Há quase três décadas, aguardando amigos, permaneci por quase duas horas diante de um templo evangélico. Enquanto a tarde ia sumindo, e com a distância prudente estabelecida pela rua e duas calçadas que nos separavam, espiei com curiosidade pastores e ovelhas de um credo que começava a despontar com vigor na cena brasileira. Pessoas simples, vestindo roupas cerimoniosas – quase todos os homens de terno e gravata, as mulheres com vestidos na altura dos joelhos –, entrando e saindo do templo, se sentando em diversos setores do salão principal, mantendo distâncias diferentes do púlpito, onde se revezavam pastores. Alguns homens abriam o jornal sentados nos bancos de trás, outros conversavam animadamente entre si e com líderes de camisa branca de manga comprida dobrada até o meio do antebraço. Uma cerimônia descontraída, amistosa, terrena, com pouco apelo transcendental. Saí dali com a certeza de ter presenciado o motivo maior do crescimento vertiginoso das igrejas evangélicas e do pentecostalismo em geral: havia ali uma promessa de se resolver por aqui mesmo, de forma imediata e terrena, as pendências da existência individual e coletiva.
A recordação me apareceu de abrupto ao assistir no novo Instituto Moreira Salles de São Paulo o curta-metragem Terremoto Santo, dirigido por Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, lançado em 2017 (1). O filme é um musical com ares de documentário, rodado na cidade de Palmares, em Pernambuco, onde surgiu um fenômeno cultural interessantíssimo, que enlaça as práticas religiosa e musical. Em sua maioria jovens, os crentes desenvolveram liturgias, cerimônias e rituais coreografados, com apoio de músicas que exaltam Deus, Jesus e o Espírito Santo. O fenômeno se dissemina com maior rapidez graças à difusão das músicas pela rádio da cidade, que empacota com competência um produto que contém pregação religiosa e diversão musical, e o oferta à população local.
A produção do filme fez um acordo com a Mata Sul (2), gravadora local de música gospel nacional, colaboração que se mostra eficaz ao se verificar a grande qualidade plástica do filme. As cenas de interiores são filmadas em espaços comunitários e templos religiosos – um deles em construção, metáfora de fácil assimilação ao sugerir o crescimento vigoroso da religião. A exceção é a cena rodada dentro da rádio local, onde uma jovem pastora prega com palavras e cântico, sob o olhar vigilante de um pastor mais velho. Por sua vez, as cenas externas evitam logradouros, espaços públicos e o casario da cidade, elegendo locações no campo, onde abundam plantas, rios e cachoeiras. Contudo, a maior surpresa do filme é sua isenção diante do que está registrando; sem expressar em qualquer juízo de valor, transfere para a assistência a responsabilidade de tomar as próprias conclusões sobre o que está presenciando.
1. As imagens de Deus
Em um filme tão caprichado visualmente, a cena mais bonita é a coreografia de seis moças vestidas com saias e blusas iguais duas a duas, formando três duplas. Pisando n’água corrente cristalina de um riozinho raso de fundo pedregoso, as jovens de cabelo longo e pele morena dançam de forma contida, com os quadris aquietados. O baixo teor sensual abre espaço para o encanto dos gestos de braços e mãos, que ondulam no ritmo do som narcotizante do fundo musical. As mãos vestidas com luvas brancas marcam no espaço o desejo de abraçar os céus. Uma dança encantatória em meio à natureza, que busca o êxtase sublime e um deleite espiritual, que me evoca as ninfas da Primavera, quadro renascentista de Botticelli.
