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BAGOLIN, Luiz Armando. Os dois desenhos de Niemeyer. Resenhas Online, São Paulo, ano 07, n. 078.04, Vitruvius, jun. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/07.078/3070>.


Há dois tipos de desenho em Niemeyer, sendo o paradigmático e, menos, o didático, a expor atualmente sua obra arquitetônica subsumida à lógica de mercado. É o que dá a pensar a exposição e o livro (catálogo), homônimos, “Coleção Niemeyer: desenhos originais de Oscar Niemeyer/Biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo” organizados por Rodrigo Queiroz, com textos de Júlio Roberto Katinsky e Marco do Valle, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, MAC/USP.

Dos autores que produzem discursos nesta publicação merece especial atenção o de Marco do Valle, pois tanto o organizador quanto o arquiteto e professor Júlio Katinsky não se eximem de tom meramente apologético, e mais ratificam os estereótipos já traçados em torno da obra de Oscar Niemeyer do que intentam a análise crítica da mesma, segundo as categorias presentes em seu presente. Refreando suficientemente o louvor ao arquiteto, do Valle busca indícios, em seu texto, que resvalam dos próprios desenhos de Niemeyer nos “primeiros desenhos”; estes indiciam, no projeto para o Clube Esportivo, de 1935, a linguagem do escritório Warchavichik–Lúcio Costa, que, por sua vez, já traía o conhecimento do método de desenho lecorbusiano.

O desenho do franco-suíço, plasmado a partir de diversas referências artísticas e arquitetônicas, desde o Partenon ou Santa Sofia, até Cartuxa de Ema, contrariava o espaço cubista, tapeçaria sem sentido segundo L’Esprit Noveau e o Purismo, afirmando a continuidade espacial em que os volumes se deslocam em torno da figura humana: o eixo coincidindo com o ente. Mais do que meramente alusivo à nova arquitetura, maquinal, em que o primeiro homem, logo todos os homens, fornece o modelo ao mecanismo arquitetural, o desenho em Le Corbusier instrumentaliza o espaço, cristalizando o cenográfico. Permanece, no entanto, em seu desenho, a enunciação de profundidade que re-apresenta, elástico, o espaço, sem o sombreamento (adumbratio) prescrito na espécie arquitetônica scaenographia, ou a discriminação de luzes e sombras, que se inscreve, como doutrina, em todos os tratados de arquitetura desde os reditos da enciclopédia vitruviana, sendo ignorado o seu autógrafo.

Sem se efetuar nela as sombras, a cenografia lecorbusiana não pretende comover, mas instruir, deleitando o observador com o percurso de figuras humanas estilizadas no interior do desenho. Sendo elevada à condição de “ciência”, a arquitetura de Le Corbusier é, assim, campo de instrução que necessita “ser instruída” reiteradamente, seja pelo discurso, seja pela performance a qual aquele se subordina, no alvedrio à universalização do Novo. Foram pelas performances, tantas vezes presenciadas pelo grupo de arquitetos do Rio, do qual participava Niemeyer, à época da construção do “Ministério da Educação e Saúde”, MESP, assim como da “Cidade Universitária do Brasil”, CUB, que Le Corbusier pode reconduzir a comoção, efeito final para a persuasão no discurso, ao desenho, límpido, claro, didático, com o objetivo de fazer com que os espectadores brasileiros tornassem-se partícipes dos projetos, elevados à condição de eventos ou fatos sócio-político-culturais. A performance lecorbusiana é imediatamente percebida e assimilada por Oscar, que auxilia Le Corbusier em suas demandas no escritório de Carlos Leão, no Rio, de acordo com de Valle. Supostamente daí surge prática de Oscar de tirar um desenho com ar de originário mesmo após já sabê-lo exercitado, inúmeras vezes, inclusive em nível de projeto executivo.

