Quem atravessa da Nantes continental para a Nantes insular através da Ponte Haudaudine se depara com dois edifícios que à primeira vista, pela perspectiva que se tem, parecem concorrer entre si, disputando o waterfront do Rio Loire. Esses edifícios destacam-se de seus vizinhos, não pelo seu gabarito, nem mesmo pela ameba azul (1) que os anuncia à margem do rio, mas pela transparência e escala do conjunto que o destacam na paisagem desde o seu primeiro vislumbre. O complexo em questão trata-se da Escola de Arquitetura da cidade de Nantes, na França, projetada pelo escritório Lacaton & Vassal, laureado pelo Pritzker Prize em 2021.
Em contrapartida, aqueles que caminham em direção ao Loire pela rua Alain Barbe Torte deparam-se, com maior proximidade, com um galpão prismático, com sua estrutura totalmente exposta, fechada apenas no nível térreo por extensos paineis de policarbonato que vedam um pé-direito triplo, enquanto o que se apresenta como um segundo pavimento abre-se totalmente à rua, dando a impressão inicial de que o prédio ou não foi terminado, ou encontra-se desocupado. As diversas faces externas desse edifício insólito, numa primeira aproximação instigam o pedestre desavisado a tentar desvendar qual é de fato seu uso ao perceber, através do policarbonato, os vultos das grandes placas de MDF, mesas e contêineres dispostos pelo piso da escola. Talvez por esse motivo, ou ainda com o intuito de que a escola não fosse confundida com alguma herança da indústria naval, a diretoria afixou o logotipo que anuncia “Ensa (2) Nantes — Architecture” na fachada interna à ilha em 2016. Essa escola instala-se em um edifício que busca possibilitar o ensino através de ambiciosas experimentações espaciais e expô-las à cidade toda, como veremos a frente.
“Antes de ser uma escola de arquitetura, o que tínhamos vontade de fazer era uma imensa plataforma, em diversos pavimentos, todos ocupáveis, abertos à cidade, à gente de de Nantes, na qual, em seu interior, se encontra uma escola de arquitetura” (3).
Premissas do projeto e contexto
Objeto de um concurso de projetos no começo dos anos 2000, a nova sede para a escola de arquitetura da cidade faz parte das primeiras empreitadas de ocupação do setor oeste da ilha de Nantes, parte inaugural de um extenso projeto de requalificação urbana que se discute desde a década anterior. Este projeto pretendia, nesse primeiro momento, trazer novos usos e olhares para o local, que entre o século 17 e o final do século 20, abrigou parte expressiva da construção naval francesa. No início da implementação do projeto de requalificação da ilha fluvial, em 2003, o arquiteto responsável, Alexandre Chemetoff, pretendia ocupar este setor, entre a Ponte Haudaudine e os canteiros navais, com edifícios de caráter institucional e comercial voltados para servir à economia criativa, de forma que, no decorrer do processo, a área passaria a se chamar Quartier de la Création. O terreno que faceia o número 6 do Quai François Mitterrand, via recém aberta à época, é escolhido para abrigar a Escola Nacional Superior de Arquitetura de Nantes e inaugurar a ocupação desse espaço conforme o pretendido pela prefeitura local e por Chemetoff a partir do ano de 2009.
Os arquitetos Anne Lacaton e Jean-Philippe Vassal buscam responder às demandas do edital do concurso através da adoção de soluções estruturais econômicas aliadas ao uso mínimo de acabamentos finos, viabilizando a construção do dobro da área preestabelecida pelo concurso. Essas premissas são recorrentes em diversos projetos do escritório, sendo explorada desde o início dos anos 1990 com projetos meramente especulativos como a Maison d’Habitation Économique, de 1992, mas que acabam por se concretizar pouco tempo depois em projetos como a Maison Latapie (Floirac, França, 1993), a Maison Économique (Coutras, França, 2000) e a Cité Manifeste, habitação multifamiliar em Mulhouse executada em 2005. Essas experimentações fazem com que o escritório adquira um saber-fazer muito particular que culmina na conquista do primeiro lugar em concursos de arquitetura de bastante expressão como o retratado aqui, para a Ensa Nantes e também, em 2008, para o Frac (4) Nord-Pas de Calais em Dunkerque, que é a síntese do percurso do escritório até então.
