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PEREIRA, Margareth da Silva. Sob a luz da Atica: Le Corbusier e o desvelamento da arquitetura. Resenhas Online, São Paulo, ano 06, n. 067.02, Vitruvius, jul. 2007 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/06.067/3109>.


A viagem do Oriente permite múltiplas leituras e explorações: relatos de um jovem artista sobre suas experiências de viagem; livro de iniciação a roteiros ainda hoje pouco conhecidos através dos Bálcãs até Atenas e Istambul; instrumento para os que desejam compreender as formas de sensibilidade das vanguardas modernas; obra de educação estética. Contudo, o interesse cresce quando descobrimos que este foi, coincidentemente, o primeiro e o último texto escrito por Le Corbusier. É preciso voltar ao verão de 1965 e às circunstâncias de sua publicação para compreender esse paradoxo.

Naquele ano, Le Corbusier se organiza mais uma vez para passar as férias em sua casa de praia de Roquebrune, no Cap Martin, às margens do Mediterrâneo. Falar de casa aqui talvez seja um excesso. Em Roquebrune ele vive em uma simples cabana de madeira quadrada – um cubo – ao qual ele anexou um segundo volume isolado onde trabalha, depois de nadar, a cada manhã. Feita de ripas de madeira à maneira das construções das favelas, desenhadas pelo arquiteto em suas viagens ao Brasil, elas possuem uma geometria elementar que lhe interessa desde quando era apenas Charles-Edouard Jeanneret, na escola maternal de Chaux-de-Fonds.

Ali, sem saber, ela já seguia o método pedagógico de Friedrich Fröbel de iniciação da criança ao conceito harmônico de “unidade vital” entre homem e meio ambiente e manipulava esferas, cubos, cilindros e triângulo, desenvolvendo o conhecimento da geometria elementar da natureza, antes mesmo do aprendizado de letras ou números. Mais tarde, o estudo da Antiguidade, da arqueologia e as viagens levou-o a descobrir que essa geometria à que fora iniciado era, ela mesma, uma conquista, uma invenção. Anos a fio ele exporá a sua tese de que a história do homem, como espécie, se confunde com a sua capacidade de decompor o intrincado mundo natural em termos matemáticos e, sobretudo, geométricos. Sua cabana reatualizava, como em outras obras, esse sentido primeiro e absoluto da forma que ele pensava ver claramente enunciado em tantos exemplos nas culturas dos “selvagens”, dos “primitivos” e se opor, em sua “economia”, aos aspectos “trágicos” da civilização maquinista.

Em Roquebrune ele ama estar assim nessa situação primeira de completo despojamento. Andar e sentir-se nu – digno e por inteiro – como esses primeiros homens pelos quais, não só ele se interessa onde quer que estejam mas com os quais se identifica. Entretanto, compromissos ainda o prendem em Paris. Não é apenas o desenvolvimento do projeto do Hospital de Veneza ou os novos estudos para a escultura A mão aberta para Chandigarh. Neste inicio de verão, além de suas atividades de arquitetura no escritório na Rue de Sèvres, ele se dedica à preparação de dois manuscritos que deseja publicar: A viagem do Oriente e Mise au Point. Diariamente, manhã ou tarde, homem das montanhas que aprendera a amar o mar, Le Corbusier, leitor de Hemingway capaz de copiar em seus cadernos páginas de seus livros, permanece em um outro “arquipélago”: sua casa na Rua Nungesser e Coli.

No amplo volume da sala, o verão começara com temperaturas altas e pesava. E Paris, ora Paris, contraponto a Roquebrune, definitivamente não era agradável nessa época do ano. No apartamento do sétimo andar, as janelas correm de ponta a ponta e o sol acompanhado de uma leve brisa penetram diretamente no atelier até alcançar, numa diagonal, o grande muro de pedras rústicas. O velho muro preservado à época da construção do edifício, embora ajudando a construir as linhas de força e o ritmo da própria sala, tornara-se, com o tempo mais que isso: era um companheiro, um amigo. É nessa diagonal de luz e de forças que, neste mês de julho, Le Corbusier desenha, pinta mas também lê, reavalia, toma notas minuciosamente e prepara o texto definitivo de A viagem do Oriente.

