro tão repleto de resquícios de antigas vilas operárias (muitas delas tombadas), há que se considerar as transformações que um novo objeto arquitetônico introduzirá – inclusive aquelas de ordem gentrificatória.

Procuramos aqui argumentar, portanto, que não se trata apenas da inserção de um objeto que promoverá rupturas visuais, mas sobretudo simbólicas. Também não se trata de uma recusa a priori a qualquer intervenção, mas do reconhecimento da necessidade não só de projetos bem desenhados como de projetos bem articulados às teias simbólicas que os circundam, pois o que caracteriza algo como patrimônio cultural, ressalte-se, não são valores incrustrados na materialidade dos objetos, mas nas relações estabelecidas entre tais objetos e os vários atores sociais com os quais eles se articulam. Neste sentido, bons projetos podem fortalecer e potencializar estas relações enquanto outros podem rompê-las. Rupturas são bem-vindas quando pactuadas entre todos os envolvidos.

sobre os autores

Gabriel Fernandes, arquiteto e mestre pela FAU/USP. Atua no Centro de Preservação Cultural da USP (CPC USP), desenvolvendo trabalhos de cultura e extensão no campo do patrimônio cultural.

Mônica Junqueira de Camargo - arquiteta, professora livre docente da FAU/USP na área de História da Arquitetura Moderna e Contemporânea, ex-conselheira do Conpresp (2003-2007) diretora do Centro de Preservação Cultural da USP (CPC USP).

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