No mundo editorial contemporâneo a publicação de livros relacionados com aspectos teóricos/conceituais inovadores, visando estabelecer parâmetros inéditos na formação discursiva da arquitetura e de seus fundamentos, tem se demostrado um acontecimento cada vez mais raro. Paradoxalmente, hoje, como nunca, a publicação de livros e textos sobre arquitetura tem crescido exponencialmente. Evidentemente, a questão não se encontra na proliferação viral de publicações que preenchem as estantes de livrarias e bibliotecas especializadas, mas no uso de novas formas de pensar, no emprego de novas lógicas, de instrumental teórico inovador. Regra geral, a quase totalidade de livros e textos que integram o universo edital contemporâneo relacionados com a arquitetura, constitui um incomensurável catálogo de repetições e reciclagens conceituais herdado da modernidade.
O livro Estética da ginga de Paola Berenstein Jacques constitui um singular acontecimento no âmbito da cultura arquitetônica em nosso país. Filosoficamente, o termo Acontecimento, no sentido empregado por Deleuze/Guattari, ocorre quando surge um problema, um questionamento que favorece uma virtualização. Esse processo imaginativo que constitui o Virtual pressupõe o Atual e visa a sua atualização. Quando o virtual, como entidade, adquire consistência, tal fato constitui um acontecimento, um ato de criação. Propriamente, o acontecimento, como processo, não começa nem acaba, pois tem uma parte sombria e secreta que não para de se subtrair ou de se acrescentar à sua atualização. É um real sem ser atual, ideal sem ser abstrato. O acontecimento, em sua potencialidade, é pura reserva. A “Estética da ginga”, como acontecimento, possui justamente essa potencialidade criatividade. Trata-se de um ensaio teórico/conceitual aberto que procura sua atualização vislumbrando uma nova forma de pensar os fundamentos da arquitetura e, desta forma, tem como alvo contrapor-se às formas convencionais e acadêmicas de entender a arquitetura.
A mudança nas formas de pensar constitui um referencial marcante da cultura contemporânea. Tal fato é bastante evidente quando se tem presente o processo de deconstrução da lógica binária e do modelo arborescente que lhe corresponde, herança essa da condição cultural moderna. Entre as formas de pensar contemporâneas, o surgimento da lógica da multiplicidade e a percepção rizomática que lhe corresponde [Deleuze/Guattari], constitui um marco significativo dessa deconstrução na forma de pensar. Inserindo-se nesse processo deconstrutivista, a autora optou por adotar como ferramenta teórica o repertório conceitual contido na referencial obra “Mil platôs” escrito em parceria por Gilles Deleuze e Felix Guattari. Entretanto, a autora, reconhece que a transposição de noções teóricas e filosóficas à arquitetura, torna-se quase sempre uma questão problemática, particularmente, quando essas transposições se fazem por analogias estritamente formais, como se constata em vertentes da chamada arquitetura pós-moderna.
A obra em pauta constitui um trabalho teórico/conceitual e tem na obra do artista Hélio Oiticica à guisa de um fio condutor, uma ferramenta teórica, e isso, em razão de que o referido artista procurou resgatar a estética próprio do espaço das favelas cariocas e, paralelamente ao seu trabalho de criação artística, não se limitou à dimensão físico-espacial, transbordou a sua criação para a dimensão social. Importante assinalar que trata-se de um artista que concedeu um status estético as favelas. Justamente, com base nessa experiência singular do artista, a autora formula a hipótese principal do seu trabalho: “ as favelas têm uma estética própria”. Para tanto, a autora trabalha em dois níveis de compreensão: em primeiro lugar, o questionamento dos fundamentos da arquitetura e do urbanismo racionalistas que tradicionalmente são transmitidos nas nossas academias, questionamento este que subjaz ao longo de todo o texto. Em segundo lugar, a ”tentativa de decifrar o dispositivo arquitetônico e urbanístico das favelas, espaço desconhecido da maioria dos arquitetos e urbanistas”.
Atendendo à sua principal hipótese, e procurando demonstra-la, a autora usa três figuras conceituais: o Fragmento, o Labirinto e o Rizoma, particularmente as duas primeiras mais explícitas e presentes na obra de Oiticica e em seus relatos e escritos sobre suas vivências no morro da Mangueira. Enquanto que a figura conceitual, Rizoma, traduz a familiaridade que a autora possui com a lógica da multiplicidade. Foi inspirada nessa estética destilada da obra de Hélio Oiticica que a autora denominou o seu trabalho estética da ginga. Contudo, vale observar que a decisão pela abordagem estética é justificada pela autora como alternativa ao racionalismo ainda hegemônico na forma de pensar e criar. Aceitando, portanto, as formulações filosóficas de Deleuze e Guattari que, contrariando as concepções convencionais do positivismo científico, demonstram não existir nenhuma predominância, hegemonia, entre as diferentes formas de pensar e criar, isso é, entre a Ciência, a Arte e a Filosofia. A autora, ciente da heterogênese que essas formas promovem ao relacionar-se entre si, não vacilou, em sua decisão, em optar pela abordagem estética, afastando, assim, de seus propósitos, a tirania da racionalidade científica que tanto caracterizou o pensamento moderno e que todavia ainda perdura.