Mais de meio século havia se passado desde maio de 1911, quando partira de Berlim com seu colega Auguste Klipstein, rumo à Oeste buscando refazer, às avessas, a história da cultura do Ocidente. Berlim, Dresden, Praga, Viena, Budapeste, Constantinopla, Monte Athos, Atenas… A meta era o Egito, mas a viagem, por razões de saúde, acabou sendo encurtada – Brindisi, Nápoles, Pompéia, Roma…Desde o inicio do século XIX, a rota para o Oriente atraía cada vez mais escritores e artistas e Le Corbusier não só admira as odaliscas de Ingres como os ambientes de cores densas de Delacroix. Lê também os romances de Pierre Loti e de Claude Farrère sobre o Nilo e Istambul, pede conselho a amigos e prepara-se, lentamente, naqueles anos, para encontrar no Oriente a unidade vital que muitas vezes lhe parecia já perdida na Europa.

O manuscrito sobre esta sua viagem já estava pronto há décadas. Capítulo por capítulo, ele fora redigido durante os mais de cinco meses em que atravessou com Auguste paisagens desconhecidas e insólitas, sentindo o peso da história diante de formas diferenciadas de celebração da vida ou de gestos construtivos simples. Perdidos no isolamento de aldeias, diante da violenta beleza de cenários naturais ou de ruínas de civilizações inteiras. Tinha 23 anos e este havia sido seu primeiro esforço em ordenar e registrar suas observações e impressões pensando em um potencial leitor. Alguns capítulos foram publicados como uma espécie de novela em um jornal de Chaux-de-Fonds. Mas ele se aborrecera com as críticas do editor à sua escrita metafórica e sobretudo com as “correções” feitas no texto e que desvirtuavam, sistematicamente, suas tentativas de fazer a mediação com palavras de um mundo que se apresentava como de puros efeitos visuais e reações sensíveis. A publicação acabou sendo interrompida.

Três anos mais tarde, em 1914, um editor parisiense decidiu publicar o texto na íntegra. ‘A época o jovem Jeanneret introduziu alguns parágrafos, esclareceu um pouco mais esta ou aquela idéia, mas veio a guerra e a publicação foi abandonada. Nos anos 20, já travestido em Le Corbusier, a defesa da nova arquitetura lhe pareceria mais urgente. Mas os ecos do Oriente continuariam a percorrer seus livros-manifestos como Vers une architecture, Urbanisme, L’art decoratif d’aujourd’hui, Almanach d’architecture moderne, e as páginas dedicadas a tantas outras viagens – como, em Précisions, por exemplo.

Antes da viagem ficara seduzido com as vistas da velha Constantinopla pintadas por Paul Signac, quase tanto quanto com a economia do traço de Cézanne ou com as cores de Matisse. Reconheceria a paleta de uns, reproduziria o traço rápido do outro diante de diversas situações neste Oriente que começou a revelar seus contornos luminosos desde que começou a descer com o Danúbio as planícies da Hungria. Voltara com centenas de imagens de vilarejos perdidos na Sérvia, na Bulgária, na Romenia, de monumentos e de paisagens mediterrâneas. Um conjunto de desenhos e de fotos, estas tiradas com sua moderníssima câmara Cupido que o acompanhara em suas incipientes experimentações fotográficas. Nessa época a câmara fotográfica serviria como um instrumento de trabalho: ela lhe auxiliava a aperfeiçoar seu próprio olhar na identificação rápida, sintética e seca da forma.

Recordava como se encantava naqueles anos, com a magia que a fotografia possibilitava de fixar a forma imediatamente, graças à velocidade de seu obturador. É verdade, à medida que foi aprendendo a desenhar ainda com maior rapidez, traçando apenas planos, superfícies, pontos e linhas, aposentara a velha e tão útil Cupido em um dos armários, declarando que a fotografia “levava à preguiça”. Entretanto, talvez tivesse sido aqui nesta viagem que ele havia estabelecido a diferença capital entre ver e olhar e estabelecido um mesmo método de observação da arquitetura quer se tratasse de casas camponesas com seus caramanchões coloridos e suas varandas treliçadas ou de monumentos consagrados.

Eis que guardara por mais de cinqüenta anos não só a câmara e as fotos, mas também as suas aquarelas e croquis com os efeitos amarelos e vermelhos dos crepúsculos de Atenas ou com o branco azulado das mesquitas de Istambul. Em Constantinopla, seguindo as lições da velha Bizâncio, as construções encarapitadas nas colinas, chegavam a um grau de compactação, que sua geometria como que desfalecia para guardar apenas a forte impressão de silhuetas ritmadas pelos minaretes… A arquitetura atingia então uma operação de transmutação violenta e de pura matéria, nessa intensificação, ela se tornava puro espaço, ritmo, música. Mas o apogeu seria o Partenon. Lendo a Oração sobre a Acrópole de Ernest Renan, obra que comprou em Atenas, ele cultuaria a luz da Ática e inspirando-se em Paul Valéry e Nietzsche, se questiona sobre a força moral “necessária” ao artista para atingir a perfeição da forma.

