Depois de voltar de viagem, tivemos a curiosidade de perguntar ao Google quais são as cidades mais recomendadas para se visitar nos Estados Unidos. Entre os portais brasileiros, nenhum recomendava Filadélfia. É compreensível! Em um país no qual os turistas buscam superlativos, Filadélfia é uma cidade modesta. Lhe falta a grandiosidade de Nova York, os ares hollywoodianos de Los Angeles, os parques temáticos de Orlando ou o glamour de plástico de Las Vegas, para citar alguns dos destinos mais comuns.
A cidade não oferece vistas deslumbrantes, não é cercada por montanhas, desertos nem praias atrativas, não tem grandes monumentos nem um número significativo de edificações assinadas por arquitetos famosos. Tem baixa representação no cinema, tanto que um dos poucos filmes de grande alcance rodados na cidade, Rocky, de 1976, faz parte integral da sua identidade enquanto destino turístico.
Entretanto, há bastante o que se ver e fazer em Filadélfia. Tudo o que se espera de uma cidade com seu porte e seu tempo de existência está representado: monumentos históricos, museus, mercados, uma modesta waterfront e mesmo uma Chinatown. Tem todos os indicadores visuais de uma cidade grande no centro da economia global, como a paisagem repleta de arranha-céus e highways. Ainda assim, a cidade tem ares menos grandiosos, parece menos polida, é estereotipada como rude e inculta, tal qual Rocky Balboa, por habitantes dos maiores centros culturais do país.
Mas o que lhe parece único, dentre as cidades americanas, são suas ruas. Algo que é inesperado em um país no qual grande parte da mobilidade e do imaginário gira em torno do automóvel. Evidentemente, há uma grande variedade de tipologias de ruas na Filadélfia, desde largas alamedas com ares Haussmanianos, como a Benjamin Franklin Parkway, aos mais discretos becos de serviços.
A paisagem é resultado da aplicação incompleta do plano urbanístico de William Penn, de 1682. A cidade, cujo nome significa a Cidade do Amor Fraternal, deveria ser a encarnação física da visão de liberdade religiosa e abrigo aos oprimidos defendida por seu proponente e fundador. O plano ocuparia uma parcela relativamente plana de terra entre os rios Schuykill e Delaware com ruas esquadrinhadas. Além do tabuleiro de xadrez, foram propostas cinco praças, uma central e mais quatro, no centro de cada quadrante do traçado. O plano foi relativamente obedecido durante o primeiro estágio do crescimento da cidade no século 18.
Esse traçado original gera uma paisagem homogênea: ruas retas e de larguras idênticas: quinze metros, com exceção dos dois eixos centrais, as Broad e Market Streets, com trinta metros. Essa homogeneidade é acentuada pela coesão arquitetônica do acervo de residências no chamado Federal Style, com fachadas ritmadas (porta, janela, janela), três pavimentos (mais sótão e porão elevado), tijolos avermelhados e esquadrias brancas em madeira. A paisagem é tão repetitiva que Charles Dickens, em 1842, descreveu-a como “uma cidade bonita, mas perturbadoramente regular. Depois de caminhar cerca de uma ou duas horas, senti que teria dado o mundo por uma rua torta”.
Talvez os melhores representantes reminiscentes da descrição de Dickens sejam os trechos da Delancey Street e a Spruce Street, que foram poupadas das renovações arquitetônicas que ocorreram no século 20. A Spruce Street tem mais de três quilômetros entre os dois rios, vinte e cinco quadras seguidas, em linha reta, de uma rua sem variação de largura ou gabarito, com uma arborização consistente ao longo de todo o percurso e com um casario praticamente ininterrupto com quase nenhuma variação estilística.
A escala da repetição é palpável, mas oferece algo de reconfortante. Para nós, brasileiros, acostumados com a cacofonia expressa na maioria das ruas do país, existem qualidades invejáveis nas ruas da Filadélfia: a clareza e legibilidade do espaço, a onipresença do verde, tanto nas grandes árvores ao longo das ruas quanto nas inúmeras jardineiras e nos vasos dispostos nas escadarias, a história contida nas construções, a escala das ruas, bastante acolhedoras ao pedestre, a proximidade do comércio e serviço, de belas praças e jardins etc.
Contudo, existe uma outra faceta, mais discreta, da paisagem urbana da Filadélfia. Há um segundo traçado, sobreposto ao dominante, que o intersecciona de forma quase independente, criando uma outra malha viária, como uma dimensão paralela. Um conjunto de becos, vielas e pátios que originalmente serviam como acesso dos cocheiros, serviçais e para a retirada de lixo. Desde o século 17, proprietários das residências parcelavam os fundos de seus lotes para abrigar empregados ou alugar para trabalhadores como complemento de renda, em alguns casos, inclusive, por iniciativa de organizações religiosas, para abrigar escravizados libertos.
Essas pequenas vias não correspondem necessariamente ao traçado quadriculado da cidade formal. Muitas delas não atravessam as ruas principais ou não se alinham umas às outras, em alguns casos alinham-se no sentido norte-sul, em outros Leste-Oeste, em outros casos há mais de um beco por quadra. Essa variedade de soluções acaba por criar miniquadras dentro das quadras, diversos microcosmos, presentes ao virar de uma esquina, mas que apresentam outras atmosferas. Pode-se estar caminhando em um importante eixo comercial, entrar em uma dessas vielas e encontrar-se em um espaço com uma escala urbana radicalmente diferente.
