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architexts ISSN 1809-6298


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O artigo tece um panorama crítico da produção da habitação social no Brasil atualmente, apresenta a pesquisa desenvolvida pelo seu grupo, traz projetos e temas relacionados a serem discutidos e apresenta novas possibilidades para a questão em pauta


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RUBANO, Lizete Maria. Habitação social: temas da produção contemporânea. Arquitextos, São Paulo, ano 08, n. 095.07, Vitruvius, abr. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.095/153Acesso>.

Um panorama recente da habitação social no Brasil

A constituição de uma política habitacional não é tarefa fácil, principalmente em um país sem tradição de políticas públicas, que pressupõem uma estrutura, planejamento e continuidade.

A omissão do Estado, o desinteresse circunstancial do mercado, as dinâmicas da cidade contemporânea e o empobrecimento da população nesse momento de reestruturação da produção e do papel desempenhado pelas cidades, têm gerado conflitos importantes entre as condições colocadas pelas cidades e as possibilidades de se viver nelas.

O intenso processo de metropolização brasileiro, acompanhado das características acima descritas, tem hoje, como resultado, um déficit avaliado em 7,2 milhões de moradias, onde 88,2% deste déficit correspondem a famílias com até 5 salários mínimos. Cerca de 70% da produção de habitação têm ocorrido fora do mercado formal, 4,6 milhões de domicílios estão vagos, essencialmente em áreas centrais de aglomerados urbanos, e 79% dos recursos do FGTS têm sido destinados à população com renda acima de 5 salários mínimos (1).

Neste período, pós anos 80, os problemas ambientais intensificaram-se, a população construiu – por sua conta e risco – sua moradia e, entre 1991 e 2000, o aumento do número de domicílios em favelas foi de 717 mil ou 22,5% (2).

Os cortiços das áreas centrais são o termômetro de um processo de desvalorização dos centros históricos – memória de um tempo da cidade que não interessa aos negócios do mundo neoliberal.

Entender esses processos significa não apenas reconhecê-los, mas dirigir ações decisivas – que envolvam discussão acerca das formas de expansão das cidades, das oportunidades de localização, de acesso a terra e às linhas de financiamento – que sejam dirigidas à diversidade social, à necessária revisão programática, às formas de produção e à qualidade do projeto urbanístico e arquitetônico.

As políticas públicas, voltadas à habitação, deveriam refletir a complexidade produzida nas cidades, revendo modelos antigos que são não apenas anacrônicos, como também totalmente inadequados no que se refere à otimização das infra-estruturas, às perspectivas de expansão e as densidades urbanas.

O modelo da casa isolada no lote, dos conjuntos habitacionais implantados pelo Estado em áreas distantes e sem urbanidade, a repetição de tipologias, as baixas densidades e a não racionalização da obra perduram como hipóteses falidas nas cidades brasileiras de hoje.

Diferentes agentes sociais compõem a produção da cidade e estão envolvidos com a discussão das condições de seu presente e suas possibilidades futuras.

Uma política urbana e habitacional faz-se a partir – se não de processos radicais transformadores – de uma equalização desses agentes, em que o Estado desempenha papel fundamental. Regulamenta o mercado, viabiliza recursos, demanda leis, cria políticas que possibilitem projetos de qualidade, boas obras construídas, intermediando os interesses de classe.

Que alternativas ao crescimento das cidades, às políticas públicas, à habitação social foram apontadas a partir da década de 80 no Brasil?

O que se fez de fato para a humanização dos territórios, da vida cotidiana, da constituição da cidade, no que diz respeito à existência coletiva nesse período?

Algumas conquistas políticas e sociais, tais como a aprovação do Estatuto das Cidades (2001) e seus instrumentos urbanísticos voltados à função social da propriedade, a obrigatoriedade dos Planos Diretores para as cidades com mais de 20.000 habitantes e a criação das ZEIS, a implementação do orçamento participativo em algumas prefeituras e as tentativas de estruturação de novas linhas de financiamento adequadas à habitação social, têm-se apresentado como alternativas muito importantes à revisão da condução de processos urbanos.

Porém, esses “mecanismos” de recente elaboração e regulamentação, ainda pouco se traduziram em efetivas realizações, frente às demandas, às diferenças sociais, à complexidade territorial e à dívida do Estado para com a sociedade.