O partido adotado para a escola é relativamente simples. Além desse saber-fazer e da possibilidade de se dobrar a área especificada em edital, a escolha dos materiais também vem da intenção dos arquitetos em criar um edifício em sinergia com a história e contexto do sítio em que se insere (5). Para tal, o térreo distribui-se sobre um piso em asfalto com um leve caimento para o rio, do qual brotam os massivos pilares em concreto pré-fabricado aparente e principais núcleos de circulação vertical que se encontram com as lajes, também pré-fabricadas, que abrigam sobre o grande vazio da rez do chão e dividido nas três lajes superiores, o programa da escola de arquitetura. A mediação entre o passeio público e a escola acontece através do grande auditório que, por sua vez, também se abre para o rio e para cidade através de uma porta deslizante metálica, tornando-se um grande equipamento para a cidade. Nos níveis superiores, as salas de aula e os ateliês dispõe-se pelas extremidades das lajes de modo que surgem os grandes espaços vazios que servem à espontaneidade e criatividade dos alunos. Faceada ao rio, encontra-se a Galeria Loire conectada ao edifício principal por uma passarela dupla. Esse anexo abriga algumas funções administrativas e laboratórios de pesquisa, mas seu principal equipamento é novamente o piso térreo, que por sua vez funciona como a grande vitrine da escola para a cidade, abrigando exposições temporárias, quase sempre com os produtos finais de determinadas disciplinas do quadro pedagógico.
O edifício
“Construindo uma estrutura e grande capacidade, o projeto inventa um dispositivo de criar um conjunto de situações ricas e diversas de interesse da Escola de Arquitetura, da cidade e da paisagem” (6).
O edifício, como postulado pelo escritório, estrutura-se a partir de três lajes de concreto, uma que se lança nove metros acima da rez do chão, e mais duas a dezesseis e vinte e dois metros de altura respectivamente, que conformam as salas de projeto, bem como os grandes vazios entre elas que servem às experimentações propostas pelas disciplinas aos alunos. Essas lajes são envoltas por uma grande rampa que percorre as faces oeste e sul do edifício que serve não só ao acesso de veículos, mas também conduz o usuário através de uma promenade tímida, mas que revela com parcimônia os elementos que compõe a escola: os acessos, as salas de aula, o grande terraço e por fim, depois do maior trecho do percurso, a cobertura, que recebe diversas atividades estudantis ao longo do ano letivo e, no período de férias, por vezes, atrações do festival de arte Voyage à Nantes.
Rez do chão — ateliê de fabricação, estacionamentos e salas de aula
O pavimento térreo contempla a parte cívica do programa da escola. O auditório, a secretaria e o pavimento de exposições da Galeria Loire encontram-se de frente para o rio e para o Quai François Mitterrand. Uma grande porta deslizante metálica se faz útil para convidar os nanteses para dentro do principal auditório do conjunto em ocasiões especiais. A sudoeste deste bloco, o restaurante universitário e um bloco de banheiros é empurrado para dentro do edifício pela rampa. A sul do auditório, por sua vez, após o intervalo conformado pelo grande galpão de fabricação, encontra-se o bloco que abriga maquinário pesado de maquetaria como serras, furadeiras de mesa, CNC’s e outros equipamentos de fabricação digital que servem aos alunos. Ainda nesse primeiro plano, os alunos deparam-se com pilares numerados, conforme o projeto, através de uma pintura por aplicação de tinta sobre stencil, sinalizando que o prédio, em primeiro lugar, é o principal objeto de educação do olhar e raciocínio projetual dos futuros arquitetos.