A performance ou o artifício consiste em fazer o desenho parecer “sacado” de uma “mão desembaraçada” como desembaraçado deve ser o espaço contínuo da arquitetura moderna. O convívio, aparentemente, entre o mestre amadurecido e o jovem voluntário pode permitir ao segundo desenvolver uma forma de representação gráfica mais adequada aos propósitos do ideário modernista em arquitetura. Como lembra do Valle, citando Lúcio Costa em entrevista de 1987: “Dos vários arquitetos, tinha um – o Oscar – que toda a hora estava à mão e pronto a fazer qualquer coisa” (pág. 120).  Lúcio Costa, e do Valle, insistem na tese de um desenvolvimento singular no desenho de Oscar, a partir de três projetos específicos: o Clube Universitário (1936), a Maternidade (1937) e o Pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Nova York (1939). Nestes, muito embora ainda haja a adoção de soluções técnicas já conhecidas na metodologia lecorbusiana (plataforma-matter, pilotis), perfila-se, ousada, a deformação das formas cúbicas dos projetos de Le Corbusier, comprimindo-as na direção do solo, amplificando o sentido de horizontalidade das superfícies que, assim, se estreitam e alongam. É como se Oscar houvesse colado um papel de seda sobre o desenho da casa Citrohen de Le Corbusier, tirando-o novamente de forma mais esgarçada, o que do Valle denomina de “redesenho”. A estratégia é desenvolvida nestes e em outros projetos, segundo o autor, valendo-se da mesma para desenhos ou projetos autorais. Referindo observação feita nos anos 50 por Stamo Papadaki, do Valle chama a atenção para a necessidade, herdada do método lecorbusiano, de produção de “desenhos explicativos”, com ênfase, para a tese que ora ilustra, naqueles que descrevem as curvas do Auditório do Ministério da Educação (1948): o olho solitário figurado acima do horizonte no tirante da paisagem que escapa do edifício, figurado no desenho, monumental. Se a perspectiva de luz e sombra foi também aqui erradicada, como em Le Corbusier, não se dá, no entanto, a presença da esquiagrafia, avessa aos artifícios da cenografia cristalina, e muito mais da performance.

Não sendo mais retorizadas, as formas do desenho de Niemeyer investem-no, entretanto, em ideologia demarcada pelo moderno. Oferecem-se seqüencialmente, em colagem, com fotos de maquetes, buscando os mais complexos a articulação do espaço interior com o exterior, ainda no artifício da perspectiva, por exemplo, nos projetos para o conjunto da Pampulha, de 1940-1942, como o Iate Clube, o Hotel Resort, e outros lugares do luxuoso complexo projetado para Kubitschek, porquanto é por seu didatismo que se reprova o dandismo, desprezível ao novo modelo social, utópico, imaginado pelos urbanistas dos CIAM. Partindo dos princípios que encetam a Cidade Radiosa de Le Corbusier (1930-35), os congressistas dos CIAM abjuraram ao modelo de urbanismo propugnado pelos arquitetos do final do XIX, que tinha no corpo humano exposto à enfermidade, o objeto de intervenção, restauradora. Para os modernos, a cidade deveria ser pensada como uma máquina, um organismo vasto e funcional nas inter-relações entre as suas diferentes partes.

O antropólogo James Holston observa em A cidade modernista (1993), que a estratégia do novo urbanismo, modernista, é dupla: de um lado, pretende a divisão clara dos serviços e setores organizacionais da cidade como “moradia, trabalho, recreação e circulação”, e a conseqüente redefinição destas categorias em nível de comportamento social. Por exemplo, ao abolir a rua, separando completamente pedestres e automóveis, tal urbanismo propõe outro modelo para a circulação, dissolvendo a multidão, esta arrastando junto a si a confusão devida ao consuetudinário. Por outro lado, e em virtude destas “redefinições”, novas formas arquitetônicas se fazem necessárias, e necessariamente inauditas porque condutoras de novas práticas sociais. A arquitetura pode se tornar agente de transformação, segundo os CIAM, da experiência social que permite a coexistência de todas as classes sociais dentro de um mesmo organismo, na tessitura urbana da cidade.