O arroubo epifânico dessa cena se repete em ao menos três outras do musical. Numa delas, a tomada da câmera enquadra os pés descalços de uma jovem encravados numa rocha com pequenas crateras cheias de água, começa a subir pela barra plissada do vestido preto nivelado pouco acima dos joelhos, escrutina o busto recatado que esconde os seios e para no colo protegido por tule preto de pouca transparência, o mesmo que cobre os braços na forma de mangas curtas. Ao fundo, uma vegetação fechada de todos os tons de verde. Nas outras duas cenas os personagens contracenam com a água: um menino trajando camisa social azul e gravata, ladeado por dois vasos grandes com flores brancas, lê passagens da Bíblia que traz nas mãos, tendo ao fundo a mata fechada e as águas correntes de um rio; uma moça com vestido preto coberto por um pequeno colete dourado, postada diante de uma Bíblia sustentada por um suporte de madeira, canta com grandiloquência um gospel, tendo ao fundo vegetação e uma queda d’água que escorre por um paredão de pedra muito inclinado. Presença simbólica da água, força vital da natureza, sinal de pureza e fonte da vida, sempre associada na tradição judaico-cristã ao batismo, à confirmação da fé.
A vegetação fechada da floresta e as águas puras das nascentes sugerem a natura naturans, onde Spinoza enxergava a essência de Deus. A presença epifânica da natureza nas cenas descritas, confirmada pelo cântico de adoração ao criador, situam essas sequências do filme no debate contemporâneo da ecologia, que defende a inviolabilidade da natureza, sua dimensão sacra, a busca da sustentabilidade da existência humana e o compromisso ético de se manter o meio ambiente íntegro para as futuras gerações.
2. As palavras de Deus
Personagem de um dos musicais, um jovem bem apessoado com roupas vistosas revela ser motivo de inveja por ter sido escolhido por Deus. A relação direta com o criador ou mediada por Jesus Cristo e o Espírito Santo é tema recorrente das canções. Deus oferta todas as coisas necessárias e para o merecimento basta ao seguidor adorá-lo, segui-lo, evocá-lo. Mas oferendas especiais, caso do dom da palavra e da música, são escolhas personalizadas, frutos de uma manifestação transcendente e arbitrária. Deus escolhe seus porta-vozes, fala através deles, se manifesta pelas palavras dos pastores e pela música dos cantores gospel.
Escolher ou ser escolhido – em ambas as situações há uma submissão cega, destituída de dúvidas ou hesitações. Entrega total, soterramento da consciência, recalque dos desejos sensuais e sexuais, uma série de operações necessárias ao apaziguamento do espírito diante da palavra de Deus. Uma das músicas celebra a liberdade conquistada graças às palavras d’Ele, que tem o poder de quebrar os grilhões que aprisionam o homem a um mundo depravado, degradado, corrupto. Pressente-se nessa crítica velada à sociedade da intriga, da corrupção e da droga, um romantismo difuso, mas operante, onde a relação com a natureza se mostra um sucedâneo eficaz contra as forças de dissolução da civilização. Assim, a submissão a Deus e a vida regulada pelos fenômenos da natureza são vistos como libertação.
De maneira peculiar, curiosa, contraditória, os musicais alternam jovens de aparência e comportamento padronizados – os rapazes saindo da meninice vestindo camisas sociais e gravatas, as moças recatadas como mães envelhecidas precocemente escondidas em saias e vestidos de cortes rígidos –, e apresentações onde conta o brilho individual – solistas talentosos no meio de instrumentistas esforçados. A glória a Deus que busca a fruição espiritual não impede certo apego ao bem-estar econômico, que se manifesta nas vestes e nas distinções obtidas pelo mérito, no caso o talento para a música ou para a palavra.
