Publicado inicialmente nas páginas da revista holandesa Forum, editada por Aldo van Eyck, The Idea of a Town ganhou realmente notoriedade a partir de sua publicação inglesa revisada, de 1976. Não é apenas um livro sobre cidades da Antigüidade, mas, como todos os bons livros de história da arquitetura e da cidade, é instigado por questões atuais, questões que continuam a desafiar o arquiteto preocupado com a cidade.
Muitas vezes, somos levados a pensar que, se o estado atual de nossas cidades é fruto apenas das pressões de mercado, nós, arquitetos-urbanistas, estaríamos absolvidos de qualquer culpa. Rykwert, entretanto, não concorda em aderir a esse pacto conivente. O livro é uma crítica aos urbanistas que consideram a cidade “exclusivamente pela perspectiva da economia, da higiene, dos problemas de tráfego ou dos serviços”, como sabiamente notou Van Eyck na apresentação da publicação original. É uma crítica àqueles profissionais que reduziram a cidade a abstrações, quando adotaram critérios estritamente funcionais, e a observaram pelo prisma único da habitação.
Rykwert mostra que o tecido urbano que estrutura a vida da cidade precisa ser mais duradouro do que aquela sociedade específica que o gerou. Os tecidos urbanos devem ser claramente reconhecíveis de modo a permitir ao cidadão de uma época ler sua cidade, entender seus níveis superpostos, e, o mais importante, situar-se em relação aos seus antepassados e aos seus concidadãos. O objetivo de Rykwert não consiste em mostrar como era o planejamento das cidades na Antigüidade, mas sim, como os planejadores de cidade pensavam seu ofício e como recorreram aos rituais e mitos para formar o ambiente urbano. Longe de adotar uma visão idílica, mostra-se ele plenamente consciente das mazelas e problemas da cidade antiga e não advoga um retorno a uma suposta ordem antiga.
Rykwert dedica-se primordialmente à cidade etrusca e romana como uma obra simbólica que fazia sentido para seus cidadãos, que correspondia aos seus anseios simbólicos. A forma da cidade, suas muralhas e entradas, seus espaços urbanos e seus edifícios públicos principais eram construídos tendo como base uma série de rituais e cerimônias. Esses rituais situavam os romanos dentro de um universo reconhecível por eles próprios.
Contrariando os historiadores que identificam nas estratégias de defesa, no controle de rotas de comércio e nos motivos de ordem higiênica e econômica as razões de fundação de uma cidade, Rykwert mostra que nem sempre esses imperativos racionais foram determinantes na fundação das cidades. Apoiado em vários autores da era clássica, ele detalha com precisão todo o conteúdo ritualístico de fundação das cidades, começando pela escolha do seu local, por meio dos exames dos augúrios, que incluíam o vôo de pássaros, o comportamento dos animais, o exame das vísceras de animais, os trovões e outros sinais oriundos da natureza, interpretados como mensagens divinas que referendavam ou não a escolha dos homens.
Com o término das cerimônias, a cidade tinha recebido as bênçãos dos deuses que tinham demonstrado sua benevolência para com a comunidade, mas os ritos continuavam com o gesto de arar a terra e demarcar os limites do mundo urbano. Após estar o sítio purificado e claramente delimitado, a comunidade apossava-se da cidade. Admitindo que cada passo no crescimento da cidade era acompanhado de rituais, Rykwert analisa o caráter sacro atribuído às muralhas que a protegiam bem como, às portas que lhe guardavam o acesso e lhe marcavam o adentrar. Os elementos defensivos (fossos, muralhas) suplantavam sua dimensão material e adquiriam um caráter simbólico, visto que guardavam, assistidos pelos deuses e deusas, a unidade social e religiosa da comunidade.
