Nos anos recentes temos presenciado a ampliação dos levantamentos sistemáticos da arquitetura moderna nos mais diversos Estados brasileiros. Durante várias décadas os estudos eram escassos e quase todos eles dedicados aos protagonistas principais da Arquitetura Moderna Brasileira, termo que se aplicava de forma generalizante a toda uma geração de arquitetos, mas que era exemplificada quase que exclusivamente pelas obras de alguns poucos profissionais agrupados em torno de Lucio Costa, com algumas honrosas exceções. Os levantamentos realizados colocaram na geografia cultural do moderno arquitetônico brasileiro diversos outros Estados, ampliando assim o número de protagonistas e de obras. Esse processo, mesmo levando em conta o exagero motivado por falta de critérios, têm sido muito salutar, pois trouxe à tona uma complexidade e diversidade muito maior do que a coerência anterior supunha e defendia.
No caso de São Paulo, os levantamentos sistemáticos da última década resultaram em monografias, dissertações e teses de boa qualidade e que vem melhorando gradativamente graças à sedimentação de cada conquista. Uma qualidade que muitas vezes fica restrita ao próprio levantamento, mas que não pode ser desconsiderada por argumentos que apontam a ausência de solidez crítica, pois o primeiro passo a ser dado é justamente de recortar e documentar com critério as obras a serem estudadas. De resto, tais obras acabaram, por um processo de depuração, desencadeando um processo de produção editorial ainda incipiente mas muito importante, com a publicação de livros sobre Vilanova Artigas, Rino Levi, Oswaldo Bratke, Lina Bo Bardi, Paulo Mendes da Rocha, Joaquim Guedes, Grupo Arquitetura Nova, Walter Toscano e outros. O caráter monográfico destas edições confirma o estado ainda inicial dos estudos, mas atesta a maturação de um processo de mais de uma década, que vem ocorrendo dentro dos muros das Universidades.
Os livros são apenas a ponta do iceberg. Os custos quase proibitivos de um livro no Brasil cerceiam a possibilidade da maior parte desta produção chegar às prateleiras das livrarias. Não é de se estranhar, portanto, a crescente importância e atenção que a ONG internacional Docomomo – International working party for Documentation and Conservation of buildings, sites and neighbourhoods of the Modern Moviment – tem merecido em diversas regiões do país e, em especial, no Estado de São Paulo. Na ausência de fóruns mais tradicionais que dessem conta do escoamento à produção em curso e a impossibilidade econômica (e também institucional) de publicações mais constantes, permitiram que os seminários e encontros do Docomomo ocupassem um lugar estratégico na comunicação pública de trabalhos desenvolvidos por pesquisadores de diversas escolas.
A coincidência entre a defesa da dissertação de mestrado de Luciana Tombi Brasil, que versa sobre a obra de David Libeskind, e o I Seminário São Paulo Docomomo Brasil, ocorrido em São Paulo entre 22 e 25 de setembro, não é apenas de datas, mas também de assunto. O evento tematiza “A modernidade paulistana” e homenageia ao longo dos dias os arquitetos Gregori Warchavchik, Eduardo Kneese de Mello e Ernest Robert de Carvalho Mange e a paisagista Mina Klabin, todos eles, com exceção do primeiro, à espera de livros monográficos sobre suas obras. Assim como eles, continuam esperando o seu livro arquitetos da estirpe de Franz Heep, Ícaro de Castro Mello, Giancarlo Palante, Henrique Mindlin, Lucjan Korngold, Abrãao Sanovicz, Eduardo de Almeida, Salvador Candia e muitos outros. São brasileiros de diversos Estados e estrangeiros de diversos países que aportaram em São Paulo para construir suas obras. Ao selecionar a obra de David Libeskind como assunto de sua dissertação de mestrado, Luciana Tombi Brasil participa desse esforço coletivo com a grata surpresa de trazer para a cena uma obra importante, do autor de um dos principais edifícios de São Paulo – o Conjunto Nacional, na Avenida Paulista.