A base social para o fenômeno é visível. Legiões de jovens não puderam sonhar, impedidos por uma sociedade fraturada que justifica dia a dia uma situação injustificável: a divisão cruel dos direitos sociais e dos benefícios da produção coletiva. Nunca me sonharam, diz o título do filme de Cacau Rhoden, que trata das escolas públicas onde estudam 85% dos jovens brasileiros (3). São jovens que nunca sonharam, que nunca tiveram a sorte de alguém sonhar por eles, abandonados pela elite social que montou um Estado que atua exclusivamente em seu próprio benefício. A década de inclusão social vivida pelo Brasil durante os governos Lula e Dilma Rousseff possibilitou que contingente expressivo de membros das camadas mais baixas experimentassem com prazer o acesso aos bens de consumo e, de forma mais restrita, as benesses da educação superior, da cultura e da arte. Mas a quantidade destes é ínfima diante do exército de excluídos. A fenda abissal entre ricos e pobres jamais foi corrigida, no máximo se permitiu a construção de uma ponte estreita e frágil. É sobre os enjeitados que operam as palavras e cânticos de doutrinação, é a eles que se oferece e se entrega a paz e o bem-estar físico e emocional de forma imediata, terrena, embrulhada na ilusão da elevação emancipadora. Nesse sentido, o processo de recrutamento religioso disputa o mesmo contingente à disposição do tráfico de drogas e do extremismo fascista, o que garante ao conservadorismo que o move alguma legitimidade social.
3. Os ventríloquos da palavra de Deus
Diante das imagens e das palavras de Deus os jovens evangélicos se erguem ou se prostram, dependendo da visão crítica adotada. O curta-metragem Terremoto Santo, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, nos convoca a adotar um ponto de vista, o que faço sem qualquer constrangimento.
Antes, porém, é bom se dizer que é inaceitável uma condenação do movimento musical promovido pelos jovens evangélicos por discordar de seu conservadorismo. Eles o promovem de forma virtuosa, qualificada e honesta. E é bom lembrar que o comportamento, os rituais, as vestimentas, a iconografia e as referências visuais manipuladas, e os próprios temas das letras estão vinculados ao gênero musical gospel, que compreende uma série de opções estéticas tão legítimas como outras. Adentrar por esse caminho seria tão injusto como sentenciar os músicos punks por incitamento à violência quando parte grande da mensagem é pura mise-en-scène. Também é bom reiterar que em um mundo mercantilizado, onde o meio ambiente é entendido como território da exploração ilimitada, é salutar que vozes ouvidas pelas novas gerações retomem uma visão sagrada da natureza.
Bárbara Wagner e Benjamin de Burca realizaram um curta-metragem excelente, um dos melhores filmes que vi nos anos recentes. Terremoto Santo apresenta a fé encarnada na música e na palavra de fé, evoca o maravilhoso e o enlevo diante da natureza. Mas também revela a doutrinação cega, que se desdobra socialmente em intolerância perante a diferença. Essa revelação da ambiguidade e das contradições presentes no movimento se apoia numa perspicaz visão sociológica dos diretores, que compreendem com argúcia os mecanismos complexos que regem o embate cultural, que se revelam em produtos que circulam no mercado de massas. Bárbara Wagner, ao comentar filmes de sua autoria que tratam do brega religioso e do funk da periferia, expressa com clareza suas preocupações:
“para mim, a cultura do brega representava essa visibilidade de uma nova classe, unindo consumo, ostentação e a ideia de celebridade. [...] Os códigos do dominador estão em todos os níveis de apresentação dessa indústria, desde os carros importados até as roupas de grife. A meu ver, isso é uma grande subversão, pois é a partir dessa apropriação que o brega e o funk se estabelecem no mercado e são consumidos inclusive pela elite” (4).