Subindo para o segundo nível da “Rez do Chão”, como discriminado pelo escritório, encontram-se o estacionamento, o acesso intermediário ao auditório e ao modesto anfiteatro, bem como uma escada que leva ao bloco de salas de aula do nível superior, acima do pavilhão da maquetaria. Este pavilhão está nivelado com a primeira parcela de estúdios de projeto que se conformam entre os pilares pré-moldados do edifício como uma grande área livre. Por vezes, as disciplinas são divididas apenas por grandes cortinas plásticas ou até mesmo quadros metálicos móveis para afixação de pranchas de projetos. Este último nível é coroado pela primeira laje, a nove metros de altura do chão.
R+1 — Biblioteca, apoio ao estudante, terraço e salas de aula
O programa sob a segunda laje desenvolve-se a partir de dois grandes núcleos. A oeste, encontra-se a biblioteca com suas próprias salas administrativas e uma pequena sala de aula que se destaca do volume. A biblioteca também concede acesso aos dois níveis dos laboratórios de pesquisa que se organizam acima da Galeria Loire. Imediatamente acima deste, encontram-se os laboratórios de produção digital, com um grande pólo multimídia que conta com diversos computadores e equipamentos eletrônicos que ficam à disposição dos alunos durante o ano letivo.
A leste, um modesto pavilhão recebe salas de apoio ao estudante e é coroado na mesma projeção, por pequenas salas de aulas, que servem a divisões de grupos intra-classe e ao fornecimento de workshops periódicos. A sul do pavilhão, abre-se um grande terraço que abre vista para a rotatória da rua Alain Barbe Torte e para o setor oeste da ilha de Nantes, possibilitando visuais únicos para o projeto urbano que se desenvolve em frente aos olhos dos alunos da escola. Esse grande terraço serve também de plataforma de aterrissagem para os visitantes que sobem as rampas e precisam tomar um último fôlego para continuar o longo percurso até a cobertura.
Vale apontar que o grande vazio entre os dois pavilhões funciona como um grande salão em que são organizadas festas, exposições temporárias e até mesmo dão lugar a instalações artísticas pontuais produzidas pelos alunos. Essa gama de usos, novamente, só é possível por conta da decisão de se fazer um grande átrio de pé direito duplo e que abre-se para o rio, convidando observadores mais distantes, fazendo com que o nível torne-se o coração da vida acadêmica, sintetizando aos olhos mais atentos tudo o que a instituição desejou se tornar ao escolher o projeto de Anne Lacaton e Jean-Philippe Vassal: um farol para o futuro da cidade, mas principalmente para o ensino de arquitetura, uma escola onde não apenas se fornece conhecimento, mas também se aplica.
R+2 — Salas de aula, estúdios de projeto e cobertura
Entre a segunda e a terceira laje, a escola assume um caráter mais pragmático. Surgem as salas de aula e estúdios de projeto que, diferentemente dos estúdios inferiores, são segmentados por paredes, não apenas divisórias leves. Assim como os outros, todos os estúdios são equipados com projetores, tomadas para carregamento de computadores e demais equipamentos de suporte audiovisual. As salas do setor oeste e do setor sul abrem-se para grandes terraços que, novamente, abrem-se para a ilha que se redesenha, não para o centro histórico, um aceno dos arquitetos para que os alunos possam contemplar, mesmo que temporariamente, a situação singular de se estudar em meio a um gigantesco e ativo canteiro de obras.
Assim como nos pavimentos inferiores, repete-se a lógica dos pavilhões de sala de aula que se duplicam, valendo-se do pé-direito duplo para a criação dos vazios que também servem à experimentação em escala 1:1 dos alunos, ainda que não sejam áreas tão generosas quanto as dos níveis inferiores. A cobertura, conformada pela terceira e última grande laje, é uma recompensa para aqueles que venceram a subida de vinte e dois metros, promovendo uma vista panorâmica para toda Nantes histórica e continental a norte, insular a leste e oeste e por fim, Rezé a sul, que abriga uma das Unités D’Habitation de Le Corbusier. Esse caráter cenográfico faz com que esta seja utilizada mesmo fora do período de aulas em atividades culturais promovidas pela cidade, principalmente no verão durante o Voyage À Nantes.