A primeira aproximação a se fazer ao trabalho de Luciana Tombi Brasil é entender sua pesquisa dentro deste contexto da pesquisa universitária e de sua conexão com a difusão em eventos e publicações. Quando folheamos o pequeno volume de capa branca, a primeira constatação é a de sua primorosa edição, com projeto gráfico agradável, diagramação cuidadosa, fotos e desenhos muito bem impressos. Evidentemente, as facilidades editorias disponibilizadas hoje pela informática não só facilitam como na verdade tornam possíveis – tanto do ponto de vista técnico como financeiro – trabalhos com tal requinte, mas o que é fundamental, em nosso ponto de vista, é que muito desse apuro se deve ao grau de exigência incutido no meio acadêmico, fruto das conquistas estabelecidas e estabilizadas pelo conjunto de pesquisas anteriores. Hoje se tornou quase uma exigência o redesenho em Autocad das plantas e cortes dos projetos estudados, publicados em escalas conhecidas, portanto passíveis a observações mais acuradas. Também há um consenso sobre a importância da documentação como alicerce de uma tese (ou, em outras palavras, o compromisso que cada dissertação ou tese tem com a produção científica como um todo), o que implica em um esforço por uma maior horizontalidade do levantamento de obras, com uma grande abrangência, que ultrapassa em muito o recorte específico da hipótese central do trabalho individual. Não se quer aqui, em absoluto, diminuir uma vírgula sequer a enorme qualidade do realizado pela autora, mas destacar o quanto um trabalho acadêmico só faz sentido dentro de uma estrutura organizada, que conta com regras institucionais evidentes e valores culturais como pano de fundo.
Se o trabalho é muito bem resolvido em sua formatação, vale mencionar alguns problemas pontuais, que podem ser corrigidos em uma eventual publicação (ou quem sabe com uma errata, para os volumes que ficarão disponíveis na biblioteca). Falta, por exemplo, uma listagem de fonte e autoria das imagens (o livro Rino Levi – arquitetura e cidade, por exemplo, não consta da bibliografia, mas é fonte de imagens). Faltam igualmente algumas notas de rodapé, dando as merecidas autorias para as fontes intelectuais, como é o caso de algumas passagens sobre Oswaldo Bratke, que vêm quase que literalmente do livro de Hugo Segawa, sem que isso esteja devidamente registrado. Ainda sobre as notas, é de se notar a mudança brusca, no meio da dissertação, do sistema adotado. Mesmo levando em conta que algumas informações não são essenciais para o desenvolvimento dos argumentos, algumas informações do interesse de um estudioso, como é o caso dos nomes dos demais participantes do Concurso para o Conjunto Nacional, também poderiam constar de notas, o que só enriqueceria ainda mais o trabalho.
Sobre o item “documentação” vale a pena tecer mais alguns comentários. Por um lado, a preocupação em elucidar as decisões de projeto em um contexto mais geral, levou a autora a fazer um acompanhamento da trajetória do arquiteto paranaense, que completa sua formação acadêmica e intelectual em Belo Horizonte, com uma grande influência das artes plásticas, iluminada pela presença especial do pintor Guignard. Um segundo item do levantamento é a enumeração de todas as obras de Libeskind, construídas ou não, seguido pela iconografia, com a apresentação de uma grande quantidade de fotos, desenhos, pinturas e outras peças gráficas do arquiteto. O quarto item é o redesenho em AutoCAD, o que não é propriamente um levantamento de fonte primária, mas que tem se mostrado um excelente instrumento de se registrar a obra de arquitetura. Por si só esta parte do trabalho transforma a dissertação de Luciana Tombi Brasil em uma obra obrigatória de referência, o que lhe dá, já de início, o estatuto de obra qualificada.