Contudo, é possível explorar um pouco mais esse veio, tentar cavoucar até encontrar a raiz de seu fundamento político. Entendo que beleza do musical e a elevação espiritual dos seus protagonistas não são capazes de ocultar a base perigosa que os sustenta. Trata-se de uma visão de mundo ultraconservadora, que pede obediência cega e acrítica de seus seguidores, que lhes paga de forma mundana, permitindo e incentivando um empreendedorismo que resulta em benefícios pecuniários e na fama do estrelato. Há nesse contrabando de valores criticados ao inimigo – a adesão rasa às promessas pagãs do consumo e da celebridade – uma evidente hipocrisia. Assim, o projeto religioso-cultural promovido por segmentos evangélicos revela sua base política reacionária: o amálgama do plano da transcendência religiosa submetida às palavras divinas reguladoras e do plano da vida mundana regida pelo consumo soterra a possibilidade do surgimento de uma visão crítica que enfrente de forma corajosa as mazelas sociais mais graves. O projeto expõe sua dimensão pedagógica, que almeja a formação de uma legião de seres unidimensionais, sem capacidade de reflexão crítica, adestrados a obedecer às palavras de seus líderes religiosos, que interpretam e distorcem as palavras sagradas a seu bel prazer.
Caso essa visão regressiva ficasse restrita aos fieis, estaríamos dentro do campo da diversidade e do necessário respeito à diferença. Mas a expansão evangélica na sociedade atual tem desdobramentos no campo econômico – os dízimos não taxados enriqueceram loucamente as igrejas e seus dirigentes –, no âmbito cultural – os recursos ilimitados levaram as igrejas a adquirirem rádios e televisões em todo o país – e na arena política – a chamada bancada evangélica é hoje numerosa e com enorme influência em todos os níveis de poder. São fatores extra religiosos, mas que funcionam como palanques privilegiados não só da mensagem religiosa, mas de um sem número de valores conservadores, que se convertem rapidamente em interditos, apresentados não como obrigações exclusivas dos seguidores, mas de toda a sociedade. Há um amedrontador crescimento no meio evangélico de uma intolerância agressiva contra crenças religiosas de origem africana, contra práticas sexuais fora do script monogâmico do casal tradicional, contra o aborto, contra a emancipação da mulher na sociedade contemporânea.
No momento atual, onde se vivencia o refluxo de valores democráticos, a onda evangélica se posta de forma simétrica ao tradicional reacionarismo das classes médias católicas, sempre de prontidão para defender as restrições de direitos – humanos, sociais, sexuais, políticos, sindicais, das minorias etc. A prova contundente dessa afirmação é a presença dessas duas forças – antagônicas na militância religiosa – na mesma trincheira de onde saem os ataques mais contundentes às agendas libertárias e de promoção social, sendo o golpe de Estado que derrubou uma presidente democraticamente eleita, a defesa da Escola sem Partido, e a censura de obras de arte os exemplos mais recentes desse pacto silencioso entre militantes religiosos antagônicos.
notas
1
Terremoto Santo (“Holy Tremor”). Direção de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Curta-metragem, musical, 19', Brasil, 2017.
2
TESSITORE, Mariana. A construção de um novo popular. Bárbara Wagner cria obras a partir da observação de cultos evangélicos, do universo do funk e de outros fenômenos de massa e expressões coletivas. Brasileiros, São Paulo, 07 jun. 2017 <http://old.brasileiros.com.br/2017/06/construcao-de-um-novo-popular>.
3
ARIAS, Juan. Quando ninguém mais sonha com eles. El País. Madri, 13 out. 2017 <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/13/opinion/1507850907_642309.html>.
4
Apud TESSITORE, Mariana. Op. cit.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.
biblioteca tempos temerários
Tempos Temerários é um projeto de Abilio Guerra e Giovanni Pirelli, produzido pela equipe do Marieta (portal Vitruvius + Irmãos Guerra Filmes + produtora Cactus), que visa ser um momento de debate sobre temas da atualidade, como um laboratório permanente para pesquisar técnicas, ações e ideias de resistência e transformação politica, social e cultural.
BRUM, Eliane. Gays e crianças como moeda eleitoral. El País, Madri, 18 set. 2017 <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/18/opinion/1505755907_773105.html>.
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COLI, Jorge. Por moralismo torpe, pessoas decidem eliminar a reflexão e neutralizar a arte. Drops, São Paulo, ano 18, n. 121.06, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.121/6734>.
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