Que prazer poder voltar a ver exposições!
Recentemente, vi duas delas: no MAM, Moderno onde? Moderno quando? A Semana de 22 como motivação (1) e, na Chácara Lane, Artacho Jurado, Arquiteto? (2).
Percebo que tenho hábito de correlacionar eventos. Mais uma vez, vou fazê-lo.
Duas exposições de tamanho restrito, mas de grande alcance e de abrangência de conteúdo. Resultado de excepcionais curadorias. E gratuitas!
No MAM, estava ansiosa por conhecer o painel de Cícero Dias, Eu vi o mundo e ele começava no Recife. Uma oportunidade única para conhecer essa obra incrível, cuja história fascinante envolve momento significativo da vida cultural brasileira.
Claro que a exposição como um todo vale a pena, mas... eu vi o painel e começo por ele.
Difícil não reconhecer Chagall em Cícero e Cícero em Chagall. Acho que o campo das ideias não respeita tempo nem espaço. Elas, as ideias, simplesmente vagueiam à espera da captura por mentes geniais.
O painel exposto no MAM tem 12 metros de largura por dois de altura. Originalmente, era maior! Vândalos, coisas da vida!
A obra de Cícero começou a ser realizada no final da década de 1920, e foi exposta no Salão de 1931, o Salão Revolucionário de Lucio Costa.
Sua grandeza foi proporcional ao escândalo que causou, como já aventava Mário de Andrade em correspondência à Tarsila, que nessa época se encontrava no exterior, em Paris ou a caminho da URSS:
"Aqui, ou por outra, aqui perto, no Rio, grande bulha por causa do Salão em que Lucio Costa permitiu entrada de todos os modernos, e o Cícero Dias apresenta um painel de quarenta e quatro metros de comprido com uma porção de imoralidades dentro" (3).
Os 44 metros de “afronta” eram na realidade 15 metros de libertário deleite. A obra foi realizada em papel kraft e guache, depois afixada em tela com cola de peixe, assim relatou Cícero.
Antes do início do Salão de 1931, inaugurado em 1º de setembro, o painel de Cícero já causava burburinho. Manuel Bandeira, em 29 de julho, escreveu para Mário de Andrade o seguinte:
"O nosso Cícero, que andou fazendo negaças para expor o Enterro, acabou pintando uma trabuzana ainda maior, 15 metros de comprido (pede toda uma parede dos salões maiores) e que saiu fantástico, do melhor Cícero, com vacas de perna para o ar e gente nas atitudes mais impossíveis tirando leite que espirra com um lirismo maior do que o da Via-Láctea" (4).
Em resposta a Bandeira, Mário fez os seguintes comentários sobre a participação de Cícero no Salão:
"O caso do Cícero, do Lucio Costa, da pintura. O Cícero mandou me perguntar o que achava, se ele devia expor ou não. Minha impressão é que não deve expor no Salão. Não há dúvida que dos brasileiros que se servem da pintura para se expressar ele é para mim o mais interessante do momento, mas... é muito complicado explicar em carta o que sinto sobre ele. O certo é que ele não é pintor, não faz quadros, muito embora haja nos trabalhos dele pedaços de pintura, pedaços de quadros positivamente admiráveis. Isso falando a respeito dele pessoalmente. Quanto ao fenômeno social dele expor no salão, acho prejudicial pra ele, pro salão, pro público e pro Lúcio Costa que só por causa disso é capaz de espirrar do posto, o que enormemente prejudicará a ação utilíssima que ele está fazendo" (5).
Enfim, o painel foi exposto, ainda bem! Lucidez e coragem do Lucio na realização do salão. Como sabemos, foi destituído do cargo de diretor da ENBA antes do próprio término do salão (6). Sua demissão foi assinada em 18 de setembro, mas não exclusivamente por conta das repercussões do salão propriamente dito. Mas, esse é outro causo.