Uma qualificação que vai muito além, garantida pela escrita fluente e elegante, que torna a leitura da tese em momentos muito agradáveis. A disposição do material e dos argumentos ao longo dos capítulos, as descrições e comentários, etc., são aspectos distintos que apontam para um talento inato para a pesquisa e para a escrita, como também para uma silenciosa mas visível presença do orientador. Contudo, uma questão é fundamental quando estamos avaliando um trabalho acadêmico: este precisa ser considerado a partir dos seus próprios pressupostos e de suas próprias intenções. Mas também é necessário avaliar o quanto tais pressupostos e intenções do autor se sustentam e quais são as eventuais limitações. Luciana Tombi Brasil diz que pretende estudar “a coerência em cada obra, e não sua originalidade” (p. 147). Ao alinhar 12 residências projetadas e construídas por David Libeskind, a autora defende que “esta organização tem como proposta fortalecer a idéia de que existe uma linguagem presente no conjunto de sua obra, por se tratarem de temas recorrentes em vários momentos da produção para habitação unifamiliar do arquiteto” (p. 252).
Luciana Tombi Brasil tem, portanto, como premissa a busca de uma constante na obra do arquiteto estudado, uma espécie de busca de permanências que conformariam a “arquitetura de David Libeskind”. Tais constantes ou permanências, que se repetiriam ao longo da obra e ao longo dos anos, seriam conceitos ou recursos de projeto, como a autonomia volumétrica; o espaço fluído (unicidade e continuidade espacial); o plano transparente em contrastes com a opacidade dominante; os jardins especializados para quartos, áreas sociais e de serviço; a estrutura recompondo o prisma extrudido. A autora prioriza as permanências e dentre os vários aspectos passíveis de análise arquitetônica – materiais, tipológicos, estruturais, etc. – há uma clara predileção pelo agenciamento programático, que é hegemônico nas descrições de cada residência. A predileção se confirma no último capítulo, dedicado à análise das residências, pois dentre as 4 categorias dos diagramas de análise comparativa – setorização de usos; organização geométrica e sistema de distribuição; espaços de transição; e planos verticais e horizontais – os 3 primeiros focam o agenciamento programático. Escolha que acarreta, em nosso entendimento, alguns problemas, como é o caso da negligência com que é tratado o uso dos materiais por parte do arquiteto. Intuímos que estamos diante de um elemento muito importante no raciocínio de David Libeskind e que foi injustamente rebaixado à uma posição secundária. Talvez haja aqui conexões inexploradas com outros arquitetos (quem sabe Frank Lloyd Wright...); talvez esteja aqui uma possível relação entre os trabalhos de pintor e arquiteto, que não é desenvolvida (e até ficamos em dúvida sobre a definitiva opinião da autora sobre isso, uma vez que no início ela afirma serem trabalhos autônomos, para no final pressentir uma possível conexão).
A série de 12 residências unifamiliares conta com projetos de várias décadas, com a seguinte divisão: 8 casas da década de 50; 2 casas da década de 60; 1 casa da década de 70; e 1 casa da década de 80. Como há uma manifesta opção por uma análise estrutural (imanente), o que é realçado após a leitura da descrição e análise comparativa é o quanto tais projetos se filiam a um mesmo tipo de raciocínio. O que, na nossa opinião, não é confirmado pelos projetos, principalmente ao olharmos para as fotos das residências construídas. A residência Ângelo Aurélio Rezende Lobo, construída em Belo Horizonte, em 1952, quando o arquiteto ainda era estudante, mostra uma casa interessante, mas totalmente tributária dos elementos formais da arquitetura de Oscar Niemeyer e Affonso Reidy. Primeira casa da série, ela traz alguns elementos que podem ser verificados nos futuros projetos construídos em São Paulo, mas eles seguramente são de menor importância, diante das decisões de compromisso que conferem a visibilidade do projeto. Do último projeto da série, residência Ulisses Silva, de 1983, um projeto cheio de incongruências formais e apelos fáceis do repertório acomodado, preferimos nem tecer comentários mais alongados, a não ser que não deveria constar da série, pois cria um anticlímax indesejável, colocando sob suspeição a qualidade geral de sua obra.
