Uma casa, três tempos
Flávio Kiefer
O projeto de restauro da Casa Lutzenberger levou em conta três diferentes memórias: a residência e escritório do arquiteto e aquarelista que a projetou e construiu, Josef Lutzenberger; a casa de seu filho, o ecologista José Antônio Lutzenberger; e a empresa que o filho ecologista criou, a Vida. As duas primeiras deram os motivos para o tombamento da residência e seu jardim pela prefeitura de Porto Alegre, atendendo ao pedido da família herdeira do imóvel. A última é uma memória em construção e o próprio fato da empresa restaurar, ocupar e conviver com as outras duas passa a ser marco relevante em sua história.
Estamos acostumados a ver prédios históricos transformados em museus e centros culturais, mas ainda não são comuns como gostaríamos os exemplos de reciclagem para o uso comercial. Não que não se faça, mas muitas vezes o passado entra como obrigação legal, uma ordem a ser obedecida a contragosto. Essa maneira de proceder, sem amor à pré-existência, acaba prejudicando o resultado final, deixando marcada a inconveniência mal absorvida. Aqui, para reciclar a Casa Lutzenberger, ao contrário, o valor afetivo que os proprietários e diretores da empresa devotavam a este imóvel era uma das condições de projeto.
A Casa Lutzenberger foi construída em 1931 para servir de moradia e sede das atividades profissionais de seu construtor Josef Lutzenberger, imigrante alemão, engenheiro-arquiteto formado em 1906 pela Universidade Técnica Real de Munique e autor de importantes obras de Porto Alegre, como Igreja São José (1924), Orfanato Pão-do-Pobres (1925/1930) e Palácio do Comércio (1937/1940). A fachada principal da casa é um quadrado visualmente perfeito que contém nove aberturas distribuídas simetricamente. A composição é ornada com motivos geométricos bastante contidos, que se aproximam da austeridade. Por outro lado, o movimento de saliências e reentrâncias no volume da edificação, e mesmo delicadas curvas nas arestas da massa de revestimento, dá à fachada um ar mais leve e gracioso. A casa, projetada apenas com fachadas de frente e fundos, foi colada em uma de suas divisas, deixando à mostra a empena oposta. Josef Lutzenberger pretendia construir, na lateral vaga, a sede de sua firma de construção, fechando a frente do terreno. Como isso nunca foi feito, o que era para ser apenas uma fachada virou volume, e volume inacabado.
Para sua empresa, o arquiteto construiu um anexo na forma de um galpão de quatro águas nos fundos do terreno. Muitos anos depois, seu filho José Antônio, último morador da casa, transformou esta edícula em sede da Fundação Gaia e em laboratório experimental que daria origem a empresa que hoje restaurou a casa. O antigo pátio, aos poucos, se tornou densamente verde e uma referência para o bairro.
Como a área que a empresa Vida precisava para sua nova sede era maior que a área construída disponível e como a acessibilidade universal também tinha que ser resolvida, a solução foi ampliar a planta da casa. Assim surgiu a oportunidade de resolver o problema da fachada principal, deixando-a mais valorizada e melhor contextualizada. A ampliação, entretanto, continuou distante da divisa lateral, formando uma ideia de esquina, marcada por um piloti de aço em forma de “L”, que indica o acesso ao famoso jardim. Nesta esquina foi colocada a porta de entrada da empresa.
Funcionalmente, não há distinção entre as partes antigas e novas. Tudo funciona como um prédio único. No pavimento térreo temos um pequeno auditório, sala de reuniões com uma recepção, café e sanitário, com entrada direta da rua pela antiga porta da casa que liga-se também para o restante da empresa através de uma porta interna. Entrando pela porta principal temos a recepção, o Espaço Lutzenberger, voltado à memória do ecologista, e um estar que fica num nível mais baixo e tem uma grande vidraça para o jardim. Externamente, o jardim tombado faz a ligação ao anexo dos fundos e serve como lazer e descanso dos funcionários.
Os 2º e 3º pavimentos foram divididos basicamente para abrigar os escritórios de acordo com as necessidades da empresa Vida, mantendo ao máximo as paredes existentes. A antiga cozinha foi transformada em copa no segundo pavimento, enquanto a antiga lavanderia do terceiro andar foi transformada em biblioteca. O sótão ganhou novo aceso pelo terraço jardim que foi criado na cobertura da ampliação da casa, facilitando o trânsito para as áreas técnicas.
O anexo, aos fundos, que originalmente, como foi dito, era um galpão da construtora do arquiteto, havia sido reformado para servir de sede da Fundação Gaia. Ele estava descaracterizado e não havia porque restaurar sua antiga arquitetura. A solução foi preservar o volume original da construção sem mexer na estrutura do telhado, que se apoiava nas alvenarias. Os apoios foram substituídos por um pilar – em “L” igual ao da fachada da parte nova da casa – e grandes vigas de aço corten que se apoiam nas novas alvenarias de pedra. Este espaço coberto serve de estacionamento e também para abrigar os churrascos da empresa. Mais ao fundo foi demolida uma ampliação do antigo galpão para abrigar sanitários e o arquivo morto. Este volume é todo em concreto à vista e se projeta levemente sobre o jardim tombado.
sobre o autor
Flávio Kiefer é arquiteto formado pela UFRGS, com mestrado na mesma Universidade (Propar). Hoje, é professor da PUC-RS, onde também é diretor do Instituto de Cultura. Organizou livros e tem publicados inúmeros projetos e artigos em livros e revistas. Entre seus principais projetos estão a Casa de Cultura Mário Quintana, Casa de Cultura de Esteio, Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, Centro Histórico Vila Santa Theresa, Escolas Infantis Construtivistas de Porto Alegre, Casa das Três Palmeiras e Casa Fuke.
ficha técnica
projeto
Restauro da Casa Lutzenberger
local
Rua Jacinto Gomes 39, Porto Alegre RS
cliente
Vida – Desenvolvimento Ecológico Ltda.
áreas
Terreno: 601,05m²
Restaurada: 366,05m²
Ampliação: 98,35m²
Total: 464,40m²
datas
Projeto: 2010
Inauguração: 08 de agosto de 2012
projeto arquitetônico
Kiefer Arquitetos
Arquiteto Flávio Kiefer
Arquiteta Janaina Carla Dalarosa; acadêmicas Lídia Arcevenco e Raíssa Acunha (colaboradoras)
consultor de restauração das fachadas
Engenheiro Fernando A. Piazza Recena
projeto paisagístico
Adolfo Muller