O caráter do curso de arquitetura promovido pela Ensa Nantes é completamente transfigurado a partir das possibilidades que se abrem a partir das decisões de projeto tomadas. Os grandes vazios abertos entre os pavilhões não apenas suportam como também convidam à experimentação e exploração espacial em escala real por parte dos alunos, que fazem daquele espaço um canteiro vivo, como se mimetizassem aquilo que ocorre em seu entorno imediato. Esse caráter da escola cria um ambiente muito rico de discussão entre alunos e professores, estabelecendo uma dinâmica de ensino muito particular em que, de certa forma, os professores também integram o corpo discente. Isso também se viabiliza pelo fato de as turmas de cada disciplina (principalmente de projeto) serem bastante reduzidas em relação ao que vivemos no Brasil. As disciplinas de caráter prático desenvolvem-se em turmas compostas de uma média de dez ou quinze alunos para cada professor. Assim como o edifício Vilanova Artigas, sede da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — FAU USP, o galpão da Ensa Nantes é mais um exemplo de como o espaço de ensino é determinante para a formação de um programa pedagógico.
Conclusão
Indubitavelmente, o projeto de Anne Lacaton e Jean-Philippe Vassal é um grande exemplar de uma arquitetura totalmente integrada ao seu contexto arquitetônico e cívico. Muito mais que uma escola, é um edifício que se estabelece também como equipamento público desde sua concepção, vindo ao encontro das necessidades que o espaço da Ilha de Nantes viria a ter com a sua ocupação paulatina, impulsionada, num primeiro momento, pelas residências estudantis que se fizeram necessárias junto a outros equipamentos pontuais, como o palácio da justiça projetado por Jean-Nouvel e o Parc des Chantiers. A escola torna-se um grande acontecimento na cidade principalmente pelo fato de se inserir com certo ineditismo em um território que buscava tomar novo corpo no momento de sua inauguração.
Com certeza pode-se afirmar que o partido e a linguagem arquitetônica adotados são consequência direta dos anos de prática de Lacaton e Vassal, mas é imprescindível destacar que essas escolhas resultam também da sensível leitura do contexto feita pelos arquitetos. Ao se fazer o percurso desde o extremo oeste da ilha, área em que instalavam-se os galpões da construção naval hoje convertidos em parque, até a Ensa, nota-se o desejo dos arquitetos em configurar seu edifício também como um galpão que possibilitasse uma experiência de ensino singular e que, assim como os projetos de intervenção nos galpões da ilha que se implantavam desde 2006, subvertesse a lógica de um galpão industrial, ou seja, ao invés de restringir seu acesso e ocultar o que se faz ali, o edifício abre-se totalmente ao público, valendo-se de fechamento translúcidos e dotando-se de ambientes que servem também à comunidade. A obra que prontamente tornou-se um marco na paisagem nantesa, anuncia-se como uma nova experiência no ensino de arquitetura, escolhendo ser para seus alunos e vizinhos, um galpão de infinitas possibilidades.
notas
1
Trata-se de “L’Absence”, obra do arquiteto Joep Van Lieshout. Nada mais é que um pequeno bar gerido pelos estudantes durante o verão. A ideia era criar um espaço sem forma determinada, com “ausência” de forma, por isso o nome.
2
École Nationale Supérieure D’Architecture.
3
VASSAL, Jean-Philippe. Une île en Ville: Histoire de l’île de Nantes. Entrevista à DemainTV, 2016.
4
FRAC — Fond Régionaux d’art Contemporain — Iniciativa do ministério da cultura francês de subsídio à cultura e difusão da produção artística regional que conta com diversas sedes físicas que funcionam como centros culturais urbanos.
5
VASSAL, Jean-Philippe. Op. cit.
6
VASSAL, Jean-Philippe; LACATON, Anne. Lacaton & Vassal <https://bit.ly/3TvokeT>.
sobre o autor
Luiz Henrique Boschi Grecco é arquiteto e Urbanista graduado pela Universidade de São Paulo em 2017. Mestrando na mesma instituição, na área de concentração Arquitetura e Cidade. Atua na área de restauração de edifícios e reuso adaptativo.