O papel dos intelectuais perante a realidade urbana em transformação sempre foi uma importante questão teórica, colocada tanto sob a perspectiva do entendimento dos complexos processos presentes nas cidades quanto sob a possibilidade de se equacionar ações.

O tema da habitação, extremamente central para a reestruturação dos territórios urbanos pós-revolução industrial, desencadeou estudos sistemáticos (unidade mínima, gabaritos, densidades, etc.) que compuseram verdadeiras utopias urbanas na Europa do entre guerras, por exemplo.

Apesar das utopias terem sido condenadas ao desaparecimento no mundo contemporâneo, onde a riqueza para se reproduzir, prescinde dos homens ou, pelo menos, de boa parcela deles, desencadeando uma vez mais, territórios segregados, as estratégias políticas e de projeto precisam ser apontadas, com a perspectiva de melhor distribuição das benesses urbanas.

Considerando-se a extensão do período estudado na pesquisa (cerca de vinte anos) e a enorme demanda por habitação, a produção de alternativas de qualidade arquitetônica e urbanística foi pequena quando se constata o potencial profissional que se tem, quando se observa a organização social dos movimentos por moradia que se constituiu, a pressão desencadeada pelos conflitos urbanos e os problemas ambientais causados pela ocupação desordenada.

Entretanto, há exemplos e experiências fascinantes, que instigam discussão e criam referenciais, há programas que estruturaram ações a partir de alguns princípios norteadores, discutidos e fortes.

Há tentativas de resolução de problemas, a partir do caos urbano gerado pela omissão do Estado ou deliberada ação, que colocou para as populações pobres as piores condições urbanas, que foram apropriadas com esforço próprio e sobretrabalho.

Também se atribuiu valor, nestas últimas décadas, a trechos do território das cidades, a partir de experiências pontuais, que, através do esforço dos movimentos organizados, de administrações progressistas ou de novos programas federais, puderam se concretizar em projetos diferenciados, revelando possibilidades – ainda que de exceção – de se constituir cidade, casa e espaço de convívio.

Todos os projetos apresentados a seguir trazem à tona temas que contribuem para a retomada da discussão da habitação social, sobre novas bases, construindo mesmo que pontualmente, alternativas importantes e claras na escala da cidade e da tipologia habitacional.

Não se esgotaram os exemplos possíveis – e muito menos as questões em pauta – mas, a partir da pesquisa realizada, foram recortados alguns aspectos da realidade urbana a partir da habitação. Algumas destas experiências são aqui apresentadas, conformando um panorama de projetos recentes e estruturando um quadro referencial que objetiva contribuir para as atividades didáticas, para os processos de elaboração projetual, para as discussões dos movimentos sociais e talvez, ainda, contribuir para a construção de diretrizes de Políticas Públicas e de financiamento habitacional.

A pesquisa e seus objetivos

O trabalho de pesquisa foi norteado por três diretrizes principais: pela preocupação em se mapear com abrangência nacional projetos de interesse, para que tivéssemos representatividade regional considerando-se o que se realizou no país; pela seleção de um número determinado de projetos que, mais que pela quantidade, pudesse representar importante discussão acerca do tema habitacional e que – esses projetos – expressassem possibilidades frente a diferentes situações urbanas e estratégias de intervenção, além de se considerar apenas propostas já construídas.

O trabalho desenvolveu-se, inicialmente, a partir da pesquisa bibliográfica e complementou-se com as consultas a órgãos públicos nacionais (prefeituras, COHABs, companhias estaduais de habitação), escritórios de arquitetura, organizações não governamentais, Universidades e Faculdades de Arquitetura, públicas e privadas e entidades de classe.

Ao mesmo tempo, foi levantada a importância inicial de se definir critérios de referência de qualidade, que pudessem orientar a seleção e as análises de projetos elaborados.

Essa fase resultou na identificação de questões urbanas e arquitetônicas que teriam caracterizado – de forma positiva e propositiva – os projetos.

O primeiro grupo de critérios gerais colocava a importância da relação do projeto com as preexistências urbanas, com o entorno imediato; a importância das articulações viárias propostas, da continuidade ou rompimento com o parcelamento do solo e das novas densidades.

Os espaços coletivos e públicos, quando não residuais, foram também observados em função da adequação das áreas projetadas ao uso, aspecto determinante para a avaliação dos projetos.

A análise da estruturação dos sistemas de acesso e circulação permitiu-nos considerar a articulação do projeto com as estruturas urbanas existentes, as relações entre a rua e a quadra, entre o pedestre e o veículo. A densidade populacional foi avaliada considerando-se a relação entre o novo número de habitantes proposto e as condições urbanas locais.