Certamente foi amadurecendo a idéia do manuscrito de Mise au point – grande balanço autobiográfico de sua vida e obra, como já dizia o título – e mexendo em seus velhos desenhos e notas que Le Corbusier também decide retirar A Viagem do Oriente do esquecimento. Afinal era curioso como se reconhecera à leitura daquele manuscrito de 1911 e publicar o conjunto desses textos de juventude à luz de sua própria vida, agora, aos 77 anos, fazia sentido. Mise au Point era a resposta às questões que formulara e deixara em aberto em 1911 sobre o futuro da arte e da arquitetura.

Não, a decisão de Le Corbusier em publicar, 54 anos depois, em 1965 A viagem do Oriente, não foi guiada pelo desejo de trazer a público as suas hesitações e descobertas de jovem, como chegaria a pensar até mesmo seu amigo, o editor Jean Petit. Trata-se de publicar lado a lado, dois livros: um de impressões e perguntas, outro de respostas – as respostas que conseguira dar a elas.

O primeiro livro, era como a enunciação de uma possibilidade de definir a prática da arquitetura como um entregar-se a um fazer construtivo, à geometria e à luz. No Oriente, pela primeira vez, diante do pensamento evolucionista ainda persistente na sua Europa, ele compreendeu que essa atitude marcava atemporalmente a arquitetura, tanto a antiga quanto a nova que buscava construir. Era uma atitude interna, moral como dirão alguns, que prescindia de fronteiras, de Oriente ou Ocidente, sequer de classificação dos povos entre mais ou menos civilizados, ou em estilos. O avanço do Ocidente, se havia algum, era relativo.

Já no manuscrito da viagem percebe-se esta segunda tese de Le Corbusier enunciada em Vers une Architecture, que o acompanharia toda sua vida: não existe homens primitivos, os homens são sempre os mesmos, o que muda são as suas situações objetivas de existência, os meios de que dispõem para agir.

O leitor mais familiarizado com o pensamento de Le Corbusier encontrará até mesmo nas suas descrições de plátanos vibrando solitários no Monte Athos frases que o farão lembrar de imagens visuais que povoam o seu universo de invenção e sonhos como artista, arquiteto ou urbanista. Afinal como não ver ecoar, mais de meio século depois, os seus relatos de solitários troncos de um tom “cinza, como um mármore negro lavado pela chuva” e de “grossos ramos como mão aberta, repleta da ourivesaria esmeralda de suas folhas” na célebre escultura do Capitólio de Chandigarh?

Se Mise au Point é uma espécie de summa do que ele mesmo fez ou deixou de fazer a partir desse esboço de programa juvenil que ele fixou para si e para sua arquitetura, A viagem do Oriente é o texto que mais explicitamente dá a chave – como nos romans a clé, tão caros à cultura francesa – para a compreensão de sua obra, em suas recorrências, em suas evoluções e involuções, em seus limites, em sua intrigante e instigante potência.

Alfa e ômega – o começo e o fim. Em meados de julho Le Corbusier conclui a leitura do manuscrito de 1911, faz mudanças tópicas e acrescenta frases que indicam claramente o elo entre os dois livros que prepara. Entrega os originais revisados de um, e organizados, do outro, ao editor. E parte de férias para Roquebrune. Sem pressenti-lo, nesse mês de julho, Le Corbusier organizava seu primeiro e último livro que não são opostos um ao outro. São, antes, modos diferentes de narrar uma mesma entrega à arquitetura e à vida que a cerca e a engendra. Vida a qual se deu com a intensidade religiosa com que se experimenta a fluidez do mar, dos rios, das nuvens e dos homens e à qual a sua arquitetura procurou trazer um horizonte, alguma estabilidade, um ponto de pausa. Numa manhã do final de agosto de 1965, o arquiteto franco-suíço, morria em Roquebrune, no mar, enquanto nadava. A viagem do Oriente foi parte de seu testamento como arquiteto, mas sobretudo como homem.

[leia também "Se oriente, rapaz...", de Artur Rozestraten, sobre o livro de Le Corbusier]

sobre o autor

Margareth da Silva Pereira é autora de livros e artigos sobre a história critica da arquitetura e do urbanismo no Brasil e Professora do Prourb-FAU/UFRJ

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