A lição de piano começava às duas da tarde, a hora mais dura do dia, quando o calor abrasador e a digestão ainda em curso produziam na mente e no corpo um efeito anestésico. Lutava contra o sopor e cancelava a sesta de quinze minutos na rede sombreada por um jambeiro, só para assistir às lições de piano.
A pontualidade da professora Jerusa Mustafa era britânica. Mas ela nada tinha, nada tem de britânica. Filha de um imigrante sírio e de uma judia de origem francesa, a pianista era uma das virtuoses da minha então pequena cidade.
Quem viveu na província deve ter admirado um(a) professor(a) ou artista, uma dessas figuras que podem mudar nossa vida, ou dar à vida um encanto e uma emoção de que nem sequer suspeitávamos. Hoje, aos noventa e quatro anos, não sei se a pianista ainda exerce sua arte. No entanto, ao completar oitenta, deu um concerto em Manaus. Infelizmente, eu não estava lá. Mas na minha infância e nos três primeiros anos da década de 1960, assisti a inúmeras de suas aulas de piano na minha casa.
No início, não sabia o que ouvia, apenas me deixava levar pelos acordes da pianista, sem nada conhecer da vida e da obra dos compositores europeus e brasileiros. Com o tempo, soube que ela interpretava Noturnos de Chopin, Serenatas de Schubert, chorinhos de Nazareth e o Choro n. 5 (Alma brasileira) de Villa-Lobos. Os sons me tiravam da modorra mental, me desintoxicavam do barulho da maioria das músicas tocadas nas rádios, um barulho que só cresceu nas últimas décadas.
Era como se a vida, naquelas tardes de calor úmido, adquirisse um sentido mais pleno. Eu queria entender mais sobre harmonia, escutava a professora falar sobre legato, staccato, acordes com tríades, dominantes e subdominantes, sem entender essas palavras, estranhas para um curumim. Em surdina, me aproximava do piano e via os dedos da professora bailar no teclado como aranhas mágicas guiadas por fios invisíveis. O movimento cadenciado dos dedos me fascinava, e, de volta ao assoalho da sala, me perdia de novo na emoção, sem procurar entender a dança mágica de dedos e teclas.
Certa vez o poeta amazonense Luiz Bacellar (1928-2012) contou que, no final dos anos 1950, gostava de fazer passeios vespertinos pelas ruas do centro de Manaus, só para ouvir lições de piano; ele ficava à sombra de uma mangueira ou de um oitizeiro e, enlevado pela melodia de uma sonata, esboçava num lampejo um de seus belos haicais ou sonetos.
“Ouvia Mozart e Bach a torto e a direito”, dizia o poeta, alisando o castão prateado de sua bengala. “Quase todos os sobrados antigos de Manaus tinham um bom piano”. Ele me olhava por cima das lentes em meia-lua e, com um sorriso irônico, acrescentava:
“Tu sabes que as interpretações de Mozart, o grande compositor austríaco, são vícios benignos em Belém e Manaus. Só perdemos para Viena e Salzburgo. E nossas duas pianistas virtuoses só perdem para Glenn Gould”.
O autor de “Sol de feira” referia-se a Jerusa Mustafa e a Ivete Ibiapina, outra grande professora, ainda viva na memória de Manaus, onde a belíssima casa em que viveu e lecionou piano tornou-se uma Casa da Música com o nome dela.
Às vezes, durante uma aula, alguns loucos da cidade passavam pela avenida Joaquim Nabuco e soltavam berros e gargalhadas cheios de frescor e liberdade, pois eles tinham fugido do hospício da Estrada de Flores. A pianista não interrompia a lição, e os gritos e as risadas se misturavam aos acordes de um chorinho ou de uma Bachiana Brasileira. Quando a aula terminava e ela ia embora, tudo silenciava, a tarde e o deleite morriam bruscamente, e a noite era promessa de um sonho com a pianista.
Depois veio uma grande explosão: um verde sombrio manchou o país, um parente foi preso, a modorra das tardes quentes foi interrompida por outros sons, outras vozes. Uma noite longa, aflita e bruta nos esperava, e muita coisa chegaria a seu fim: a cidade em harmonia com a natureza, os igarapés de água limpa, as ruas arborizadas, a floresta ao redor da cidade, as estórias narradas por um velho imigrante, a liberdade…
No Amazonas, duas décadas depois do verde obscuro e destruidor, chegaram os homens à paisana, inchados de demagogia, do mais vil populismo e, por que não dizer, homens inflados até o grotesco, de tanto engolir o vil metal. Esses impostores têm necessidade de mentir: a mentira é uma arma poderosa do triunfo deles.
Há uns sete anos, soube que a professora Jerusa Mustafa pediu ajuda para consertar seu piano desafinado, com teclas soltas e pedal quebrado. Mesmo com a saúde já um pouco fragilizada, a pianista desejava tocar, um verbo que lhe dava sentido à vida. Não sei se algum filantropo pagou o conserto do piano, ou comprou um novo para ela. A filantropia e o mecenato são gestos raros no Amazonas.
Como a memória é estranha! E os sonhos, além de estranhos, enigmáticos. Agora, quando as festas natalinas se aproximam, acordo com acordes de piano, que parecem vir de muito longe, no tempo e no espaço. Nesses sonhos aparecem as duas pianistas e sua aluna, que estudou doze anos com ambas. Não sei quem tocava, e os acordes da música eram misteriosos. Seria uma sonata, um chorinho? Ou apenas um surto de nostalgia da infância, esse paraíso perdido para sempre?
nota
NE - Publicação original no jornal O Estado de S. Paulo, 11 dez. 2020.
sobre o autor
Milton Hatoum, arquiteto formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, é escritor, autor de um Relato de um certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado e diversos outros livros, ganhadores do Jabuti e outros prêmios importantes.