Há algum tempo, o editor de www.vitruvius.com.br, o arquiteto Abílio Guerra, havia me pedido para escrever um texto sobre a experiência de ter vivido na Casa do Brasil, projeto do arquiteto brasileiro Lúcio Costa, desenvolvido por Le Coubusier, na Citè Universitaire, em Paris, França.
Minhas memórias eram muito emotivas para fazê-lo. Mas com o passar do tempo resolvi escrever este artigo contando, do ponto de vista do aprendizado da Arquitetura, como foi minha experiência profissional na Europa, especialmente na França, e não apenas sobre a Casa do Brasil, o que seria descontextualizado e completamente frívolo.
Entrei na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo em 1985. Formei-me em 1990. Saí sem saber ao certo o que era Arquitetura, peregrinei o tempo todo em todos os departamentos (tecnologia, projeto e história) à procura da resposta. Tive dois professores em particular que me deram algumas pistas de onde encontrar a resposta: Abraão Sanovics e Joaquim Guedes. A pista era o projeto.
O que havia de encantador em seus discursos era a universalidade da Arquitetura. Eles me falavam, os dois, da arquiteta italiana Lina Bo Bardi e do arquiteto finlandês Alvar Aalto, de como eles pensavam seus projetos, pois eu não conseguia projetar edifícios a partir da estrutura, geralmente de concreto armado, e da forma, uma sorte de inspiração, e então achava que deveria desistir de Arquitetura.
A leitura da cidade como expressão se deu no entanto no departamento de paisagismo, com todos os professores, a quem não citarei pois a lista é grande, e corro o risco de cometer injustiças, mas vou apenas me referir ao método desenvolvido pela equipe daquele departamento na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Esse método me deu subsídios de compreensão de questões de implantação e urbanismo, pois o aprendizado estava diretamente ligado ao projeto, através de diversas disciplinas optativas.
Tive um forte componente emotivo, no caso, anterior à Faculdade, que foi meu pai, um imigrante italiano, vindo da Roma pós-guerra, que se encantava com este Novo Mundo cheio de possibilidades e construções, com a noção empírica, porém clara, da cidade maravilhosa de onde vinha. Não se cansava de me levar a visitar o centro da cidade de São Paulo e mostrar o prédio do Martinelli, o viaduto do Chá, o atual Banespa na praça do Patriarca, o Banespa da São João, as vistas a partir da fazenda do Morumbi, as praças e parques da cidade, o Estádio do Morumbi, a inauguração das estações de metrô da linha norte-sul, na época, os arranha-céus da avenida Paulista, os caminhos por onde ia o crescimento da cidade, e contar como era a São Paulo de quando chegou por aqui, na década de 50.
Em 1994, depois de trabalhar com Paisagismo nos escritório da arquiteta paisagista Sumie Miyajima e do arquiteto paisagista Benedito Abbud, resolvi deixar tudo e procurar trabalho na Europa. Fui diretamente para Roma, traduzi meu currículo para o italiano, e diariamente, metodicamente, partia a procura de trabalho. Apenas isso me interessava, não queria estudar nada, queria trabalhar.
Depois de seis meses de busca, quase já sem nenhuma esperança (os arquitetos italianos me receberam muito bem mas todos falavam de uma crise por que passava a Itália, Berlusconi, candidato da direita conservadora, havia ganho as eleições em Abril, cheguei em Maio), o escritório do arquiteto italiano Massimiliano Fuksas me chamava para trabalhar, isso era outubro de 1994. Era um trabalho de 01 mês, uma "charrette" para o Centro Comercial de Salzburg, na Áustria.
A equipe era composta por arquitetos italianos, alemães, holandeses, japoneses, sul-americanos, uma torre de babel. Como eu poderia me comunicar? Falava um italiano doméstico e um inglês sem nenhuma prática. Entendi então que a linguagem arquitetônica é universal. Acabamos a "charrette" e o arq. Fuksas me pôs em outro projeto e depois outro... Fiquei três anos no escritório, mas resolvi voltar para o Brasil em meados de 1997.
Os projetos que eram desenvolvidos em seu escritório eram projetos vindos, na época, de concursos internacionais ganhos na Europa, e depois desenvolvidos e construídos. Portanto, as discussões partiam desde os conceitos, implantação, teorias, até mais tarde, de detalhes, obra, cores, materiais, escalas, dimensões, cliente, soluções técnicas e custos....
Hoje o arquiteto Massimiliano Fuksas tem em seu currículo a curadoria da Bienal de Veneza, Mais Ética Menos Estética, e participará da próxima Bienal em Veneza, Next, ao lado de Renzo Piano, Isozaki e Hadid. Uma personalidade. Naquele tempo para mim era o arquiteto, dono de um ateliê de arquitetura, onde se trabalhava muito e exaustivamente
Ao final do primeiro ano, cerca de 09 meses depois, fui transferida de Roma para Paris e lá morei na Casa do Brasil, de Lúcio Costa, situada na Citè Universitaire.
Tinha a possibilidade de ver as teorias, erradas ou não, implantadas. As teorias do escritório onde trabalhava e diversas outras teorias. Toda a "era Mitterrant" estava construída e fazia parte do dia a dia do cidadão, convivendo com o Sena lendário e centenário, com ruínas romanas, com o plano de Hausmann.... O colégio técnico Massimiliant Perret (projeto de Fuksas), estava interferindo em muito na paisagem da suburbana Alfortville.
