O filme-documentário argentino Vacaciones con Fidel (Férias com Fidel) aborda os temas que permearam a consciência ideológica do continente durante os últimos 50 anos. Tristán Noblia, jornalista, produtor e protagonista do filme, expressa seu inconformismo com a vida “burguesa” pela que optou para satisfazer as necessidades e estabilidade da família. Perante a inevitável questão da viagem a Disneyworld, solicitada pelos filhos e impulsionada pelos estímulos de consumo e os desejos e aspirações dos colegas de escola (como acontece com todas as crianças e adolescentes ricos e de classe média), opta por uma ideia alternativa: passar as férias da família em Cuba, para ensinar aos filhos como se vive em um país totalmente diferente.
Superado o desconcerto e decepção inicial, especialmente do filho maior, a família embarca entusiasmada para a aventura de passar três semanas na ilha, no dia de Natal de 2008, uma semana antes da comemoração do cinqüentenário da Revolução. Assim, Tristán, Paula, Bautista, Felipe e Pedro substituíram, como programa de férias, a Donald, Mickey, Pluto e toda a parafernália consumista pela convivência com famílias e crianças cubanas no cotidiano da subsistência, das aulas e das brincadeiras.
Quem teve a oportunidade de viver dias em Cuba sabe das penúrias das pessoas diante das carências e dificuldades de acesso aos bens básicos, da humilhação perante o contraste econômico evidente nas áreas de hotéis e serviços para o turismo, da liberdade resignada pela imposição da causa revolucionária, do deterioro das edificações, da sensação de voltar atrás no tempo por varias décadas. Sabe, também, da dignidade e auto-estima de um povo que ousou questionar e se rebelar contra o autoritarismo e arrogância do gigante vizinho, da tenacidade e coragem para enfrentar o embargo comercial desproporcionado e agressivo às questões mais elementares de convivência humana, da qualidade da saúde e educação gratuitas, da sensação de segurança nas ruas (hoje perdida nas cidades brasileiras), dos benefícios trazidos pela revolução em relação à ditadura de Batista (segundo relatos das pessoas mais velhas), da eliminação da pobreza extrema e do analfabetismo, do espírito solidário que permite sobrelevar as dificuldades.
O filme apresenta as experiências da família com os habitantes da ilha, nas cidades de La Habana e Santiago, assim como a convivência com o veterano revolucionário Miguel Ginarte, com Aleida Guevara (filha do Che) e o momento culminante: a participação no ato de comemoração dos 50 anos da revolução, presidido por Raul Castro, com direito a troféu: uma fotografia em que Tristán Noblia aparece atrás das autoridades, a poucos metros de Castro, publicada na capa do diário Granma no dia seguinte, dois de janeiro de 2009.
Em épocas de alienação cultural dominante e globalizada, como a que estamos vivendo, a proposta de atitudes alternativas, como a do filme e experiência de Noblia, oferece a oportunidade de promover a reflexão crítica acerca da realidade dos valores humanos e sociais, explorados pelo consumismo desenfreado e tensionados entre a retórica socialista e o colonialismo cultural. Como o autor manifesta, o filme não pretende dar respostas, e sim formular perguntas. E as perguntas são muitas no contexto da realidade brasileira. Dentre outras, que consciência de cidadania terá uma criança que nasce e cresce em condomínio fechado, alheia à realidade da sociedade e da cidade? Que princípios de civilidade e de urbanidade podem prosperar se a solidariedade é substituída pelo egoísmo e a individualidade? Qual será o destino das sociedades dos países emergentes se os filhos das classes dirigentes conhecem Disneyworld antes que os centros das próprias cidades? Se os empresários subtraem os lucros locais e os investem ou gastam nos países desenvolvidos? Se as classes privilegiadas vivem refugiadas em edifícios defensivos, consumem trancadas em shoppings e utilizam a cidade como local de passagem de carro entre um ponto e outro? Se a desigualdade, discriminação e exclusão perpetuam a insegurança, a violência e a condição de subdesenvolvimento? Se o capitalismo de consumo promove as maiores afrontas aos direitos humanos?
O final do filme é paradigmático: Bautista, o filho maior, apresenta, mediante projeção de imagens, a experiência em Cuba a seus colegas de curso. In english, of course!... Manifestação da cultura de uma sociedade que não consegue se livrar dos laços históricos de dependência? Ou realidade de um tempo globalizado, em que a integração da humanidade permitirá superar desigualdades e injustiças? Situações ideológicas aparentemente superadas parecem empenhadas em subsistir nos comportamentos e consciências das sociedades emergentes, perpetuando dilemas que dificultam a procura pela vocação genuína de liberdade e desenvolvimento. Desafios de um tempo em que a utopia da justiça social e da solidariedade parece adormecida, porém com sinais mínimos de confiança em um mundo que podemos imaginar melhor.
sobre o autor
Roberto Ghione, arquiteto, formado pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Pós-graduado em Preservação do Patrimônio, Crítica Arquitetônica e Planejamento Urbano pela Universidad Católica de Córdoba. Titular do escritório Vera Pires Roberto Ghione Arquitetos Associados, Recife PE.