Foram muitas as maneiras encontradas por arquitetos, pesquisadores e críticos brasileiros para tentar definir a excepcionalidade de um certo edifício para escritórios construído no Rio de Janeiro no final da década de 1930 para sediar o Mistério da Educação e Saúde, depois o Ministério da Educação e Cultura, hoje denominado Palácio Gustavo Capanema. Para Lúcio Costa deve-se creditar à sede do MES a revelação da genialidade do arquiteto Oscar Niemeyer, o que por si só já lhe daria destaque especial na historiografia da arquitetura moderna. Mas Lúcio Costa ainda esclarece tratar-se “de uma obra destinada a figurar (...) na história geral das belas-artes como marco definitivo de um novo e fecundo ciclo da arte imemorial de construir. Foi, efetivamente, neste edifício onde pela primeira vez se conseguiu dar corpo, em obra de tamanho vulto, levada a cabo com esmero de acabamento e pureza integral de concepção, às ideias-mestras por que, já faz um quarto de século, o gênio criador de Le Corbusier se vem batendo com a paixão, o destemor e a fé de um verdadeiro cruzado. De todas as sementes por ele generosamente lançadas aos quatro cantos do mundo (...) foi esta, deixada aqui (...) a única, afinal, que de fato vingou” (1).
Para Carlos Eduardo Comas o palácio também é “protótipo e monumento” (2); para Ruth Verde Zein é “citação obrigatória, marco de qualquer abordagem histórica da arquitetura moderna brasileira” (3); para Mauricio Lissovsky e Sergio de Sá, “nascida monumental, a construção deste edifício assume desde logo caráter mitológico” (4); para Ítalo Campofiorito o edifício é “grácil, gentil e forte (...) tocado de garbo, delicadeza e vigor (...) perfeito Retrato do Modernismo quando Jovem” (5). Para os autores do livro Le Corbusier e o Brasil, “a partir do convite para opinar sobre o projeto do MEC no Rio de Janeiro redefinem-se os papeis do professor e dos alunos” para se dar a conhecer uma nova arquitetura “moderna e brasileira” (6), situação que chega a deixar o mestre europeu irritado com o empreendedorismo e a ousada autonomia dos alunos brasileiros: “como estes jovens conseguiram fazer, num pais como o Brasil, o que eu não consigo fazer aqui na Europa?” (7). O incidente chegou a comprometer o relacionamento entre mestre e alunos quando Le Corbusier, inconformado por receber apenas o crédito de consultor do projeto, comete o “deslize” de publicar no volume Ouvre Complète, 1934-1938, “um esboço a posteriori, baseado nas fotos do edifício construído”, assinalado por Lúcio Costa em correspondência: “(você) publica (o esboço) como se tratasse de uma proposição original, (o que) nos causou a todos uma triste impressão” (8).
A fórmula encontrada por Roberto Segre para resumir todas as outras e dar título ao livro que vai rever, completar e aprofundar a história deste palácio moderno, esclarecendo mais uma vez a questão de autoria do projeto entre inúmeras outras, esta fórmula é “ícone urbano da modernidade”. Para entender e situar um debate de tantos anos, que aqui só foi exposto no consenso final de críticos e pesquisadores brasileiros, Roberto Segre reuniu uma equipe de colaboradores e se lançou naquele que viria a ser o empreendimento de uma vida que vai surgir como ele explica na Introdução, da sua paixão pela cidade do Rio de Janeiro aonde veio a se estabelecer como pesquisador e professor em 1994, dando continuidade à sua outra paixão, aquela pela arquitetura de Le Corbusier, do então jovem emigrante italiano estudante de arquitetura em Buenos Aires.
A pesquisa acadêmica iniciada em 1998 tornou-se projeto do livro Ministério da Educação e Saúde – ícone urbano e modernidade brasileira em 2006, e dois anos mais tarde ganhou ainda a responsabilidade de fundamentar o dossiê de candidatura do Palácio Gustavo Capanema a Patrimônio Mundial, antiga reivindicação até hoje ainda não encaminhada pelo governo brasileiro à Unesco, que inclusive seria complementar à inscrição de Brasília ocorrida em 1987, já que a cidade foi inscrita principalmente por representar “un événement majeur dans l’histoire de l’urbanisme” (9). Lembrando que, já no ano de 1948, a sede do MES foi tombada (classificada) pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan, reconhecida assim como patrimônio nacional. Apenas três anos após sua inauguração – em inusitada antecipação temporal da excepcionalidade de um monumento e das questões que envolvem a proteção da arquitetura do Movimento Moderno – o edifício foi inscrito no Livro do Tombo das Belas Artes, por “tratar-se da primeira edificação monumental destinada a sede de serviços públicos, planejada e escutada no mundo, em estreita obediência aos princípios da moderna arquitetura” (p. 456-457).
