Na capa do livro, Hélio Oiticica aparece dançando com Nininha Chochoba em um ensaio da escola de samba Mangueira. A fotografia, de 1964, ilustra a subida do artista ao morro, isto é, a sua verdadeira “queda de Damasco”, pois, como sentenciou Lygia Pape, “ele era um apolíneo que passa a ser dionisíaco”. Estética da ginga parte desse gesto transcendental para realizar um mapeamento em três campos: o artístico, o arquitetônico e, por extensão, o sócio-cultural. O livro persegue um a fronteira interdisciplinar, estreitando noções de arte, arquitetura e filosofia. Além disso, propõe uma saída para certos limites arquitetônicos, o que marca a sua ousadia intelectual, bem presente no epílogo – talvez a sua parte mais utópica e engajada.
Neste sentido, o aproveitamento do pensamento artístico de Oiticica é imenso, pois há obras que atingem uma reconhecida condição metafórica arquitetônica (Parangolé, Tropicália, Éden, Babylonests...) e são analisadas em convergência com três figuras conceituais – Fragmento, Labirinto e Rizoma – que ao mesmo tempo explicitam características de Oiticica e da natureza cartográfica das favelas. Elas desenham a pauta no decorrer do livro: o salto do corpo físico à arquitetura, desta ao urbano, e do urbano ao território. Tanto os críticos Guy Brett e Aracy Amaral como o poeta Waly Salomão deram conta da significação desta “não-arquitetura” da favela Mangueira em Oiticica. A existência estética das favelas e a possibilidade de outra arte, mais ligada à vivência, estão na origem do livro.
Paola Berenstein Jacques, autora deste ensaio, levanta algumas impossibilidades da arquitetura (“a arquitetura tem grandes dificuldades em enfrentar os riscos do acaso, do aleatório, do arbitrário, do fragmentário”) que permitem aproximar-se da estética maleável das favelas, cheias de linhas de fuga e sem centro. Mas a maior inflexão do texto encontra-se na página 47, no capítulo dedicado ao fragmento, quando se define a preocupação fundamental dos arquitetos com o tempo, com o eterno – quase sinônimo do homogêneo. Aí reside a diferença de enfoque da autora – ativa arquiteta –, ao considerar que a arquitetura deve ser uma arte não só do espaço, mas também do tempo. Como se vê, a questão fulcral está em como espacializar a temporalidade da arquitetura.
Em suma, o que a autora propõe é uma arquitetura não do tempo, mas do tempo conforme ele se apresenta na música e na dança, seguindo em paralelo com as sintonias Oiticica/favela. A diferença descoberta entre habitar/abrigar (e paralelamente entre temporário/permanente), bem como a ênfase dada na seqüência dos estados intermediários do ritmo, da dança, da fragmentação de imagens, da estreita ligação interior/exterior que fazem parte da obra do artista são, praticamente, elementos constitutivos das favelas como “espaços-movimentos” que seguem a lógica desordenada do mato, da vegetação nascida espontaneamente. O que significa uma defesa de uma arquitetura sem projeto teocêntrico, isto é, uma arquitetura do acaso, de virtudes aleatórias, democráticas e não-formalistas. Algo desta atitude pode-se verificar na favela do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro – projeto Célula Urbana, que, aliás, rompe também com a idéia de cidade partida, ao vincular-se com o bairro vizinho.
Seria possível uma arquitetura do acontecimento? – pergunta-se Derrida. Há uma outra experiência arquitetural? Enquanto a Babel continua sendo um desafio, hoje mais do que nunca sabemos que uma das reclamações mais pertinentes é a função social da arquitetura, a escuta de seu “fio terra” cultural. Ou, como há tempos já adiantou Robert Venturi, outro arquiteto emblemático: “Defendo a vitalidade confusa frente à unidade transparente”, algo que bem poderia ser assinado pelo artista carioca.
Apesar das numerosas referências (há 278 notas em todo o livro), lê-se com fluência Estética da ginga, que é completamente ilustrado. O livro respira um ar situacionista e desconstrutivo, e tem alvos claros: é dirigido contra o status racionalista e funcional da arquitetura, contra a falta de presença social nos projetos urbanísticos (o que inevitavelmente lhe concede um matiz político) e, por extensão, tem seu mea culpa corporativo, por não saber trabalhar com a natureza intrínseca das favelas. O livro homenageia Hélio Oiticica mas, sobretudo, oferece um novo perfil interpretativo de sua obra. Assim como Estética da ginga, este artista continua oferecendo questões muito vivas que não se reduzem ao universo da estética, pois reinventam outra estética.
[texto originalmente publicado na seção Bibliocanto da edição 78 da Revista Veredas, publicação cultural do Banco do Brasil, em junho de 2002]
[leia também "Inflexão teórica da arquitetura", de Pasqualino Romano Magnavita, sobre o livro de Paola Berenstein Jacques]
sobre o autor
Adolfo Montejo Navas é jornalista e escritor madrilenho, radicado no Rio de Janeiro