Em relação as figuras conceituais empregadas, há uma explícita advertência: as mesmas devem ultrapassar a esfera do formal para alcançar o conceitual. Não há preocupação da autora de estudar as formas, mas sim os processos que as [trans]formam. Para ela, essas figuras não são metáforas arquitetônicas, nem simples figuras formais, afirmando, pois, que “só quando se chega ao puramente conceitual, à abstração de uma teoria, é que se pode fazer um retorno ao real; só a partir desse momento será possível avançar algumas idéias ligadas à prática da arquitetura e do urbanismo”. Prefere, portanto ir do real ao abstrato, do formal ao conceitual, partindo sempre de percepções da realidade, e isso, através de mudança de escala. No Fragmento, passa do corpo físico à arquitetura; no Labirinto, da arquitetura ao urbano; no Rizoma, do urbano ao território. São três momentos, estágios de análise: a favela real, a concernente à obra de Oiticica e a puramente conceitual.
Sem dúvida, Rizoma, constitui o capítulo mais inovador do livro, e isso, sem desmerecer as outras duas figuras conceituais abordadas. Associando Rizoma à idéia de crescimento, de ocupação de territórios e formação de territórios urbanos, a autora procura demonstrar o que diferencia o processo de territorialização, de ocupações informais, “selvagens” de terrenos vagos, das ocupações formais que emanam de leis e modelos codificados por especialistas. E igualmente, estabelece a diferença entre a forma de pensar a complexidade na multiplicidade, isso é, no âmbito da percepção rizomática, contrapondo-a à lógica binária, ao modelo arborescente, da arvore raiz.. Para tanto, traz à tona as formulações de Chistopher Alexander em “A city is not a tree” de 1965 , procurando mostrar que o autor, apesar de suas preocupações em superar o modelo arborescente, seus diagramas matemático-geográficos , continuaram racionais, cartesianos, arborescentes.
A transformação da metáfora vegetal do rizoma em conceito filosófico por Deleuze e Guattari, pressupõe um processo que pode ser distinguido por um conjunto de “características aproximativas”, à guisa de princípios, a exemplo dos de conexões e heterogeneidade; de multiplicidade; da ruptura a-significante; da cartografia e da decalcomania. Aderente a esse instrumental conceitual, a exemplo de uma rede aberta, a autora compara o processo de favelização, de ocupações informais com o mato que nasce discretamente nas bordas e que logo acaba ocupando a totalidade nos vazios deixados pela máquina imobiliária. Estabelece, assim, um confronto entre a lógica do mato[da “erva daninha”] e a lógica da árvore, ou seja, entre o sistema erva/rizoma do pensamento da multiplicidade e aquele configurado no pensamento binário ainda dominante. Insiste na oposição entre uma cultura acentrada, não hierárquica, instável e uma cultura arborescente, hierárquica e enraizada. Explica, assim, como um rizoma, a exemplo do mato, da erva, está sempre no meio, não têm começo nem fim, transborda e implica a idéia de infiltração, de um escoamento que preenche vazios. O Processo de favelização, na surpreendente comparação ao mato, escapa à idéia de projeto, cresce onde não se espera, formando encraves no território urbano.
Na parte final do trabalho, apropriando-se da proposição criativa “jardins em movimento” do paisagista Gilles Clément e contestando ao mesmo tempo sua idéia de “arte involuntária” e sua aplicação às favelas, se refere à suposta intenção da prefeitura do Rio de Janeiro de “preservar” as favelas. Contrariando o senso comum e o consenso generalizado dos responsáveis pela intervenções do programa oficial “Favela-Bairro”, a autora propõe em lugar de preservar as favelas o que “seria necessário preservar é o seu próprio movimento”, ou melhor, “territórios em movimento”, ainda melhor, “bairros em movimento”, procedendo “ através de quase não intervenções, ou seja, intervenções mínimas.
Depois dessa breves considerações sobre o trabalho à guisa de resenha, ocorre perguntar que lição o leitor da Estética da ginga poderá tirar? Sem dúvida, a atitude de ousar, de contrapor-se à forma de pensar consensual, lançando no intercâmbio de idéias, imagens conceituais novas que podem receber um desejável acolhimento em relação aos fundamentos da arquitetura e do urbanismo. Como ato criativo, o trabalho constitui um singular acontecimento e como tal, pressupõe ainda um processo de atualização, isso é, como sistema aberto, propício à conexões e heterogeneidades sob a égide da lógica da multiplicidade, instrumental teórico este extremamente rico em noções e conceitos. Sem dúvida, no âmbito dos estudos teóricos produzidos no país e que se relacionam com os fundamentos da arquitetura e urbanismo, a Estética da Ginga pode ser considerado um ponto de inflexão.
Para concluir, valeria acrescentar que, no caso específico do processo de ocupação de terrenos e criação de favelas, questão chave do trabalho, os processos urbano, especificamente as produções de arquitetura e urbanismo, podem vir a ser consideradas tanto “máquinas abstratas” de sobrecodificação efetuadas pelo “aparelho de estado” quanto “máquinas de guerra” que procuram escapar a sobrecodificação e resistir aos “aparelhos de captura” que se encontram à serviço do aparelho de estado. Situação essa extremamente conflitante em nosso país que acaba por exigir, compulsoriamente, ao lado das realizações de natureza estética, no espaço físico da percepção urbana, um inadiável posicionamento ético, passando, inevitavelmente pelo viés político que poderá promover uma melhor qualidade de vida, hoje tão aviltada e insegura sob a hegemonia do paradigma científico/tecnológico.
[texto originalmente publicado na Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n.5, p. 125-127]
[teia também "Parangolé na arquitetura", de Adolfo Montejo Navas, sobre o livro de Paola Berenstein Jacques]
sobre o autor
Pasqualino Romano Magnavita é professor emérito da UFBA, Salvador BA