O termo urbanismo passa hoje por um dilema conceitual. Quando se pensa em urbanizar uma área, no mínimo se propõe a melhoria das condições de infra-estrutura do local, bem como dos seus usuários. No Brasil, infelizmente o urbanismo vem se restringindo às atuações das municipalidades em intervenções simplórias na criação de pracinhas, pavimentação de ruas ou na infra-estrutura para loteamentos, sendo que muitos são clandestinos e motivados pelas invasões. Intervenções paliativas que na maioria dos casos em nada acrescentam para a cidade e a solução de seus problemas urbanos. Dar infra-estrutura a cidade é função básica de qualquer intervenção urbana e urbanizar pressupõe dar qualidade de vida à população, com um ambiente que atenda suas necessidades, que seja agradável e atraente para o seu convívio.
Mas há o outro lado da urbanização que trabalha em silêncio e não é notícia nos meios de comunicação: o lado da exclusão, de quando as intervenções se transformam em instrumentos de “renovação” social, expulsando antigos moradores ou usuários que não se enquadram nas novas exigências urbanas que se impõem no local. Expulsões planejadas ou não, este é um fato esquecido em muitas propostas bem intencionadas que não analisam as possíveis conseqüências de suas intervenções.
Recentemente, dois casos nos chamaram a atenção para este fato. Em um programa de debates da televisão paga, discutiu-se a situação atual de um importante bairro da cidade de Nova Iorque (isto antes dos atentados de 11 de setembro), o Soho, região de grande ebulição cultural americana. Em processo de degradação urbana até metade do século XX, começa a ser – até por um processo natural – tomado por artistas e intelectuais que transformaram a área em um dos mais profícuos centros culturais dos Estados Unidos através de galerias, ateliês, bibliotecas, lojas, bares, restaurantes, exposições, gente famosa, etc. Poucos foram os antigos moradores que resistiram à invasão cultural que modificou esta área. Por uma ironia do destino, esses mesmos artistas sofrem agora a pressão da especulação imobiliária que redescobriu a região como um grande investimento comercial voltado para o setor empresarial e de negócios.
Em terras capixabas, guardadas as devidas proporções, a Prefeitura Municipal de Vitória intenciona privatizar a área da Curva da Jurema, transformando seus quiosques em um centro gastronômico internacional (com comidas típicas da Itália, França, Alemanha, etc, etc.) servido de um grande estacionamento pago. Esta é uma área praiana que na década de oitenta tinha como único atrativo – além de sua praia de águas calmas – estar entre os bairros de classe média alta da Ilha do Boi e Ilha do Frade. Após ter sido urbanizada na década seguinte, surge como uma outra opção de praia na cidade de Vitória, equipada com quiosques, banheiros, coqueiros, areia e mar. Com o passar do tempo, torna-se um point de uma população de classe média baixa elegendo-o como o local de seu divertimento no final de semana. Cerveja, churrasco, pagode, samba e gente animada se misturam à areia em contraste com os bairros nobres à sua volta. Para uma população com poucas opções de lazer urbano, que se presta a deslocar-se em ônibus cheios no calor de verão capixaba para passar o dia na praia, a cidade de Vitória começa a ficar cada vez menos ao seu favor. Invariavelmente, o centro gastronômico proposto irá expulsar estes usuários para qualquer lugar, a não ser que possam trocar o peixe frito com farofa por um prato de scargot, acompanhado de um vinho de boa safra.
Já há alguns anos, estamos presenciando na cidade de Vitória a privatização de seus espaços públicos. O VITAL (o carnaval fora de hora de Vitória) que exclui os “sem abadás”; a areia da Praia de Camburi que é alugada para particulares montarem suas tendas para os festejos da passagem de ano; o CentroShopping que ocupará o espaço aéreo da Av. Beira-Mar no centro da cidade e agora, a intenção de se criar este centro gastronômico são exemplos de como o urbano pode ser usado em jogos de interesse adversos à maioria da população.
Assistimos passivos a este outro lado do urbanismo que nos assombra pela sua velocidade de ação e de mudanças e os interesses que o movem. Então cabe a nós, Arquitetos Urbanistas, o papel de críticos principalmente pelo nosso envolvimento direto com esta disciplina “Urbanismo” e a cidade que ela constrói.
sobre o autor
Fabiano Dias é arquiteto-urbanista.