É evidente a satisfação dos diretores da empresa Vida instalada na Casa Lutzenberger, em Porto Alegre, com uma intervenção da responsabilidade do arquitecto Flávio Kiefer. Há boas razões para isso: estamos num edifício projectado em 1931 por Josef Lutzenberger, arquitecto-engenheiro-pintor, cujo último morador foi o filho, José Antônio Lutzenberger, activista ecológico, e a reforma faz justiça ao valor patrimonial que sentimos no ar, e conhecemos na história documentada. Josef Lutzenberger, de origem alemã, chega a Porto Alegre em 1920, onde constrói até 1951 um conjunto de edifícios significativos (consulte-se, a propósito, de Maturino Salvador Santos da Luz, A Arquitetura de Josef Franz Seraph Lutzenberger (1920-1951). UFRGS/PROPAR: Dissertação de Mestrado, 2003). José Lutzenberger realizou um conjunto de experiências ecológicas no jardim dos fundos da casa que lhe dará ainda outra incidência e valor patrimonial.
Flávio Kiefer enfrenta um quadro de grande singularidade, acrescido da arquitectura muito particular do edifício, ecléctico, que arriscaria definir como arte nova com referência a um nacionalismo centro-europeu. A integração da presença rústica, vernacularizante, com temas eruditos da arquitectura doméstica como a “bow-window” define uma hibridez muito particular. Esta complexa sinalética formal, mesmo num edifício de pequena dimensão, cria uma arquitectura algo cifrada, que não torna fácil a intervenção.
Flávio Kiefer entende muito bem a dificuldade do diálogo que tem de empreender. No volume necessário que amplia a Casa Lutzenberger, esboça uma resposta igualmente híbrida e instigante: através de uma matriz neoplástica de tensão entre planos, sucedem-se texturas e brilhos de materiais dissonantes num efeito expressionista que se acrescenta à rusticidade do edifício preexistente. Flávio Kiefer não cede a uma Carta de Veneza que levaria à demarcação higiénica entre o novo e o antigo. Nem introduz uma lógica modernista para exacerbar uma exemplaridade formal em detrimento da vernacularidade do edifício-mãe. Ensaia, com todos os riscos inerentes, uma hibridez representativa da história passada e do tempo presente. Não é passivo nem é ostensivo neste modo. Antes cumpre a função que penso que é hoje acometida ao arquitecto neste tipo de intervenções: a de recriar um layer temporal, que não tem de necessariamente moralizar ou denunciar o tempo preexistente ou demonstrar um virtuosismo do presente.
A reforma de edifícios – ou reabilitação, em português de Portugal – tem hoje uma urgência dupla: não só para cuidar do património das cidades mas também para evitar uma construção desmesurada de edifícios que a médio ou longo prazo se possam revelar inúteis ou impraticáveis como acontece actualmente em algumas partes da Europa. Mesmo em países economicamente pujantes, como o Brasil, onde a construção nova ainda desempenhará um papel importante, nomeadamente no quadro da habitação, a recuperação e re-significação de edifícios de maior ou menor valor patrimonial faz todo o sentido, também no plano de uma ecologia do construído.
Requalificar um edifício significa submetê-lo a uma nova estratégia e a um novo afecto, um trabalho que envolve vários níveis de atenção e conhecimento: histórico, construtivo, formal. Ao contrário do que se poderá supor, o arquitecto é tão importante neste tipo de intervenções como em obras de raiz. Porque não se trata apenas de reformatar o interior, ou de encenar uma nova funcionalidade, mas de entender profundamente a lógica do edifício e de encontrar um modo dialéctico de intervir como acontece, de facto, na Casa Lutzenberger. Se se preferir, trata-se de permear o antes na direcção do depois do edifício. Por isso parece haver aqui um fio condutor que tudo liga, cruzando a modulação do espaço, pavimentos, tectos e paredes, novos e antigos.
Na reforma de edifícios, como em quase tudo hoje, a equação contemporânea é que “cada caso é um caso”. As certezas programáticas e disciplinares não se aplicam. Podemos até utilizar uma analogia com vários tipos de cirurgias plásticas correntes, que se podem intersectar: “Peeling” ou “lipo-aspiração” quando se procura encontrar uma ossatura do edifício, uma certa severidade espacial que é restituída ou inventada como se tivesse existido; “botox” ou “lifting” quando se define uma coreografia formal acrescentando ou subtraindo elementos segundo uma lógica de sensualidade ou sedução arquitectónica.
A intervenção de Flávio Kiefer escapa a estas categorias, o que significa que consegue fazer deste caso um caso particular. É-nos proposto uma espécie de interpretação contemporânea dos temas do edifício preexistente. Há também um motivo vernacular no uso da pedra, mesmo se as belíssimas janelas de canto nos enviam para o mundo moderno, e o concreto nos devolve a experiência brasileira do século XX. A implantação do necessário elevador é feita com elegância num volume que remete para a marcação vertical da Casa. Há ainda a anotar, como marca da subtileza poética da intervenção, um emocionante lanço de escadas exteriores que, à volta do elevador, nos leva até ao terraço.
A relação com a Casa que existia não é feita por oposição ou mimetismo, antes num diálogo afectuoso e sabedor, em respeito pela sua história mas também pelo nosso tempo. O edifício ganha uma nova vida, na continuidade com a que foi correndo ao longo do século XX, agora com uma nova circunstância institucional.
No volume adaptado da garagem, no interior do lote, a arquitectura é necessariamente mais livre, e cria um diálogo aberto com as espécies vegetais cuidadas por José Lutzenberger e que deram uma acrescida notoriedade à Casa. É um micro-cosmos potente, onde a arquitectura e a paisagem se tocam ao mais belo modo brasileiro, aqui num modelo laboratorial. Para lá dos aspectos funcionais e técnicos, a intervenção de Flávio Kiefer cumpre o essencial: acrescentar mais um layer significativo à história já densa e futurante da Casa Lutzenberger.