Latentemente democrática, a nova arquitetura incorpora a transparência pelo transparente das paredes, na pele de vidro, e pelas formas cristalinas, às vezes polidas na erosão pela luz alvejante dos trópicos, como em Niemeyer, para que tudo nela se veja, e para que todos a vejam, nela recusando-se até mesmo as massas de vegetação que obstaculiza a vista. Não é adequado que se pense como propõe do Valle, citando Sophia Silva Telles (p. 130), que a obra arquitetônica de Niemeyer, a partir da década de 40, ceda às livres possibilidades de modelação do concreto armado plasmando formas abertas conforme a fantasia autoral, eximindo-se do compromisso com o rigor funcionalista, pela emulação do sensualismo da natureza brasileira, como o próprio Niemeyer, aliás, afirma em A forma na arquitetura (1978). Mesmo não seguindo exatamente o apotegma vitruviano, reditado em Laugier, Lodoli, Algarotti, em tantos outros, nada se fazer a que não se possa dar boas razões, que serve também a Le Corbusier em sua batalha contra a arbitrariedade da construção burguesa, Niemeyer se atém ao projeto fundamental do modernismo lecorbusiano ao se engajar com o ideário positivo da cientificidade e do progresso tecnológico a serviço da perfectibilidade social, assim como na crença, ingênua certamente, na invariabilidade da natureza humana, originária, e, portanto, intróito do Novo Mundo como também da Nova Arquitetura.

Ao afirmar a “forma livre e criadora” como qualidade discriminadora de sua arquitetura em relação à de Le Corbusier, Niemeyer afasta-se, enquanto posição discursiva, do ideário moderno que des-singulariza o autor. Através da construção de alguns silogismos primários em A Forma, tais como a linha na arquitetura moderna européia (lecorbusiana) é retilínea, a linha de minha arquitetura é curvilínea, logo a minha arquitetura é nova (pois traz a curva) em relação à praticada na Europa, Niemeyer demarca seu afastamento do pensamento e do desenho lecorbusiano e, conseqüentemente, o nascimento de sua identidade, singular. Inversamente, é Pampulha, a introduzir definitivamente a arquitetura de Niemeyer, segundo ele mesmo depõe, no endêmico, o que está prescrito em algum ideário da arquitetura moderna, hiperbolizando-se tal posicionamento, em Brasília, nos anos 50. Moderno, por um lado, ao arrancar formas arquitetônicas absolutamente novas do solo brasileiro, tal como brotam naturalmente dos campos, no cerrado central, barbatimões ou mangabas; anti-moderno, por outro, uma vez que insiste em demarcar a origem desta arquitetura em faculdade de conhecimento que se dá no sujeito e suas respectivas idiossincrasias, Niemeyer amplifica a confusão em torno de si e de sua obra, quanto mais pela sua ligação, pelo menos no plano ideológico, com o partido Comunista.

Como lembra do Valle, a partir dos anos 50, Niemeyer utiliza Módulo, revista da qual foi editor, como instrumento de divulgação de sua obra autoral. Mas ao contrário do que sugere o autor, esta mídia foi explorada com desenhos que gradualmente vão perdendo o seu caráter didático e cedendo terreno para o paradigmático, nome que não se apresenta no livro. Os seus desenhos, então, passam a representar os seus próprios desenhos, numa espécie de tautologia que ratifica e amplifica a presença ou marca autoral. Tanto mais, que estes desenhos, paradigmáticos, são ensaiados previamente à execução exposta às mídias de comunicação, a exemplo do que ocorre com cartunistas ou chargistas, muitas vezes. Reforça esta presença autoral, o caráter menos técnico e mais aproximado ao desenho livre, que, nas formas do originário, buscam algo como a garatuja infantil proposta por Victor Lowenfeld. Assim como na criança, o infans, investido no originário, o desenho de Niemeyer ficcionaliza para si e para os outros o instante em que a pena encontra pela primeira vez o papel, momento significativo, mesmo sem sentido aparente, na conquista do espaço como primeira conquista humana. Niemeyer talvez acredite (uma vez que um homem representa todos os homens) no seu gesto gráfico como instaurador de uma nova forma, logo de uma nova ordem (novamente um silogismo), libertária porque nova, não importando quem pague por ela ou movido por que interesses. A exposição, aliás, merece ser vista.

sobre o autor Luiz Armando Bagolin é artista plástico, doutor em filosofia pela FFLCH/USP, pesquisador e professor de teoria e história da arte e arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC MINAS/campus Poços de Caldas.

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