De volta ao painel, Cícero contou em sua biografia:
"Nessa época (final dos anos 1920) já estava às voltas com o meu painel. Eu vi o mundo ... ele começava no Recife. Toda hora andava pra baixo e pra cima, de Santa Teresa para o bar Nacional. Tudo se mexia na cabeça, histórias do começo da minha vida. Tantas coisas: mulheres, histórias fantásticas, escada de Jacó, as onze mil virgens. Levaria todas essas imagens para dentro de um grande afresco? Executar em afresco era uma realização material impossível. Impraticável. Pensei então em executar uma grade tela. Decidi colocar tudo num painel, onde o imaginário se espalhasse para todos os lados. O mais representativo seria a realidade onírica. Eu pintaria a própria vida numa superfície de mais de cinquenta metros" (7).
É isso mesmo que podemos ver no MAM, todas as histórias e vivências do pintor no seu Recife. Coisa de impressionar, pela alegria das cores, pelas dimensões das formas, pelos personagens, pelos objetos inusitados agrupados em composições únicas, soltos, voando pelo mundo e, por tudo isso, tem que ser visto. Descrições não interessam. É preciso vê-lo. Não entendo de arte, só gosto de ser tocada pelas obras.
Eu vi o mundo é uma bela lição de liberdade.
Já vista a exposição do moderno no MAM, rumei na direção da Chácara Lane. Lá, fui encontrar Artacho Jurado e suas obras pós-modernas precoces, se é que posso dizer isso. Mas parecem ser, de fato. Artacho, sem se preocupar com os dogmas defendidos como profissão de fé pelos arquitetos modernos de então, fez como Cícero, coloriu tudo que quis e com profusão de materiais encheu de alegria uma sisuda capital industrial. Kitsch?
Também. Livre de amarras conceituais? Com certeza. Seguido pelo instinto dos desejos do mercado? Talvez.
O efeito de uma curadoria sagaz deixa questões no ar. De fato, a apresentação de Abílio ficou na minha cabeça: “a academia foi a última a reconhecer a obra de Artacho”.
Já vi esse filme. Tinha acabado de relembrar todo o imbróglio que envolveu o painel de Cícero, inclusive o ato de vandalismo que destruiu uns bons dois metros da obra, ato grotesco que nos privou das “indecências”... (8).
Recentemente, também abordei um pouco esse tema – a receptividade da academia - ao relacionar o próprio Salão de 31 a uma exposição de 1923, ocorrida em Paris, na Escola Especial de Arquitetura, então organizada pelo arquiteto Robert Mallet-Stevens. Nessas duas exposições, os organizadores, Costa e Mallet-Stevens, foram demitidos de seus cargos. Simplesmente “ousaram”. Convido à leitura (9).
De volta ao Museu da Cidade de São Paulo, Chácara Lane, vendo os projetos e perspectivas dos edifícios de Artacho, fui remetida a minha infância. Divertidas lembranças. Férias na praia de Santos, nossa! Há quanto tempo! Sorvete, muito sorvete. Pistache: que delícia! Pegar a balsa, vento gostoso, cheiro de mar. Rumo Pitangueiras, orgia vespertina de sorvetes.
Artacho combina com o colorido das férias, com os sabores dos sorvetes – morango, pistache, chocolate, humm...
Volto ao presente. Os multicoloridos edifícios de Artacho são adoravelmente habitáveis, relatam moradores em diversas entrevistas. Arquitetura é para isto: ser vivenciada.
Próxima sala: Grandes feiras que Artacho organizou – em Santos e em Campinas. Conheço o tema.
Confesso, já tinha estudado Artacho. Ele não é um desconhecido para mim. Foi ele o responsável pela exposição do Bicentenário de Campinas, em 1939. Um embuste histórico incrível. Como a história pode ser manipulável!
Já escrevi sobre ela, a Feira do Bicentenário (10). A administração municipal da época aproveitou-se de uma “dúvida” sobre a real data de fundação da cidade para criar o evento. Evento que era a própria refundação simbólica da cidade, agora em 1939, moderna e industrial. A mega exposição, aos moldes das feiras internacionais, serviu de estande de venda ao projeto de implementação do Plano de Melhoramentos Urbanos de Campinas, realizado por Prestes Maia. Se quiser saber mais segue aqui o link do artigo (11).