Em um dos últimos capítulos, Rykwert transcende os exemplos romanos e etruscos e procura paralelos em outras sociedades ditas ‘primitivas’, já que o ser humano sempre procurou se reconciliar com seu cosmos e seu espaço. Ele foi bem sucedido ao encontrar nesses exemplos uma poética de construir moradas e espaços comuns que conectariam a comunidade ao seu cosmo. Rykwert mostra como a disposição de aldeias de tribos ditas primitivas refletiam uma forma de interpretar o mundo e de se estruturar socialmente, como os Dogon na África ocidental, que tanto fascinaram Aldo Van Eyck, e as tribos Bororó do Alto Xingu, estudadas por Claude Lévi-Strauss, dentre outros povos. No caso brasileiro, Rykwert utiliza as conclusões de Lévi-Strauss em Tristes Tropiques para mostrar como a reorganização espacial proposta pelos missionários, alocando os Bororós em vilas formadas por série de filas paralelas, destruiu totalmente a organização social da tribo baseada em uma disposição circular que estava em harmonia com sua visão de mundo. Além de Lévi-Strauss, Rykwert serviu-se exaustivamente de textos clássicos das ciências sociais, como os de Fustel de Coulanges, em seus estudos sobre como a estrutura da cidade antiga era entendida e transformada por seus cidadãos, e Mircea Eliade, em seus estudos das crenças religiosas, dos mitos e da dimensão sacra.
Os ritos de fundação de cidades, portanto, estavam muito próximos das experiências religiosas. Cada fundação de uma cidade romana, por exemplo, reiterava a fundação da própria Roma que, por sua vez, representava a própria criação do mundo. De fato, a construção de uma cidade, ou mesmo de uma casa, em muitas culturas é feita à semelhança de uma instituição divina que simboliza o centro do mundo. Os rituais de fundação detinham uma importância capital para a vida de uma comunidade, pois afirmavam que a estrutura urbana estava em harmonia com as forças que regem o cosmo. Esses rituais eram constantemente rememorados em seus monumentos e templos. Rykwert mostra como esses rituais sobreviveram, embora transformados e atenuados, até a o fim da Idade Média e o início da Era Moderna.
O que preocupa Rykwert é a perda de uma atitude sacra diante do ambiente e do mundo devido ao advento da razão iluminista e do progresso científico a partir do século XVIII. O fim das cosmologias e das religiões tradicionais parece ter privado o homem de se situar dignamente em relação ao universo, tendo efeitos desagregadores sobre a forma como nós nos comportamos em sociedade e como nos sentimos em nossas cidades. O que Rykwert sugere é que as pessoas só se sentem parte de uma comunidade se há uma correspondência entre seu cosmo e o mundo construído que as rodeia.
The Idea of a Town faz parte de um conjunto de livros publicados entre o final dos anos 50 e a década de 60, os quais criticaram os ambientes produzidos no pós-guerra. Adotando diferentes perspectivas, autores como Jane Jacobs, Herbet Gans, Kevin Lynch, Gordon Cullen, Aldo Van Eyck, Henri Lefébvre e Aldo Rossi contribuíram para transformar a maneira de se pensar as cidades. Apesar de The Idea of a Town fazer parte desse conjunto, consegue, mais do que eles, transcender o contexto no qual foi feito.
O lançamento desse livro acontece em um momento oportuno no Brasil, sobretudo para as nossas escolas dominadas por um pragmatismo que se recusa a olhar para a própria cidade se esse olhar não for forjado por critérios ou metodologias pretensamente científicas. Quando pensamos em nossas cidades – engolfadas em um violento conflito social, assustadas pelo crime organizado, comprometidas pela falta de infra-estrutura e sacrificadas cada vez mais por estacionamentos, muros, guaritas e anúncios – as discussões presentes nesse livro parecem estar muito distantes de nossa realidade. No entanto, cabe a nós pensar em como dar um novo significado às nossas cidades, um significado que transponha o prosaico objetivo do cumprimento de nossas obrigações do dia-a-dia. Um tema que transparece em vários daqueles rituais analisados por Rykwert é o tema da reconciliação: a reconciliação entre o cosmo e a terra, o sacro e o mundano, a cidade e a natureza, os cidadãos e as suas instituições, e entre seus próprios cidadãos. Esse tema parece surgir como uma chave de leitura para que se restabeleça a cidade como o grande locus da experiência do homem enquanto ser civilizado, uma parte inalienável de nossa cultura.
[o presente texto é um trecho adaptado da introdução do livro]
sobre o autor
Fernando Diniz Moreira, Ph.D. em Arquitetura pela Universidade da Pensilvânia e Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)