Esses becos têm, em média, cinco metros de largura, e são ladeados por uma de duas possibilidades: os fundos das residências maiores, que têm fachadas voltadas para as ruas mais largas; ou as fachadas de pequenas casas, de uma tipologia tipicamente filadelfinana, as Trinity Houses, assim chamadas por sua distribuição em três pavimentos, um único cômodo por andar e menos de seis metros de frente. No primeiro caso, podem ser vistas garagens, abrigos de lixo, escadas de emergência e muros. Não é o melhor lugar para se estar, certamente, mas esse arranjo garante que as ruas principais estejam livres de carros estacionados, lixo acumulado ou escadas sobrepostas às fachadas, coisas que são ubíquas em Nova York, por exemplo.
Mas são os becos ladeados pelas Trinity Houses que guardam o maior charme da Filadélfia, um charme que talvez tenha passado despercebido na visita de Dickens. A malha formada por essas vias pode não contemplar as ruas tortas que ele sentiu falta em suas caminhadas, mas a natureza descontinuada desse traçado força o caminhante a fazer constantes mudanças de direção, realinhando perspectivas, descortinando novas vistas, emoldurando fachadas. São ruas estreitas, calçadas em pedra e tão ou mais densamente arborizadas e ajardinadas quanto as ruas mais largas. A ambiência doméstica, quase privativa, desses espaços faz com que os moradores ocupem as calçadas com mobiliário: mesa, cadeira, vasos, lenha para as lareiras e bicicletas. Não há espaço para carros estacionados, eventualmente pode-se encontrar um morador descarregando a feira ou algo do tipo, mas nenhum carro fica ali por muito tempo.
Os carros existem! Mas estes ocupam espaços discretos, como um bolsão de estacionamento em um miolo de quadra, acessado por uma passagem que não interrompe a continuidade do casario. Alguns desses miolos de quadra são ocupados por pátios ou playgrounds. A experiência do espaço é tão doméstica que caminhar por esses espaços pode parecer uma violação da privacidade. Mas não, aqueles são espaços públicos, plenamente integrados a malha urbana. Conscientes disso, os moradores que cruzam por estranhos nos becos exclamam ‘bem-vindos’ ou ‘bom dia’.
Esse tipo de ruela é uma constante na cidade. A Elfreth’s Alley é a mais célebre, denominada como a rua mais antiga em ocupação contínua dos Estados Unidos e com um museu para acompanhar, é habitada por alguns moradores já um tanto mal-humorados pela convivência constante com inúmeros grupos de turistas. A Quince Street forma o coração do mais importante distrito LGBTQUIAP+ da cidade, com bandeiras do orgulho e próxima a estabelecimentos como bares, cafés e restaurantes gerenciados por membros da comunidade. A America Street parece incorporar o seu nome e cada casa exibe orgulhosamente uma bandeira americana, sempre acompanhada de adesivos com mensagens progressistas. A Delhi Street, na ocasião de nossa visita, servia como cenário para uma Yard Sale e brincadeiras infantis. Além destas, existem várias!
Há uma correlação inevitável entre a qualidade desses espaços e seu tempo de existência. A maioria desses becos foram edificados ao longo do século 19, sobreviveram ao impulso demolidor do século 20, tiveram seu conteúdo social radicalmente substituído por processos de gentrificação e hoje demonstram uma forma de vida urbana onde há um equilíbrio entre alta densidade e acesso ao verde, silêncio e privacidade, em certa medida. A legislação urbana contemporânea impediria qualquer tentativa de replicar um casario desse tipo: ruas estreitas, casa geminadas. Portanto persiste uma associação entre esse tipo de qualidade de desenho urbano e um tipo de ocupação do passado. Há uma exceção notável.
Vagueando por entre ruas e becos, nos deparamos com um conjunto edificado que incorporava todas as qualidades do casario tradicional: a rua estreita e calçada, as árvores, as fachadas estreitas, os tijolos aparentes, a falta de carros e tudo mais, mas que era evidentemente algo de outro tempo. Não conhecíamos o projeto na ocasião, mas depois de encantarmo-nos com a arquitetura, buscamos mais informações.
A St. Joseph’s Way é parte de um projeto de reurbanização do bairro Society Hill, realizado a partir de 1957 por I. M. Pei. O projeto faz parte de um conjunto de iniciativas de requalificação dos centros das cidades americanas depois dos traumas causados pela abertura de vias expressas e viadutos que coincidiram com o processo conhecido como white flight, quando a população branca das cidades evadiu das áreas centrais para os subúrbios. No fim dos anos 1950, iniciativas de habitação desse tipo fizeram parte da estratégia de atrair de volta essa população.
O projeto de Pei foi o pontapé para o controverso processo de gentrificação do bairro. Mas, independentemente das conotações sociais do empreendimento, é evidente o sucesso do arquiteto em conciliar as demandas por habitação de classe média em pequenas residências de alta densidade com o respeito à tradição construtiva da cidade. É admirável, também, ver como o arquiteto se aproveitou da qualidade espacial dessa paisagem dominada pelos becos e vielas.
As ruas da Filadélfia guardam as melhores qualidades de uma cidade modesta. Entre as repetitivas ruas do plano de Penn e os becos que se espalham por toda a área central, surge uma paisagem urbana singular no contexto norte-americano. Uma cidade que pode não ser a mais opulenta, descolada ou moderna, mas que tem lições valiosas sobre o que torna um espaço urbano aprazível, sobre manipular hierarquia e escala para criar ambiências diversas, das mais monumentais às mais domésticas. Uma cidade histórica, caminhável, dinâmica, com muito a ensinar.
sobre os autores
Andrei de Ferrer e Arruda Cavalcanti é doutorando e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPB (2015). Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela UFPB (2011), atualmente é professor assistente do curso de Arquitetura e Urbanismo do Uniesp.
Marcela Dimenstein é doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN (2021), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPB (2014). Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UFPB (2011). Atualmente é professora assistente do Curso de Arquitetura e Urbanismo do UNIPÊ e do Uniesp.