A Feira do Bicentenário foi um arraso, muito art déco, muito neón. Anos 1930 na veia! Artacho fez um trabalho e tanto. Profissional competente. Deu tudo certo pra Campinas dos anos 1930.
Final de tarde, final de domingo, fim das exposições.
Eu vi o mundo é liberdade!
E, você, Artacho, também ousou, empreendeu com liberdade. Ambos os casos tratam de formas diferentes de escolhas, mas que incomodaram seus coetâneos, os críticos da época, os acadêmicos, o público e quantos outros. Cada qual teve seu tempo de aceitação e valorização.
Liberdade é escolha.
Saí do casulo pandêmico. Fui borboletear com asas de Cícero e com o atrevimento de Artacho, que sussurrava: Não tô nem aí.
Por favor, uma casquinha dupla: chocolate e pistache.
Obrigada
notas
1
Exposição Moderno onde? Moderno quando? A Semana de 22 como motivação, curadoria de Aracy A. Amaral e Regina Teixeira de Barros. Museu de Arte Moderna – MAM, São Paulo, de 04 de setembro a 12 de dezembro de 2021 <https://bit.ly/3sNNBEr>.
2
Exposição Artacho Jurado, arquiteto?, curadoria de Abilio Guerra. Chácara Lane | Museu da Cidade de São Paulo, de 02 de outubro de 2021 a 24 de abril de 2022 <https://bit.ly/3Jvb5UO>.
3
Carta de Mário de Andrade enviada à Tarsila do Amaral, datada de 28 de agosto de 1931. AMARAL, Aracy (Org). Correspondência Mário de Andrade & Tarsila do Amaral. São Paulo, Edusp/IEB USP, 2001, p.116.
4
Carta de Manuel Bandeira enviada a Mário de Andrade. In: MORAES, Marcos Antonio de (Org). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo, Edusp/IEB USP, 2001, p. 513.
5
Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, em 03 de agosto de 1931. MORAES, Marcos Antonio de (Org). Op. cit., p. 514.
6
O salão aconteceu entre os dias 1º e 29 de setembro de 1931.
7
DIAS, Cícero. Eu vi o mundo: Cícero Dias. Nós vimos o mundo: Raymonde Dias. São Paulo, Cosac Naify, 2011, p. 57.
8
“Eu expus um quadro enorme, esse meu quadro hoje tem 15m por 2m e pouco. Mas ele era maior, ele devia ter mais ou menos vinte e tantos metros, e toda parte do quadro que tinha cenas eróticas despareceu. Rasgaram o quadro, tiraram tudo isso, desapareceu... Foi na época do Salão; como tudo onde há erotismo, há sempre essa preferência, às vezes até demagógica. Então eu fiquei com o quadro todo aos pedaços...” Entrevista de Cícero Dias a Carlos Zílio, 7 nov. 1981. In: VIEIRA, Lucia Gouvêa. Salão de 1931. Rio de Janeiro, Funart/Instituto Nacional de Artes Plásticas, 1984, p. 69.
9
ZAKIA, Silvia Amaral Palazzi. Duas exposições emblemáticas. Anais do VI Enanparq, 2021. Brasília, FAU UnB, 2021, p. 579-598 <https://bit.ly/3Hnko7m>; Revista Thesis, UNB, no prelo.
10
ZAKIA, Silvia Amaral Palazzi. Uma nova paisagem urbana Campinas dos anos 30 e 40. São Paulo, Annablume, 2017, p.134-151.
11
ZAKIA, Silvia Amaral Palazzi. Exposição-feira do bicentenário de fundação de Campinas – 1939: construção histórica e sagração da cidade moderna. Revista Pós, n. 30, São Paulo, 2011, p. 88-100 <https://bit.ly/3sNJzf5>.