Memorial Itapuã/Itaparica
Se Vila Velha é o convento de N. Sra. da Penha, é a Prainha, a Glória, a Barra do Jucu, a Praia da Costa, se é tudo isso e muito mais, Vila Velha também quer ser, agora e sempre, Itapuã e Itaparica, com suas areias e suas ondas, e, principalmente, sua luz que tudo harmoniza.
Assim, como idealizar uma praia urbana que seja a expressão de uma cidade como Vila Velha? Mais do que oferecer à população usuária a infraestrutura necessária às expectativas de entretenimento cultural e desportivo em seu espaço, Itapuã e Itaparica querem ser cidade, isto é, representação de uma imagem pública de um determinado lugar.
Comecemos, portanto, a definir alguns critérios que nortearam o projeto das praias de Itapuã e Itaparica:
a. Dotar o espaço existente residual – hoje um asfalto inóspito – de qualidades visuais e ambientais capaz de transformar tal praia urbana num local aprazível, bonito, simbólico e cômodo.b. Pensar o calçadão e a ciclovia não apenas como via de circulação junto ao mar, mas como local de percurso sincopado, onde se possa desfrutar do tempo enquanto qualidade do espaço.c. Verde, muito verde!
d. Uma unidade formada por fragmentos que se integram harmonicamente, ou seja, cada parte da urbanização deve ter uma particularidade, mas que se submete a um princípio organizativo superior que é a própria praia urbanizada.e. Todos os equipamentos do mobiliário atendem a técnicas construtivas industrializadas, isto é, precisas, sofisticadas e disponíveis localmente, de modo a atender aos processos produtivos mormente aceitos e aos limites orçamentários.f. Hierarquização setorial dos usos de modo a evitar conflitos, mas sem, com isso, impor uma dispersão dos vários grupos que compõem a alegre heterogeneidade de uma praia urbana.
Obedecidos tais aspectos, a conciliação dessas variáveis imbui um projeto no qual a principal imagem é a de um parque linear. A idéia do parque busca dotar o espaço urbano da praia de ambiência significativa, valorizando sensorialmente a fruição do lugar. Deste modo, tal região da praia não é apenas areia e mar, mas outras qualidades ambientais necessárias ao bem estar da população usuária. Ganham com isso todos, pois enquanto os moradores são beneficiados por uma área visualmente mais atraente, e que valoriza a orla, os visitantes – habitantes ou turistas – encontrarão uma praia enriquecida pela imagem de um parque, onde o paisagismo oferece novas possibilidades perceptivas, e que tem o papel de intermediar todos os usos oferecidos no local. Dito do outro modo, o parque abrange não só as atividades relacionadas com a praia – banho, esportes, encontros – mas todas aquelas fundamentais ao lazer democrático da população. Além disso, o parque também intermedia o agitado espaço da areia e o pano de fundo edificado, composto pelos edifícios da orla, criando uma agradável transição entre os elementos da paisagem urbana litorânea.
Apresentados tais argumentos em relação à proposta geral de um parque à beira-mar, o projeto da orla de Itapuã e Itaparica pode ser descrito da seguinte maneira:
1. Ao longo deste parque litorâneo configura-se três momentos distintos: uma área de vegetação mais horizontal, típica de restinga; outra de porte médio com sombreamento rendilhado e que concilia espécies exóticas com as autótones; e, por fim, uma área mais vertical, de sombra intensa. A justaposição contínua entre as três áreas determina a imagem geral do parque.2. Em todas as esquinas, as vias de tráfego são destacadas em cores e textura através do piso proposto, que tem como objetivo marcar o lugar de “trégua” entre veículos e pedestres.3. As vagas do estacionamento são todas localizadas junto ao meio-fio da praia à 45º, em trechos descontínuos, uma vez que diante das esquinas a vista é mantida desimpedida sem automóveis estacionados. Esta proposta é opcional ao sistema viário definido no edital, ficando sujeito à discussão futura.4. Margeando o meio-fio da praia, uma estreita faixa de calçada de segurança e, em destaque, a ciclovia.5. Dos pontos onde a faixa de travessia das vias encontra-se com o meio-fio da praia, saem calçadões curvos em direção à areia, onde, em seu limite, encontram-se decks de madeira, lugar privilegiado dos quiosques. Tal configuração determina um calçadão sinuoso, que valoriza a forma visual e o percurso sincopado.