O Palácio Gustavo Capanema – nome em homenagem ao ministro de Getulio Vargas que desempenhou papel fundamental na contratação dos arquitetos cariocas, na vinda de Le Corbusier ao Brasil e na viabilização do projeto – foi projetado por uma equipe de então jovens arquitetos composta por Lúcio Costa (1902-1998), Carlos Leão (1906-1983), Oscar Niemeyer Soares Filho (1907-2012), Affonso Eduardo Reidy (1909-1964), Ernani Vasconcellos (1912-1989) e Jorge Machado Moreira (1904-1992), tendo como consultor Le Corbusier. Aos arquitetos juntaram-se ainda Roberto Burle Marx (1909-1994), responsável pelo projeto das áreas verdes, e os artistas plásticos Cândido Portinari (1903-1962), que desenhou os azulejos e executou as pinturas murais; Bruno Giorgi (1905-1993), Jacques Lipchitz (1891-1973), Adriana Janacópulos (1897-1978), e Celso Antônio (1896-1994), responsáveis pelas inúmeras esculturas que povoam o edifício, além do engenheiro Emílio Baungart, responsável pelos cálculos estruturais.
O início do longo processo que inclui o projeto e a construção do palácio foi marcado pelo lançamento de um concurso oficial para a nova sede para o Mistério da Educação e Saúde em abril de 1935, e pela sua posterior anulação, continuou com a nomeação dos arquitetos e artistas modernos e com a vinda de Le Corbusier ao Rio de Janeiro em 1936, e ainda com o lançamento da pedra fundamental do edifício em abril de 1937, terminando com a inauguração oficial em 03 de outubro de 1945. Foram dez anos enfrentando as dificuldades de ordem econômica e as contradições de ordem política que marcaram o governo de Getulio Vargas, anos vividos no contexto da Segunda Guerra na Europa e dos embates culturais que fizeram da obra do MES um campo privilegiado para a medição de forças entre a tradição acadêmica e as vanguardas artísticas, ambas em enfrentamento desde os anos 1920 no Brasil.
Em 544 páginas e 945 notas de referência, as equipes do autor do livro, Roberto Segre, e da Romano Guerra Editora, articulam e organizam fontes bibliográficas, revelam e publicam documentos, lançando assim uma nova luz sobre os debates que cercam a longa gestação da modernidade monumental no Brasil e mostrando a sede do MES em suas diversas faces. A primeira delas enfatiza o papel do edifício na transformação da cidade do Rio de Janeiro. Situado em uma nova área de expansão do centro, o projeto discute as disposições do plano urbanístico concebido pelo francês Donat Alfred Agache para o Rio de Janeiro em 1927, rompendo com a proposta clássica de ocupação compacta dos quarteirões ao liberar uma importante área do terreno para jardins e para a circulação de pedestres sob seus pilotis.
O desenvolvimento do projeto de arquitetura, em todas as suas fases, é dissecado e analisado exaustivamente através da publicação de croquis, desenhos, fotografias e documentos textuais, esclarecendo questões compositivas, construtivas e até aquelas relativas à conservação e ao restauro. Na apresentação do livro, Jean-Louis Cohen chama a atenção para alguns desses aspectos, como o fato da sede do MES inaugurar uma nova tipologia de arranha-céu, estabelecendo não só uma ruptura léxica, com a utilização dos brise-soleils e pilotis de matriz corbusiana, como uma ruptura estrutural referindo-se à planta alongada, ao núcleo de circulação descentralizado e ao volume arrematado por cobertura plana.