No segundo grupo de critérios, voltado à tipologia, considerou-se a diversidade das edificações e das unidades habitacionais, o dimensionamento das áreas, as circulações verticais e horizontais.

O sistema construtivo e a revisão programática, além da análise dos espaços coletivos que compõem os edifícios, também formataram os critérios de seleção dos projetos.

No processo de elaboração dos critérios de escolha dos projetos, foram considerados, também, aspectos específicos quando da possibilidade de reabilitação ou adaptação de edifícios, nas quais a otimização dos espaços foi avaliada frente às estruturas existentes, observando-se como o projeto responde aos limites colocados pela própria edificação.

No caso dos projetos de urbanização de favelas, além dos critérios já apontados anteriormente, também pareceu-nos importante destacar as propostas que colocavam – criticamente – a questão do parcelamento tradicional, sugerindo novos arranjos.

Vale, ainda, salientar, que a seleção final dos projetos elencados foi amparada por intensa discussão realizada entre consultores e equipe de pesquisa, sempre com a perspectiva da montagem de um painel que incorporasse exemplos das diferentes regiões do país.

Projetos selecionados: temas para a discussão contemporânea

Os projetos selecionados a partir da pesquisa podem ser classificados conforme o programa e a localização na cidade. São experiências de provisão com projetos inseridos na malha urbana ou que foram implantados em áreas de expansão ou de urbanização precária; exemplos de urbanização de favelas, com construção de unidades habitacionais novas ou apenas com implantação de infra-estrutura e equipamentos públicos; de reabilitação de edifícios existentes, com adaptação para moradia e aqueles que, mesmo em número pouco significativo, representam iniciativas de empreendedores privados.

Os projetos que se apresentam como perspectivas – ou boas hipóteses – são, antes de mais nada, resultados de políticas e programas que apontam aspectos significativos para a habitação social no Brasil.

Um dos principais aspectos considerados refere-se às alternativas ao modelo periférico tão criticado porém persistente até os dias de hoje.

Algumas das propostas presentes localizam-se em vazios urbanos em regiões centrais, caracterizadas pela existência de infra-estrutura, mas que têm passado por processos de deslocamento de atividades econômicas e conseqüente falta de manutenção do patrimônio construído. São áreas em que o encortiçamento é intenso, representando ainda alternativa de moradia possível para famílias de baixa renda.

Este processo instalado pressupõe uma ação pública que deve qualificar essas áreas sem desencadear a expulsão da população moradora, o que em geral dificilmente se dá, devido à ausência de alternativas à situação fundiária e à ausência de programas que possibilitem outra forma de acesso à moradia que não pela compra.

Projetos como os de substituição de cortiços em lote urbano, em São Paulo –SP, podem responder a algumas dessas preocupações. A partir de uma combinação de novos programas voltados às ações em área central, desapropriações e compra de edifícios, linhas de financiamento e demandas organizadas foi possível qualificar a cidade e a habitação por meio de novas possibilidades de ocupação do lote.

O projeto habitacional Pedro Facchini (2002-2004) insere-se no Programa Morar no Centro, na linha de atendimento a cortiços, que prevê melhorias nas condições das moradias coletivas multifamiliares. A área de intervenção localiza-se em uma região de baixa verticalização e antigo uso industrial – o bairro do Ipiranga – com parcelamento definido por lotes de pequena testada e significativa profundidade (8,00 x 40,00m).

A existência de um cortiço anteriormente na área, com oito famílias, colocava ao projeto uma demanda mínima de moradias a serem implantadas.A alternativa proposta de geminação das unidades ao longo de uma das divisas do lote e o estudo de diferentes tipologias, colocou a possibilidade de viabilizar um número maior de habitações.

O conjunto apresenta sete diferentes tipologias em um total de doze unidades, sendo 4 delas de um dormitório com área aproximada de 35 m², localizadas no térreo, e as outras 8 são apartamentos duplex com um e dois dormitórios de aproximadamente 43m², ocupando os outros dois pavimentos do bloco.

O recuo lateral de três metros é destinado à área de circulação e acesso às habitações. Há uma escada – sempre justaposta à divisa do lote – para cada duas unidades, solução que eliminou os extensos corredores internos.

Esta solução apresenta uma possibilidade de ocupação de lote, destacadas as alternativas à legislação urbanística para Habitação de Interesse Social, muito propositiva no que se refere a uma nova densidade, à articulação de diferentes tipologias, formas de acesso, de ventilação, apontando para uma desejada opção à moradia social em áreas centrais e urbanizadas.

No que se refere ao reaproveitamento do patrimônio construído em área central, exemplos como o do Hotel Umbu em Porto Alegre RS (2003-2004), o do Rizkallah Jorge em São Paulo-SP (2001-2003), o Casarão da Rua da Palma, em São Luis–MA (2001-2003) e o da Rua Senador Pompeu, no Rio de Janeiro RJ (1996), são destaques por retomarem importante patrimônio material (alguns de reconhecido valor histórico) e por atribuírem uso a imóveis vazios. Também são projetos que recolocam edifícios com valioso significado urbano, atribuindo-lhes nova vitalidade e resgatando a função habitacional aos bairros centrais.

Outras áreas, em função da infra-estrutura e com potencial significativo relacionado às pré-existências (proximidades de locais de trabalho, acessibilidade, etc.) para implementação de políticas urbanas, apareceram como hipóteses importantes à localização habitacional. São áreas em geral subutilizadas por longos períodos que, estando em transformação, permanecem como possíveis a novos usos. A antiga área portuária de Pelotas, por exemplo, foi cenário para a implantação de um núcleo habitacional (Porto – 2003-2004) viabilizado pelo Programa de Arrendamento Residencial.

Nos projetos de urbanização de favelas, observou-se dentre tantos temas tratados, a preocupação com a integridade do suporte físico do sítio, com a articulação das estruturas urbanas existentes, com a busca de uma melhoria significativa nas condições de urbanidade (pelo acréscimo de programas e “vida urbana”) e com a proposição de espaços públicos, valorizando-se as características do lugar.

Em todos os exemplos selecionados, a reestruturação das condições urbanas oferece suporte e estímulo à construção ou melhoria das moradias na favela, a serem implementadas pela população.

No enfrentamento dos problemas de recuperação de uma orla marítima, de importantes linhas de drenagem da cidade ou da ocupação de áreas de mananciais, por exemplo, verificou-se a busca de alternativas que viabilizassem os espaços coletivos e públicos, recompondo, qualificando e devolvendo estas áreas ao uso comum.

Além de dotar as favelas de infra-estrutura básica, tem-se procurado criar novos referenciais urbanos à própria área, na escala local da favela e na escala do bairro.

Esses temas conformaram o programa Favela-Bairro do Rio de Janeiro (1993-até hoje), nas diretrizes para urbanização da orla marítima em Brasília Teimosa (2001-2004, Recife) e na emblemática experiência de urbanização da favela Sacadura Cabral (1997-2005), no município de Santo André, em que não somente as condições de estabilidade geológica e ambiental foram resgatadas, mas onde também foi implementado um “zoneamento” específico, considerando-se o coeficiente de aproveitamento e os gabaritos a partir da situação urbana, estabelecendo-se variações de 2 a 3 pavimentos por unidade, com ou sem espaço para atividade comercial.

Essa associação entre a tipologia habitacional, os usos coligados e sua situação no núcleo urbano, gerou uma variação tipológica e uma variação na escala urbana pouco usual nos projetos de urbanização de favela.

A associação entre moradia e trabalho sempre foi uma questão importante à habitação social, no que se refere à escolha da localização de um projeto e às questões programáticas, persistindo as dificuldades para se estabelecer essa relação quando se pensa áreas como verdadeiras “cidades-dormitório”.

Pôde-se observar que, entre os projetos selecionados, o enfrentamento dessa questão apareceu sob a forma de uma ação conjunta, envolvendo local de moradia, urbanidade, conexão com a cidade e espaços associados à geração de renda.

Este item compõe – no Programa Vilas de Ofício, em Curitiba-PR (1992-2001) – por exemplo, uma questão nova do ponto de vista programático. A preocupação de se criar um vínculo entre os edifícios habitacionais e as ruas, as quadras e os bairros, além de se associar moradia à geração de renda, transformou-se na necessidade de prever, associado ao espaço doméstico, a possibilidade da instalação do pequeno negócio, do serviço e das cooperativas formadas por moradores, contribuindo à urbanidade do bairro.

O projeto oferece às famílias a possibilidade de montar seu próprio negócio junto à malha urbana e em locais onde haja demanda de serviços e facilidade de acesso para a população.

Às famílias inscritas e selecionadas foram oferecidos cursos de capacitação para o exercício de ofícios que lhes garantissem uma renda adicional.

As vilas têm tipologias que reafirmam determinada situação urbana: unidades geminadas alinham-se à via ou posicionam-se junto às esquinas, reforçando, pela arquitetura, a confluência de ruas.

A população a que se destinam as vilas é a que tem renda familiar de um a três salários mínimos e o subsídio fornecido é variável por faixa de renda (incluindo a possibilidade de locação social, com taxa correspondente a 50% do valor da prestação a ser abatido no momento do processo de financiamento para compra).

A discussão – desenho urbano, tipologia habitacional e densidade – está presente em vários dos projetos implantados em áreas de urbanização precária ou recente, em que a definição do arranjo espacial do território é determinante. Dos importantes aspectos observados, pôde-se destacar as articulações entre espaço construído e livre, as possibilidades diversas de geminação das unidades habitacionais e a adequação das edificações à topografia, que viabiliza maior número de pavimentos sem a necessidade da circulação mecânica.

São exemplos de algumas dessas experiências o pequeno conjunto de casas geminadas em Antonio Prado (1995-1997, Rio Grande do Sul) e os edifícios Paschoal Melantônio e Celso dos Santos (1994-1996), em São Paulo

Vale ainda ressaltar a importância de se ter densidades altas – que podem ser obtidas pela forma de ocupação da área e pela proposta tipológica – associadas à qualidade de espaços coletivos e públicos: o exemplo de Vila Mara (1991-1997), em São Paulo é bastante emblemático, com cerca de 1.000 hab/ha e um dos mais interessantes espaços propostos ao convívio.

Os projetos que compõem especificamente a investigação tipológica investiram na variação das unidades habitacionais pela espacialidade, pela área, pelo sistema construtivo, pelas questões programáticas, pelas possibilidades de geminação e ampliação, o que pode ser observado nos projetos Barcelona e Ipê Amarelo, ambos construídos em Sete Lagoas, Minas Gerais (1997-1998).

Ainda no âmbito da investigação tipológica, o edifício Olarias, São Paulo (2003-2004) configura uma das experiências mais contemporâneas de habitação social na grande cidade. A partir da escala do lote, viabilizam-se alternativas urbanas e tipológicas – comércio voltado à rua, áreas coletivas equipadas, pátio interno, circulação mecânica, galerias horizontais abertas, conectando os apartamentos ao pátio (visualmente), diferentes gabaritos, gerando um “bloco” de edifícios – que compõem uma preocupação de que mesmo uma intervenção pontual é capaz de estabelecer novos referenciais de compromisso com a cidade.

Soma-se a isso a inovação da modalidade de atendimento habitacional – locação social –, experiência pioneira no Brasil, cuja proposta previa a realização de um parque imobiliário público rompendo com a propriedade das unidades, para garantir acesso à moradia digna para as famílias com renda mensal inferior a 3 salários mínimos.

Temas complementares para a discussão

Há alguns temas presentes na experiência profissional dos arquitetos que trabalham com habitação social que foram reeditados pela pesquisa e que não poderiam deixar de ser citados nessa avaliação final.

Um deles refere-se ao problema enfrentado pela população que vive nos grandes conjuntos produzidos pelo Estado e às tentativas de qualificar esses assentamentos habitacionais periféricos.

Apesar de não ter sido possível destacar nenhuma experiência realizada dos Programas de Requalificação de conjuntos habitacionais, avaliou-se como sendo programas muito significativos, devido essencialmente ao débito que o Estado tem para com as áreas destinadas à habitação “oficial”, distantes e geradas sem infra-estrutura suficiente.

A experiência da Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo e da COHAB-SP (Companhia Metropolitana de Habitação), no período de 1989-1992, iniciou-se com a perspectiva de um replanejamento das áreas remanescentes dos conjuntos habitacionais implantados nas décadas de 70 e 80. Eram áreas livres que permaneciam sem uso e geravam insegurança aos moradores.

Com o replanejamento pretendia-se dotar os conjuntos de uma mínima qualidade urbana, com implantação de equipamentos, não viabilizada na época de sua construção, além de equacionar espaços para novas demandas.

O Programa Novas Alternativas, da Secretaria Municipal de Habitação do Rio de Janeiro, gestão 1997-2000, também se empenhou em requalificar conjuntos, com intervenção em áreas residuais, justapondo novas edificações às fachadas cegas dos edifícios e introduzindo novas funções à monofuncionalidade ditada pelas linhas de financiamento do BNH.