6. Os espaços delimitados pela ciclovia e pelo calçadão sinuoso conformam áreas verdes plantadas, onde o paisagismo recupera a vegetação de restinga, própria do lugar, impregnando assim na praia um caráter de forte identidade, para que esta não deixe de apresentar sua característica urbana, com sua infraestrutura de instalações e serviços intrínsecos, mas também lhe proporcionando uma imagem particular.7. Os quiosques posicionam-se sobre decks de madeira (tal como já mencionado). Demarca-se, deste modo, uma área própria para a fruição daqueles usuários que desejam permanecer à beira-mar desfrutando do conforto dos quiosques. Estes, quando abertos, são os mais “transparentes” possíveis, permitindo que a vista da paisagem permaneça desimpedida visualmente; neste caso, a estratégia foi a de posicionar cozinha e depósito em nível inferior, mantendo, porém, o conforto e a segurança nos serviços prestados, para funcionários e usuários.
8. Postes integram num único objeto iluminação pública da via ao nível do tráfego, iluminação sobre a calçada ao nível do pedestre, cabine telefônica, lixeira e suporte para publicidade.9. No extremo sul, na área de restinga a ser preservada, os decks assumem o caráter de “base pousada sobre” o local, isto é, uma vez que estão elevados em relação ao meio-fio e à areia, eles tentam minimizar o impacto ambiental sobre a vegetação, enfatizando a imagem respeitosa com o lugar.10. Nos 6 pontos demarcados como de tratamento particular no edital do concurso, propõe-se uma maior concentração de equipamentos, especificamente os equipamentos de uso mais intenso como quadras, play grounds, ginástica, etc. Propostas de adendos à legislação urbana também visam reforçar o caráter nuclear destas áreas.
Se as imagens muitas vezes não são suficientes para descrever as intenções de projeto, este discurso propõe esclarecer as nuances que determinaram um projeto que ambiciona interferir na imagem de Itapuã e Itaparica, transformando-as, ampliando seus limites para além de praias conformadas por asfalto, um calçadão graficamente rendilhado e quiosques pitorescos. Não, o que se quer é uma praia com forte expressão simbólica e dotada de espaços significativos que venham adquirir valor histórico tanto para os canela-verdes como para os visitantes que aqui se encantam.
Urbanização e meio ambiente
Tanto a urbanização quanto à pavimentação necessária para o calçadão e caminhos em geral representa uma significativa parte do custo e do impacto do projeto no meio ambiente. A proposta procura incorporar conceito de sustentabilidade ao tomar decisões sobre técnicas, sistemas e materiais utilizados na obra.
De uma forma geral, a arquitetura e a urbanização utilizando os conceitos de sustentabilidade, procuram usar materiais de construção que causam pouco impacto ao meio ambiente, seja na sua produção ou extração, seja na sua instalação no canteiro. Neste caso busca-se soluções arquitetônicas inteligentes que aproveitam a ventilação e iluminação natural, utilizando-se de sistemas de captação de energias solar e eólica, além de sistemas de captação e reaproveitamento da água e esgotos. Uma tendência mundial é utilização de componentes reciclados para produção de materiais de construção.
Água e esgoto
O primeiro ponto abordado refere-se ao tratamento dos esgotos dos diversos conjuntos edificados. Cada conjunto terá um sistema de tratamento de esgoto centralizado de modo a maximizar sua eficiência e facilitar a inspeção e a manutenção do mesmo. Sempre que possível, estes ficarão o mais distante possível do mar por razões óbvias - preferencialmente no canteiro central, quando houver, ou o mais próximo possível do meio fio.
O sistema de tratamento, utilizado, recicla a água redistribuindo-a entre os diversos pontos de irrigação do “parque”, armazenando-a em cisternas. A água não volta ao consumo mais tem importante e abundante utilização gerando economia no uso de água pública. O bombeamento para irrigação é feito por kits de energia solar e bomba de baixa capacidade. Estes kits de irrigação, viabilizam-se por não precisarem de baterias.
Materiais
Outro aspecto importante é quanto ao material utilizado para a pavimentação. O asfalto, permanece, principalmente considerando o fato de que já existe, e em muitas partes, será reaproveitado. O paisagismo utiliza espécies locais e que requerem baixa ou nenhuma manutenção.
Os pisos e áreas de caminhos, alem do próprio calçadão utilizam-se de materiais de baixo custo. Algumas áreas em saibro e areia, principalmente em ilhas de equipamentos de ginástica e playground. E todo o calçadão será pavimentado com placas de granito reaproveitado a partir do casqueiro.
Os casqueiros são as placas resultantes do corte de blocos de granito: os blocos com dimensões aproximadas de 1,60 m x 1,60 m x 2,40 m são cortados em laminas de 2 cm e nas extremidades sobra o casqueiro. Este tem uma característica importante: um lado irregular e outro serrado. Este material hoje se constitui um resíduo de valor nulo que é lançado em aterros e depósitos ao ar livre. Foi desenvolvido na Itália e já se encontram em produção no Brasil; maquinas para reprocessamento do casqueiro que o corta por um método de prensagem sem necessidade de lâminas de corte. O produto final pode ser desde paralepípedos com um dos lados liso (serrado) ou placas de até 80 x 80 cm (limitação das maquinas em produção no Brasil) com as mesmas características.
