Para abrir e fechar, iluminar e ventilar, entrar e sair, se aproximar e participar do espetáculo da vida cotidiana acontecendo na rua, portas e janelas furam muros construídos no exato local que divide e, ao mesmo tempo, integra os espaços público e privado, os mundos social e individual, as vidas urbana e doméstica.
Pequenos gestos e soluções que oferece a própria arquitetura permitem, em muitas circunstâncias, resolver o urbanismo com mais eficiência e sensibilidade que a planificação tecnocrática de grande escala. Portas e janelas ritmam planos maiores, plenos de urbanidade, provocadores de diálogos e encontros, diafragmas entre a exposição e a intimidade, elementos que outorgam significado à vida em sociedade. Aberturas que, além da função doméstica, transformam-se em vitrines, pequenos comércios, bares, restaurantes e outros usos que a dinâmica da vida desenvolve, dando sentido à cidade.
A urbanidade dessa arquitetura ainda é possível encontrar em pequenas cidades alheias à voracidade imobiliária, onde é provável vivenciar contatos sociais, manifestações solidárias e espaços públicos vivos e agradáveis, configurados por edifícios e casas singelas e de extrema nobreza urbana.
Nas cidades grandes, a combinação de capitalismo e desigualdade provoca a negação do urbanismo. Portas e janelas são substituídas por muros e portões de estacionamento, em flagrante contradição com a própria essência da cidade enquanto construção coletiva destinada a celebrar a vida em comunidade.
Em constatação empírica, a persistente sensação de insegurança derivada da desigualdade morbosa, o culto ao automóvel e a venda de “segurança” pelo mercado imobiliário contribuem para o fenômeno da des-urbanização. Ao mesmo tempo, influências culturais são devastadoras: a repercussão de imagens de filmes norte-americanos com casas isoladas, o crescente individualismo (“minha casa” destacada no “meu terreno”), e contribuições da cultura higienista proveniente da modernidade, aportaram na difusão de um modelo de cidade desagregador, consagrado por leis de edificação.
Retomar o conceito de cidade na produção de arquitetura virou uma utopia?
Tudo parece indicar a contraditória validação da produção anti-urbana, resultado de demandas sociais que refletem uma cultura individualista e anti-civilizatória. Enquanto persistir a desigualdade resultará difícil fazer urbanismo no Brasil. Precisamos mais arquitetos urbanistas e menos arquitetos e urbanistas, mais arquitetura que considere a urbanidade na própria concepção dos projetos e menos construções divorciadas da cidade, mais visão solidária e integradora e menos visão excludente, em definitivo, mais consciência e sensibilidade na solução do ponto de contato entre arquitetura e cidade e menos submissão ao mercado.
A concepção da urbanidade na própria matriz da arquitetura é um desafio que implica um processo civilizatório, por tanto, impossível resolver apenas desde a prática profissional autónoma. É importante estarmos atentos às oportunidades que se apresentam, especialmente desde o campo público. Uma de elas é o programa Minha Casa Minha Vida, sujeito ainda a normas desagregadoras de configuração urbana. Experimentar usos mistos integrados com as residências, configurar o espaço urbano com a própria arquitetura, desalentar recuos frontais e laterais (que estendem a infraestrutura urbana e estimulam a construção de muros e portões), resolver estacionamentos e guardas de veículos sem agredir a paisagem construída, evitar a monotonia repetitiva de casas, propor tipologias diversas adaptadas à topografia, clima e orientações e, principalmente, superar a ideia de que “arquitetura para pobre” é inferior, são desafios que se apresentam, dentre outros, para retomar um processo integrador e civilizatório desde a própria arquitetura.
sobre o autor
Roberto Ghione, arquiteto, especializado em crítica arquitetônica, preservação do patrimônio e planejamento urbano. Presidente do IAB PE 2017/19. Titular do escritório Vera Pires Roberto Ghione Arquitetos Associados.