Durante a viagem ao Brasil, em 1936, Le Corbusier escreve, a bordo do dirigível Zeppelin, o texto “L´architecture et les Arts Majeurs” (10) que confia a Lúcio Costa quando volta para a França, desenvolvendo suas ideias, então embrionárias, sobre a possibilidade de uma relação efetiva entre as três artes maiores – arquitetura, escultura e pintura – e delas com outros meios de expressão. Entre outros princípios corbusianos, o MES concretiza e inaugura a Síntese das Artes principalmente através da temática das obras de arte associadas ao projeto e da utilização dos tradicionais painéis de azulejos azuis e brancos, fazendo ainda desse diálogo entre as artes a semente do acento brasileiro característico da nascente arquitetura moderna do Rio de Janeiro: “a própria personalidade nacional se expressa através da colaboração arquitetônica dos autênticos artistas, preservando-se assim o que há de imponderável, mas genuíno e irredutível na índole diferenciada de cada povo” (11).
Ao iluminar esse percurso através dos recantos mais recônditos do Palácio Gustavo Capanema, a pesquisa ora publicada desvenda alguns de seus mistérios, esclarece duvidas antigas e levanta outras novas, aponta para a importância do debate sobre a arquitetura moderna, e ao mesmo tempo confirma uma antiga suspeita: assim como para a maioria dos palácios considerados como marcos de excepcionalidade na história da arquitetura, a existência deste palácio moderno pode ser tributada a uma feliz circunstância que reuniu o poder e a determinação de um príncipe, o ministro Gustavo Capanema, à genialidade e a inteligência de um artista, o arquiteto Lúcio Costa.
notas
1
COSTA, Lúcio. “Carta a Gustavo Capanema datada de 3 out. 1945”. Apud: LEONIDIO, Otavio Lúcio Costa: palavra definitiva. Rio de Janeiro, I Enanparq, 2010 <http://www.anparq.org.br/dvd-enanparq/simposios/138/138-794-1-SP.pdf>.
2
COMAS, Carlos Eduardo Dias. Protótipo e monumento, um ministério, o ministério. Projeto, São Paulo, n. 102, ago. 1987.
3
VERDE, Ruth Verde. Segundo a ordem das razões e mais além. Editorial do número especial da Revista Projeto dedicado ao centenário de Le Corbusier, ago. 1987, n. 102.
4
LISSOVSKY, Mauricio; SÁ, Paulo Sérgio Moraes de. Mais vale saber de Le Corbusier que conhecê-lo aos pedacinhos. Projeto, São Paulo, ago. 1987, n. 102. Ver também: LISSOVSKY, Maurício; SÁ, Paulo Sérgio Moraes de. Colunas da educação: a construção do Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro, Minc/Iphan/Fundação Getúlio Vargas/CPDOC, 1996.
5
CAMPOFIORITO, Ítalo. Entrevista a Hugo Segawa. Projeto, São Paulo, ago. 1987, n. 102.
6
SANTOS, Cecilia Rodrigues dos; PEREIRA, Margareth da Silva; PEREIRA Romão da Silva; SILVA, Vasco Caldeira da. Le Corbusier e o Brasil. São Paulo, Tessela/Projeto, 1987.
7
PORTINHO, Carmem. Entrevista a Hugo Segawa. Projeto, São Paulo, ago. 1987, n. 102.
8
Carta de Lúcio Costas a Le Corbusier, 27/11/49, FLC, C1.18.76 a 78. In: SANTOS, Cecilia Rodrigues dos; PEREIRA, Margareth da Silva; PEREIRA Romão da Silva; SILVA, Vasco Caldeira da. Op. cit.
9
La liste du Patrimoine mondial: Brasilia. Unesco, Paris, 1987 <http://whc.unesco.org/fr/list/445>.
10
LE CORBUSIER. A arquitetura e as Belas-Artes – As tendências da arquitetura racionalista relativamente à colaboração da pintura e da escultura. O estudo da tendência que, ao contrário, impera na arquitetura racional de excluir como supérfluo, seguindo uma lógica rigorosa, o concurso das artes figurativas. Traduzido por Lúcio Costa e publicado pela primeira vez na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 19, Iphan, 1984, p. 53-69.
11
COSTA, Lúcio. O arquiteto e a sociedade contemporânea. In: XAVIER, Alberto (org.). Lúcio Costa: sobre arquitetura. 2ª edição. Porto Alegre, Editora UniRitter, 2007, p. 243.
sobre a autora
Cecilia Rodrigues dos Santos, arquiteta, professora doutora e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil.