Fuscas
Andar a pé, caminhar, andarilhar, prestar atenção no universo ao nosso redor permite a gente descobrir muitas coisas que, via de regra, nos passam despercebidas...
Daí que os fusquinhas fazem parte de nossas histórias... Meu irmão Tito teve um 62, 1200cc, azul calcinha, e minha mãe teve um 66, já 1300cc, marrom, mas ainda de 6 volts... Cada vez que ela ligava o rádio à noite o farol praticamente sumia... O apelido dele era “Risadinha" graças ao adesivo de uma oficina de funilaria cujo dono era o Risadinha...
Por conta disso – e acho que hoje ele está voltando à moda –, peguei esse hábito de farejar ao longe um exemplar do velho projeto da VW alemã... Estão sempre parados, mas sempre sinalizando uma direção... É só dar a partida e uns irão e outros virão...
Fusca é legal mesmo!
imagens de Ribeirão, Sampa, Sanzé, Ouro Preto, Farroupilha e Casa Branca entre 2016 e a semana passada...
[Fernando Mascaro]
Gordinis
As fotos dos fuscas tiradas ao longo dos anos e a história contada por Fernando Mascaro em postagem no Facebook me fizeram recordar um causo da minha adolescência. Não morava mais em Araraquara, mas nas férias encontrei lá um primo paulistano muito metido, que lembrava o tempo todo as caipirices de cada ato, fala e pensamento de nós interioranos, comentários que me soavam sempre como ofensivos. Foi anteontem, mas parece hoje.
Meu primo – que fica aqui no ostracismo pois brilhou além do que precisava, ou do que eu suportava – vem com mais uma e me diz que todos os gordinis do mundo se mudaram para minha terrinha, o que eu contesto de pronto. Mas, por honestidade intelectual – ou para ter elemento factual para esfregar na cara do petulante – resolvo contar nas ruas, avenidas e alamedas da cidade o carrinho popular de origem francesa, licenciado e fabricado no Brasil pela Willys.
Com quatro portas, pequenino ao ponto de parecer magia a presença de quatro pessoas no seu interior, quadradinho, mas com todas as arestas arredondadas como pede a estética aerodinâmica da época, imitou e tentou concorrer com o fusca de origem alemã. Já fora de linha, resta o estigma de ser chamado de “leite Ninho”, que “derrete sem bater”, alcunha e slogan que lhe foram decalcados pelos adeptos do resistente carro alemão.
Pego o trólebus – a cidade se orgulha de ter cem por cento de seu transporte público feito por ônibus elétrico – e vou da Vila Xavier, onde moram meus pais, para Santa Angelina, bairro distante onde se localiza o Clube 22 de Agosto, frequentado pela classe média baixa, que não tem grana e status para ser sócia dos clubes Araraquarense e Náutico.
Começam a aparecer os gordinis, um ou dois por quadra, sempre estacionados, sem exceção. O número logo ultrapassa a dezena e quase chega à centena. À noite, no jantar, reencontro meu primo, com o sorriso de superioridade escancarado na cara de janota – e esqueci de mencionar que era mais velho do que eu, se achava inteligente, bonito e irresistível naquela terra de botocudos, o que era confirmado o tempo todo pelo assédio nada constrangido das colegiais do bairro.
Sentamos à mesa para o jantar e ele logo cutuca a ferida e me pergunta se eu reparara nos gordinis. Com toda a altivez e desdém que sou capaz de emprestar, respondo que não tinha visto nenhum durante o dia inteiro.
Araraquara já não tem trólebus, eu já não tenho pais, mas os fuscas de Fernando Mascaro reviraram minha memória e esse dia ressurgiu como se fosse hoje.
[Abilio Guerra]
sobre os autores
Fernando Mascaro é arquiteto e observador desespecializado.
Abilio Guerra é arquiteto, professor e editor de arquitetura.