Eu vi o mundo, ele começa no Recife, disse Cícero Dias. Nas entrelinhas do popular e do erudito, o local e o global se ligam por pontes imaginativas e imaginárias, numa cidade que renova constantemente suas matrizes culturais.
A viagem realizada em julho de 2022 foi a primeira que fizemos após a reclusão pandêmica, havendo um sentimento de receio, que logo se dissipou. O vento, o barulho das ondas quebrando nas pedras, e o fascínio pelas novas imagens nos reconectaram com a vida, com o desejo de conhecer novos lugares e novas pessoas.
Não foi nossa primeira vez na cidade, já havíamos visitado em excursões de turismo, numa dinâmica de praia e compras, e agora nosso interesse era desvendar pontos inexplorados. Dentre todas as surpresas, de uma cidade galeria em que os edifícios exibem esculturas de artistas locais, por força de uma lei municipal criada nos anos 1980, escolhemos nos alongar sobre o portal que se abriu quando conhecemos a Oficina Brennand.
Optamos por fazer uma visita em sequência da antiga Olaria Brennand, e do Museu Ricardo Brennand. Apesar das previsões de chuva, pudemos contar com um tempo firme para fazer o passeio, iniciado no meio da manhã. O trajeto da Boa Viagem até o sitio foi longo, este situado na Várzea, que nos lembrou o distrito de Icoaraci, em Belém. O acesso se faz por uma estrada de chão batido, ladeada por densa vegetação, uma vez que se trata de zona de preservação ambiental.
Ao chegarmos, havia um grupo escolar sendo guiado pelo espaço, obras nos antigos galpões, e um mundo conectando o natural e o construído.
Uma construção imaginada pelo artista, que criou um mundo paralelo para viver. O recinto sagrado, centralizado por uma construção envolta em água, é cercado por um muro e protegido por uma procissão de esculturas míticas. Totens com cabeças animalizadas e placas cerâmicas com inscrições nos permitem vivenciar o sentido proposto pelo artista. No seu paraíso, Brennand nos guia com o selo: um arco com ponta de flecha.
Os tons em terracota criam uma atmosfera sombria emoldurada pelas nuvens densas de umidade e com a vegetação. E ovos circundam o lago central. Segundo Gilbert Durand, o ovo está ligado ao regresso uterino, à intimidade primordial. O ovo contém o universo e é o microcentro de uma geometria sagrada, ligados aos rituais de renovação nas culturas antigas.
No edifício ao fundo, visitamos a exposição 50 anos da Oficina Brennand. O atelier do artista nasce em 1971, das ruínas da oficina cerâmica de sua família, e adota o símbolo de Ofá de Oxossi, flecha que aponta para a proteção da mata e dos animais. Na exposição vê-se o ovo da serpente, em cerâmica vitrificada — um tema recorrente na obra do artista, que oscila entre a mitologia cristã e grega. A serpente é o triplo símbolo da transformação temporal, da fecundidade e da perenidade ancestral, é ligada aos símbolos lunares, pode ter significado de fluxo e refluxo da vida. Ela é a guardiã da deusa tectônica Cibele.
O percurso se conclui no Templo do Sacrifício. Um edifício sem cobertura, ladeado por guerreiros e figuras animais, tendo centro a cabeça do imperador inca Atahualpa cercada por grades.
Como parte importante da influência positiva da valorização das artes em Pernambuco, o Museu Ricardo Brennand apresenta-se com destaque na cidade de Recife como um ambiente inesgotável quanto ao valor arquitetônico e artístico.
Começando pelo acesso, feito através de uma grande alameda toda pavimentada com paralelepípedos e tendo as laterais ocupadas por frondosas palmeiras, já se sente um ambiente natural aprazível, que conduz a um grande sítio com paisagismo eclético. Nas áreas externas, uma coluna sustenta uma réplica do David, de Michelangelo, em frente ao primeiro edifício de linhas medievais, que abriga uma coleção de arte de vários períodos históricos.
Nos jardins, a obra de Bottero A dama e o cavalo é logo identificada, e contrasta com a maioria das esculturas que adornam os espaços livres, que delineiam formas clássicas. Na área externa do museu situam-se diversas obras esculturais que vão desde animais até figuras humanas, destacando-se um pequeno coreto tendo como colunas de sustentação figuras femininas com função das cariátides existentes nas edificações gregas. Os exteriores criam uma atmosfera de castelo, embora os interiores demonstrem sua construção moderna, com estruturas em concreto aparente, exaltando aspectos escultóricos.
A contribuição mais significativa do percurso expositivo é a exposição temporária Franz Post e o Brasil holandês na coleção Ricardo Brennand, que conta com peças de tapeçaria, mobiliário e objetos domésticos da época, contextualizando os mapas e prospectos que representam o Recife na época de Mauricio de Nassau. O hibridismo entre as épocas, aliado às coleções específicas de armas brancas, armaduras, pinturas românticas, expostas num edifício iluminado por vitrais coloridos e cercado por um lago, simulam atmosferas imaginárias e sedimentam a filiação do museu a uma tradição europeia que nobilita as origens da família e da sociedade local.
As obras de Brennand são onipresentes: estão no Cais das Esculturas, onde se acessa por barco ou por terra. Um grande totem com coroa de fogo, cintado por cabeças de serpentes, pode ser visto de longe. E no Shopping Recife, há um percurso de esculturas a céu aberto, na área dos estacionamentos descobertos, onde figuram diversos artistas locais, num contorno ajardinado, proporcionando uma leitura da complexidade cultural da cidade.
sobre os autores
Cybelle Salvador Miranda é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará e doutora em Antropologia. Coordena o Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural — Lamemo e é pesquisadora nível 2 do CNPq.
Ronaldo Marques de Carvalho é professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará. Doutor em Engenharia de Recursos Naturais da Amazônia e pesquisador voluntário do Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural — Lamemo.