Como o processo não utiliza laminas de corte, e a energia necessária à fratura dos painéis por compressão é baixa, o custo final do produto é igualmente baixo. Produtores capixabas orçaram o produto na faixa de R$ 10,00 o m², lembrando que o assentamento é feito diretamente sobre colchão de areia entre meio fios, sem necessidade de contrapiso. O próprio meio fio pode ser fornecido em casqueiro reprocessado.
O calçadão utiliza-se de placas 70 x 70 cm, preferencialmente brancas, e os caminhos sinuosos que cruzam o parque em direção aos conjuntos construídos serão em granito vermelho cortado em paralepípedo com a parte lisa voltada para cima para facilitar o caminhar. Nos cruzamentos entre vias, onde foram propostas mudanças no piso, demarcando-os, serão utilizados os mesmos granitos vermelhos. Quando se especifica o granito não pretende-se que todas as placas utilizadas sejam 100% de uma mesma cor, e desejável um certo grau de variação, até por que, isto iria de encontro ao conceito de aproveitamento de resíduos.
A ciclovia, no mesmo nível do asfalto, também aproveita o asfalto existente, recebendo porem uma pintura na cor amarela, destacando-a. A calçada de apoio junto à pista receberá as mesmas placas de granito preferencialmente cinza.
Os módulos padronizados encontram-se instalados sobre decks de madeira. Pretende-se com isto estabelecer uma transposição termicamente e esteticamente gradual entre a areia e a área urbanizada. O uso do deck permite ainda uma coexistência interessante com as áreas de restinga por não serem piso impermeáveis e nem barrarem 100% da luz solar. Porém, para os conceitos de sustentabilidade pretendidos com a proposta aparece aqui uma incoerência, pois, como sabemos não usar madeiras reflorestadas em áreas sujeitas a sol e água intensos como em um deck. Desta forma, pesquisamos e descobrimos fornecedores de madeira de lei, proveniente de rejeitos de indústrias madeireiras exportadoras certificadas. Quando são exportadas, existem determinadas bitolas e dimensões que são rejeitadas pelo controle de qualidade. É esta madeira que se consegue adquirir, a preço baixo e em bitolas pequenas, perfeitas para o uso em decks. O detalhamento facilitará este uso, com a composição de réguas de larguras variadas na conformação do mesmo. A estrutura de sustentação que necessita resistir a maiores cargas será em aço patinável (USI-SAC, Corten, etc.) sem pintura.
Unidades padronizadas
Os módulos padronizados foram tratados como mobiliário urbano, da mesma forma que as lixeiras, os bancos, as luminárias. Como tais, serão objetos prontos, industrializados na sua totalidade. A tecnologia adotada foi a do GRC – (Glassfiber Reinforced Concrete – Concreto reforçado com fibra de vidro). O GRC é um compósito de cimento, agregado, aditivo e fibra de vidro resistente a álcalis, empregado na fabricação de componentes construtivos, unidades residenciais modulares, módulos de sanitários e cozinhas, painéis de fachada, obras viárias de contenção, drenagem e mobiliário urbano em geral. A tecnologia já esta disponível no Brasil e vem sido empregado em diversas áreas, com destaque para os módulos de controle de torres de telefonia.
A alta resistência mecânica do GRC tem viabilizado seu uso nestas diversas aplicações com grande resistência mecânica e durabilidade. O produto é especialmente interessante para o presente projeto por não se utilizar armaduras de aço, principal foco de problemas de durabilidade no concreto armado. Outro aspecto importante é que o GRC viabiliza a execução do módulo de forma monolítica, incluindo o subsolo. O módulo padrão será fornecido completo, com acabamento externo, interno; componentes moldados no próprio material servem como pias, vasos sanitários, bancadas, caixa d`água e suporte para a instalação das esquadrias. O módulo será entregue pronto, e instalado na escavação previamente realizada no canteiro. O único serviço “in loco” será a ligação das instalações hidro sanitárias, flexíveis do tipo PEX, que serão conectadas as esperas deixadas no local. Da mesma maneira procede-se a ligação elétrica. Os módulos serão fornecidos com toda a parte elétrica instalada, inclusive as luminárias, tomadas e interruptores.
A unidade edificada padrão possui duas partes distintas. O módulo em GRC, totalmente autônomo e “fechado” nos requisitos de estanqueidade, segurança e acabamento. E a cobertura retrátil, que será acoplada ao modulo de GRC a partir de esperas e encaixes deixados neste. É importante ressaltar que a cobertura retrátil pode ser retirada para manutenção ou mesmo substituição sem que afete o funcionamento e a habitabilidade do módulo, o que facilita o processo de implantação e os procedimentos de manutenção e reparos.