Como dissemos, infelizmente esses projetos não foram realizados e talvez apenas a perspectiva de uma densidade histórica aproxime esses conjuntos da oportunidade de serem incorporados minimamente à cidade.

O tema da gestão dos espaços habitacionais envolve a discussão acerca das possibilidades reais de participação dos futuros usuários no processo de projeto.

Se habitação social for considerada como política pública, ou seja, envolvendo planejamento do espaço urbano, diretrizes de crescimento das cidades, estudo das densidades, política de terras, de financiamento, custos e técnicas construtivas, qual é o real espaço de participação?

Parece-nos que as possibilidades reais de participação podem estar presentes tanto na escala dos Planos Diretores, quanto na deliberação da necessidade de diferentes tipologias e na discussão dos programas voltados ao espaço coletivo e de convívio.

A gestão que envolve manutenção e uso dos núcleos habitacionais, na escala dos espaços coletivos e públicos, também tem gerado uma discussão muito intensa tanto no que se refere às possibilidades de manutenção física dos edifícios, quanto às formas de uso dos espaços propostos.

Tem-se observado ações dos moradores voltadas à alteração dos projetos originais, quer seja por meio da realização de obras nos edifícios construídos, (anexando-se pequenas construções, criando aberturas não existentes originalmente), quer no uso inadequado dos espaços coletivos e públicos. Aqui, há uma tendência de apropriação privada destas áreas, fechando-as e revelando-se uma dificuldade de manutenção e gestão, o que tem colocado ao projeto uma triste perspectiva: a da redução da dimensão do coletivo e público no espaço da habitação social.

A falta de oportunidade de revisão crítica destes projetos e até de possibilidades novas de realização, fragiliza uma avaliação mais densa voltada a estas experiências, impossibilitando-lhes novo formato.

Heliópolis, Vila Mara e Casarão Celso Garcia (projetos do início da década de noventa), expressam, por meio das mudanças realizadas pelos moradores – o fechamento das áreas coletivas e públicas – a necessidade de se sistematizar uma crítica que subsidie novos projetos.

Outras experiências projetuais, que apresentam resultados muito significativos, têm ocorrido a partir dos concursos públicos, em que a localização, o desenho urbano, as propostas espaciais e construtivas, a revisão programática e a experimentação plástica têm caracterizado momentos ímpares de discussão do tema da habitação social.

São momentos em que áreas significativas da cidade se apresentam como passíveis de uso para moradia. Densidades importantes são propostas, articulações com a cidade são desejadas e volta-se a investigar modos de vida, contemplando diferenças.

Infelizmente os resultados de concursos raramente são construídos, já que o processo que os caracteriza revela mais claramente, pelo tempo que envolve, a impressionante descontinuidade administrativa do Estado brasileiro.

Perspectivas: apontando novas possibilidades

Alguns momentos da história da produção da habitação social no Brasil foram muito emblemáticos: porque colocaram hipóteses novas, de distribuição da riqueza urbana, ou porque ficaram marcados pelos modelos de segregação e de baixa qualidade arquitetônica.

Situações de inflexão podem ser identificadas a partir de propostas diferenciadas do ponto de vista urbanístico, arquitetônico, construtivo, de acesso à terra urbana e à moradia.

Quando Tafuri, 1985 (3), colocava que as Siedlungen de Ernst May, em Frankfurt, maior acontecimento moderno do entre guerras, realmente não enfrentaram a contradição urbana, porque se colocaram à margem dela – a coroa de Siedlungen em Frankfurt é periférica à cidade – desperta-nos algumas hipóteses à reflexão.

Pode-se dizer que vários dos projetos habitacionais apresentados apontam caminhos significativos a partir dos diferentes aspectos elencados anteriormente. Porém, quanto de fato, estes projetos enfrentaram os conflitos urbanos e quanto se colocam como parte possível da cidade “legal”? (4).

São projetos que otimizaram localização, patrimônio imobiliário, potencial construtivo, ambiental e legislação urbana e tornaram-se possíveis graças aos programas voltados às áreas centrais, à perspectiva dada pela locação social, aos movimentos sociais, que muitas vezes articulam a compra da terra, que se associam a arquitetos e definem demanda e também à contribuição dos arquitetos, que têm repertório e discussão voltados à habitação coletiva.