Mas vale a pena alguns comentários sobre as duas outras casas tardias, a última dos anos 60 e a única da década de 70. Nestas seguramente a proximidade com a obra de Oswaldo Bratke, mencionada pela autora, é mais evidente do que nas demais casas. Há nestes projetos uma legibilidade instantânea, ou seja, a partir da visibilidade de algum aspecto da casa, intuímos rapidamente a sua totalidade, pois ocorre uma propagação de seus princípios, principalmente da geometria regular e sintética. Na verdade, a casa 10 – residência Aron Birmann, 1969 – podemos observa um ponto de inflexão em relação à obra anterior, pois o sistema estrutural, sempre subtraído da percepção nas casas anteriores, surge de forma ostensiva. A estrutura, recalcada fortemente nos 8 projetos restantes, surge agora como protagonista, presente no vigamento ritmado na fachada principal, marcando de forma clara a matriz geométrica que organiza o projeto. Tais distinções, que conferem à primeira casa da série no máximo o estatuto de “precursora” e retira as 3 últimas por inadequação, conformam um recorte mais estreito de um quadro de permanências, com praticamente todas as casas situadas na década de 50 (a última delas, a própria casa do arquiteto, é de 1961). Ou seja, a homogeneidade procurada parece ser muito mais restrita no tempo do que supunha a autora, problema que parece apontar para um limite do método ou quem sabe da manipulação inadequada do método pela autora, dúvida que não nos consideramos aptos a responder neste momento.
Gostaríamos também de ressaltar que nos capítulos iniciais do trabalho são mostradas as conexões culturais do arquiteto estudado (sua proximidade com a pintura, a amizade e trabalho com diversos arquitetos, sua imersão nos ambientes culturais das capitais mineira e paulista, etc.). São informações muito importantes, que conformam um quadro de referências que explica diversas predileções e escolhas do arquiteto David Libeskind. Mesmo ao longo dos capítulos nos deparamos com diversas referências projetuais (arquitetura carioca, Case Study de John Entenza, Le Corbusier, a casa Schoroeder e o neoplasticismo holandês, as casas modernas premiadas e expostas nas Bienais de São Paulo, etc.). Quase todas elas são referências episódicas e rápidas, com exceção do Case Study e das casas expostas na Bienal. Curioso notar que a presença de tais referências são um tanto contraditórias com a escolha de um método analítico que prioriza as relações imanentes às obras, mas elas funcionam muito bem para elucidar diversos aspectos da obra de Libeskind. Os limites evidentes do método adotado (ou da utilização do mesmo) não são fortes o suficiente para desmerecer o trabalho como um todo, pois contradições deste tipo são normais em trabalhos da juventude intelectual e a os prós já ressaltados são muitos e qualificados.
Ao olharmos para a obra de David Libeskind constatamos que estamos diante de um arquiteto de sedimentação e não de invenção. Se usarmos a comparação tradicional entre a invenção de Leonardo da Vinci e a síntese de Rafael, certamente estaremos diante de um “Rafael”. Libeskind é um arquiteto que sintetiza elementos desenvolvidos em vários contextos culturais – é possível observar elementos vazados típicos da arquitetura carioca, os planos deslizantes do neoplasticismo, os pátios a la Rino Levi e Daniele Calabi, etc. –, o que não é nenhum demérito, pois a maioria absoluta dos melhores artistas fazem o mesmo. Mesmo que análise estrutural e imanente de Luciana Brasil deixe escapar esse dado (afinal, ao permanecer dentro da própria obra é impossível se estabelecer um quadro comparativo mais largo), a própria construção da dissertação – que, como já mencionamos, mantém algum desacordo com o método – acaba nos apresentando este arquiteto, que a partir de formas e elementos já desenvolvidos, constrói uma obra particular e muito qualificada.
[resenha baseada na argüição pronunciada na banca de mestrado de Luciana Tombi Brasil, ocorrida na FAU-USP, São Paulo, no dia 24 de setembro de 2004.]
sobre o autorAbilio Guerra, arquiteto, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e do Unicentro Belas Artes, é editor do Portal Vitruvius