E depois voltava para casa, a Casa do Brasil. A experiência do edifício isolado não tem sentido se não for entendido no contexto. Não falarei da história do projeto, do projeto em si, isso pode ser visto nas coletâneas da obra de Lúcio Costa. Falarei do que foi ter minha casa a Casa do Brasil. A Citè Universitaire possui apenas alojamento para estudantes, de todos os países do mundo, Espanha, Suíça, Turquia, etc. Cada país possui sua Casa, há uma biblioteca central, um restaurante central, muito jardim e lazer ao ar livre, constituindo-se num pequeno conjunto, fechado por grades de ferro. A Casa do Brasil foi projetada por Lúcio Costa, a da Suíça, por Le Corbusier. Era aí que eu morava.
A possibilidade de ter trabalhado neste escritório e de ter morado neste edifício, nesta cidade, me trouxe em mente as experiências e questões que citei no começo do texto: os ensinamentos da faculdade, a questão da leitura urbana vinda do departamento de paisagismo e as questões do edifício e do desenho vindas de Sanovics e Guedes. O rompimento das fronteiras se deu antes, muito antes. Deu-se nesses ensinamentos e não ao fato de ter cruzado o Oceano. O aprendizado do espaço arquitetônico e urbano rompeu as fronteiras do lugar e ao mesmo tempo deu subsídios para entendê-lo. O dia a dia no trabalho se completava com as experiências urbanas de viver na Citè Universitaire, localizada na banlieue parisiense, exatamente na Avenue Periferiche, via expressa que circunda todo o centro da cidade.
A RER, linha de metrô, liga o centro de Paris à periferia (tida como toda a extensão localizada depois da Av. Periferiche) nos diversos sentidos, e possui uma estação ao lado da Citè Universitaire. Isso me fazia estar distante do centro 15 minutos. Ligava o edifício singular de Lúcio Costa a fascinante Paris contemporânea. A experiência da Arquitetura não pode ser pontual nem fechada. Ela é por si globalizada e universal. As soluções é que podem apresentar diferenças locais mas o método, a abordagem, as premissas, essas são universais. A Arquitetura tem essa fabulosa particularidade de tratar do Homem 100% do tempo, do habitat do homem, e as necessidades humanas são universais.
Lúcio Costa, usando de seu ofício, soube bem fazer isso na Casa do Brasil: uma habitação para uma coletividade estudantil, setorizada nos espaços diversos de dormir, conviver, estudar, estudar música, estudar artes, cozinhar, lavar, ler e fazer festas! Infelizmente na época muito mal cuidada, o concreto aparente em precária conservação, uma certa negligência do governo brasileiro, que é quem mantinha o edifício.
O edifício tinha 04 andares, se bem me lembro, de habitações. A lâmina se compunha, então, de habitações de um lado, e de serviços, circulação vertical e salas especiais, do outro, a partir do 1o andar. As habitações voltadas para a Av. Periferique, e os serviços para os jardins da Citè Universitaire.
No térreo havia o saguão de entrada, com um pé-direito baixo, com o piso em ardósia preta em pequeno declive para dentro, que levava a um espaço de estar, envidraçado, virado para os jardins da Citè Universitaire. Lá fazíamos nossas festas. Havia uma sala de TV, a biblioteca, a cozinha para o salão.
As habitações eram moduladas e podiam ser conjugadas em duas para abrigar família de estudantes (mulher, marido e filhos). Deveriam ter por volta de 18m2. Eram 10 módulos por andar e em cada andar havia dois blocos de serviços, com uma pequena cozinha coletiva, com pequenas câmeras frigoríficas individuais, um fogão elétrico e um forninho elétrico, banheiro feminino e masculino, elevador e escada, um de cada lado da lâmina. Os corredores eram bem largos (belos pontos de encontro, quando chegávamos ou saíamos, nos encontrávamos na cozinha coletiva, o convívio era muito próximo), as entradas dos apartamentos, com as portas coloridas de preto, azul, amarelo, vermelho e verde, eram recuadas e a lâmina apresentava uma leve curvatura que impedia a visão do fundo do corredor. No meu andar, na extremidade junto ao meu apartamento, havia uma sala de piano. Os apartamentos possuíam uma ducha, com uma porta em alumínio curvado, e um lavabo. O mobiliário fazia as vezes de divisória entre o espaço de toillete e o espaço de dormir e estudar. Os quartos estavam dispostos lado a lado, voltados para a Periferique, um pouco barulhenta, vários colegas reclamavam do barulho. Todos os quartos tinham um balcão voltado para a rua, com o peitoril em elementos vazados de concreto. Recebíamos inúmeras visitas de pombos. Os caixilhos eram feitos de madeira pintada, com a porta em madeira maciça também pintada, o meu era amarelo! O aquecimento se fazia pelo piso.
Entre os dois módulos de serviços havia as salas de estudo, informática, atelier, lavanderia coletiva, distribuídos nos diversos andares. Os caixilhos desta fachada eram de ferro e vidro. A cobertura era um teto jardim, que me parece, apresentava problemas de infiltração.
Difícil falar de um único edifício em meio a todas essas diversas experiências. Foi importante, mas a Casa do Brasil era o lugar onde eu morava, minha casa, e portanto sem possibilidades de críticas de qualquer natureza que sejam.
Falar da Casa do Brasil é falar da experiência de meu aprendizado arquitetônico, desde o início, pois é difícil de esquecer, em qualquer discussão que se tenha sobre Arquitetura, do objeto último de nosso fazer: o projeto.
sobre o autor
Assunta Viola é arquiteta, São Paulo SP.