O Estatuto das Cidades – e as ZEIS – apresentam-se, agora, como importantes mecanismos de conquista política no mundo urbano.

Pelo Estatuto legisla-se a favor dos Planos Diretores para as cidades, a favor do Estado como agente regulador do crescimento urbano e gestor das condições ambientais, pelo direito à preempção e pela outorga onerosa e a favor das políticas públicas e do direito à moradia em detrimento da especulação. Esta é combatida pelo parcelamento ou edificação compulsório, pelo imposto progressivo, pela desapropriação mediante pagamento com títulos da dívida pública e pelo direito à usucapião (5).

As ZEIS podem garantir amparo e possibilidades reais de intervenção nas situações urbanas que jamais seriam passíveis à regularização.

Com estes instrumentos, vale destacar, não se pretende consolidar a precariedade urbana e arquitetônica apenas regularizando-se as áreas ocupadas.

O que se coloca é a real possibilidade de qualificação dos territórios de habitação social a partir das condições diferenciadas a que estão submetidos desde a origem, diferenciadas das condições do mercado e da lógica da especulação.

Se a habitação social no Brasil foi – em algumas ocasiões – o tema que nossa modernidade elegeu para se expressar, alguns exemplares desse período apontaram um vínculo preciso entre cidade, arquitetura e sociedade.

O esvaziamento deste processo e dessa relação levou nossa arquitetura a um papel mais que secundário no que se refere à tradução – em espaço, modo de vida, construção e urbanidade – de uma sociedade que, aparentemente não tem forma a não ser aquela atribuída pelo mercado imobiliário e pela constituição capitalista do espaço desigual da cidade.

Presenciar, nos dias de hoje, o festival de natação na piscina pública da escola do conjunto Pedregulho (Rio de Janeiro, 1946), que tem painéis de Portinari e de Burle Marx, é marca do que foi possível. Conhecer a reestruturação do ex-hotel Umbu (Porto Alegre, 2004), hoje moradia em área central, recuperação de patrimônio arquitetônico e urbano, aponta-nos novas possibilidades.

A perspectiva que se coloca é a de que pelas políticas públicas, dotação orçamentária, planos diretores, operações urbanas consorciadas, gestão coletiva e projeto – de qualidade e propositivo – seja possível a realização e a revisão, no sentido de se acumular no tempo histórico das cidades e das pessoas que vivem nelas, de alternativas para se prosseguir.

Prosseguir significa o enfrentamento da realidade, o que pôde ser observado nos projetos aqui apresentados, que nos mostram uma cuidadosa leitura do lugar e um entendimento maduro das questões abordadas. Apresentam um caráter extremamente propositivo, sugerindo soluções e novas perspectivas.

Os projetos selecionados são resultados de um abrangente processo que compõe a dinâmica urbana e foram viabilizados, deve-se destacar, a partir da articulação eficiente de um conjunto de instrumentos complexos.

Contribuem, efetivamente, à conformação do que chamamos “cultura de projeto”, referencial à discussão teórica e à proposição projetual.

O conjunto da produção apresentada, mesmo que numericamente insuficiente frente a tão expressiva demanda, revela perspectivas claras e viáveis, recolocando perspectivas ao papel do arquiteto na sociedade brasileira.

notas

1
MINISTÉRIO DAS CIDADES. Cadernos MCidades. Política Nacional de Habitação n. 4, 2004. Os dados são do ano 2000.

2
MINISTÉRIO DAS CIDADES. Cadernos MCidades. Política Nacional de Habitação n. 4, 2004, p. 22.

3
TAFURI, Manfredo. Projecto e utopia. Lisboa, Editorial Presença, 1985.

4
Discussão feita por diversos autores, tais como ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei. São Paulo, Nobel, 1997.

5
ESTATUTO DA CIDADE. Dispositivos constitucionais. Lei n. 10.257, 10 jul. 2001.

sobre o autor

Dra. Lizete Maria Rubano, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie, é coordenadora do grupo de pesquisa Vida Associada: habitação coletiva e cidade.

São co-autores Aline Fidalgo Yamamoto, André Mazzer Constantino, Fábio Steiner Rocha, Giulliano Pandori Giancoli, Hamilcar Boucinhas, Letizia Vitale, Lilian Regina Machado de Oliveira, Lizete Maria Rubano, Mário Sérgio Nader e Simone Pereira Campagnucci.

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