As unidades modulares, apresentam-se integradas aos conceitos de sustentabilidade propostos para todo o projeto, à medida que, não apresentam os desperdícios comuns em nossa construção tradicional, possuem excelente durabilidade, estimada em cerca de 20 anos sem necessidade de manutenção (para os módulos de GRC) e em cerca de 10 anos para a membrana geotextil revestida em PVDF. Como não dependem de processos tradicionais de construção, todo entulho, poluição visual e poluição sonora gerada pela obra também serão evitados.
Energia
Outro ponto abordado pelo projeto é o consumo de energia. Foram detalhados componentes a serem instalados nos postes na forma de pétalas, que pretendem, alem do apelo estético, ajudar na concentração da iluminação evitando a dispersão da luz para cima, que ocorre mesmo em refletores de foco dirigido.
Na área de restinga, onde o gabarito é limitado a 2 pavimentos, o projeto abre a concessão para instalação de turbinas eólicas. Um conjunto de 5 turbinas poderia gerar até 1,5 Mw de energia, suficientes para o consumo de toda área urbanizada e ainda, o fornecimento do excedente para a iluminação publica de outros bairros. Experiências semelhantes, têm sido feitas em localidades litorâneas no Brasil com destaque para o NE.
Legislação urbana
O projeto aponta seis áreas de especial interesse, por ser foco de atratividade de trafego ou por ser referencial no acesso de visitantes. O projeto reforça estas características a partir da proposta de incentivo para que nestes pontos, os edifícios passem a oferecer equipamentos de uso coletivo: restaurantes, bares, lanchonetes, casas de espetáculos, centros de lazer, etc. Para tanto, propõe-se que sejam criados incentivos quanto as taxas de IPTU municipais e uma tipologia especial de uso chamada: Uso Misto Especial, onde edifícios que utilizem o pavimento térreo para as atividades listadas acima possam ter condições especiais. Taxa de ocupação de 100% neste pavimento, desconto do mesmo no gabarito máximo, dentre outros a serem discutidos com a comunidade organizada de vila velha. A principal proposta é permitir que um proprietário, que pretenda utilizar seu terreno para a implantação de um equipamento coletivo, poderá vender o seu coeficiente de utilização para outro lote no mesmo quarteirão. Isto viabilizará uma maior variação das possibilidades de uso.
Paisagismo
Orla de Itaparica, entre o mar e arranha-céus que vão surgindo aos poucos, o homem recria espaços e a natureza sobrevive em meio a urbanização.
O partido paisagístico adotado para a intervenção resgata a beleza natural do ecossistema de restinga com a introdução de indivíduos, grupos de uma mesma espécie formam desenhos oferecendo plástica ao conjunto.
Para a orla foram escolhidas três temáticas que se desenvolvem ao longo da orla alternadamente em cinco recantos. A alternância de porte e arranjo das espécies proporcionam movimento e caracterizam cada trecho da orla. Na área central um grande coqueiral marca e assina o nome da praia, referida.
Foram mantidas as associações vegetais mais representativas e introduzidas superfícies de restinga. Como espécies pioneiras na colonização e fixação de dunas foram selecionadas a Ipomorea pés-apral e a palmeira allagoptera arenaria.
Grupos de bromeliáceas, cactáceas, leguminosas e outras espécies típicas do ecossistema de restinga promovem variantes de portes, texturas, cores e volumes junto às áreas gramadas, compondo o extrato herbáceo arbustivo do parque.
Árvores próprias das matas de restinga foram introduzidas nos canteiros e áreas pavimentadas da ciclovia e estacionamento, como o ipê-amarelo (tabebeia chisotricha), criando referência do local e do turista a primeira temática. Nas extremidades da orla, a vegetação remanescente de restinga revela a área antes da intervenção do homem, no trecho, os pescadores dão ao local rusticidade. A terceira temática é a transição do espaço natural ao construído dado pelo porte das espécies e seu adensamento.
Em toda área de recuperação da vegetação nativa, houve a preocupação de introduzir espécies fixadoras de dunas, capazes de garantir a sustentabilidade ecológica e econômica de toda a intervenção. A ação do homem também pode ser percebida, desenhos e formas podem ser observados no caminhar pelos calçadões o ir e vir das ondas do mar.
ficha técnica
Arquitetos
Augusto Alvarenga, Adriane Alvarenga, Tarcisio Bahia de Andrade
Arquiteta paisagista
Monica Bitencourt
Estagiários
Adriana de Oliveira Martins, Rodrigo Souza Damiani, Rubens César Passos