Riken Yamamoto foi o vencedor do Prêmio Pritzker de 2024 e a mensagem dos jurados não poderia ter sido mais oportuna. O que há de contemporâneo em um arquiteto com cinco décadas de prática? — persistência e consistência, foi a resposta do júri. Trabalhar e projetar muito, para milhares de pessoas que habitam e que circulam entre seus milhões de metros quadrados projetados. Nós arquitetos, especialmente os relativamente jovens, estamos acostumados a celebrar o excepcional, a arquitetura ícone. Foi assim que aprendemos nos livros de história da arquitetura, a partir de figuras-chave; e todos queremos realizá-las.
A mensagem do Pritzker — embora internacional — atinge em cheio a trilha sonora em que a arquitetura brasileira tem dançado. O Brasil, ainda que seja um país com recorrentes necessidades básicas de arquitetura e infraestrutura, não têm promovido oportunidades suficientes para ligar os carentes aos benfeitores; e parece que os arquitetos estão cada vez mais satisfeitos em detalhar bancadas de mármore para lavabos, ou fazer esculturas de arquitetura imaterial.
Os escritórios mais bem-sucedidos do país, atualmente, assim são, por serem totalmente dependentes dos projetos residenciais. A arquitetura nacional tem se apoiado em casas para existir. Não fosse o fato já uma lástima, a geração que segue tem tido desejos grávidos de entrar nessa lista VIP. Aquele país com necessidades elementares tem uma arquitetura residencial sofisticadíssima, tipo exportação. Talvez esta seja uma ladainha já esgarçada, mas não o suficiente. Existe uma parcela de arquitetos que se auto excluí da questão por fazerem pias de lavabo de concreto e torneiras com registro de gaveta volante. A novidade é que eles também estão inclusos nessa cadeia de arquitetura exclusivista. Reproduzir uma casa de concreto do Paulo Mendes da Rocha, mesmo que remixada, seria uma ideia romântica — não apenas pelo viés da sustentabilidade, mas também porque emplacar uma casa dessa natureza a qualquer pessoa não apresenta mais a revolução que foi. O jornalista Telmo Martino escreveu no Jornal da República em 29 de agosto de 1979 — “Paulo Mendes da Rocha, o arquiteto brutalista que os ricos adoram. Com muito concreto aparente e muito blindex, colocou todos morando em bancos”. Ainda que contendo ironia colocar ricos morando em agências bancárias foi genial, mas não é mais.
O primeiro passo é entendermos que não se fazem mais Farnsworth Houses, Casas da Cascata, Vilas Savoye, ou mesmo Residências Fernando Millan. A cada ano que passa, as casas têm perdido no cabo de guerra para o conteúdo que os clientes assistem dos decoradores youtubers; e os arquitetos de todos espectros estilísticos têm os servido bem. Outro fator que soma a irrelevância em especial do projeto residencial atual é o fato de que todo estilo é possível, exatamente como era pré-Lucio Costa. Se no passado os arquitetos modernistas rachavam a compra de revistas estrangeiras para combaterem aqui conceitos passadistas, hoje o exercício é reverso — se salva aquele que conseguir fazer um projeto sem que esteja na testa a origem da fonte em que bebeu.
Existem atualmente, vários estilos perfeitamente aceitos e concomitantes. A novidade é que todos correm em paralelo e sem nenhum pudor, importados, às vezes de perto, às vezes de longe, mais marrom-latino ou mais coloridinho-inox europeu, cinquenta tons de gesso branco, passando por cores terrosas Marrakech, concreto romântico-nostálgico, ou os novatos madeira e adobe. Qualquer que seja o material, a bateria de suítes é a mesma com as mesmas salas integradas. Casas não têm sido mais a ponta de lança do campo como foram no passado, e definitivamente, não respondem a demandas urgentes do presente.
Alguém poderia advogar que existem escritórios razoavelmente-bem-sucedidos e que fazem projetos tecnicamente interessantes, talvez até menos residências. Diga-se de passagem, boa parte dos projetos interessantes do presente são dependentes por exemplo da madeira, em um relacionamento com estas empresas que mais tem a contribuir para os arquitetos do que o contrário — em muitos trabalhos o arquiteto é quem deveria ser o coautor da empresa especializada.
Mas retornando a questão que importa, a despeito do que gostaria de ouvir Rino Levi sobre a profissionalização da arquitetura em 2024, como manter um escritório razoavelmente-bem-sucedido? E mais, como é possível que algumas práticas profissionais apenas façam projetos excepcionais e premiados? Esta conjuntura também está relacionada ao cenário atual da arquitetura. Sobretudo o jovem arquiteto, ou mesmo o estudante, devem fazer uma pesquisa de contexto do seu arquiteto premiado, assim como se estuda o contexto de um terreno.
Em um país sabidamente desigual, um dos motivos pelo qual as massas não acessam a tão necessária arquitetura, é por ela ter brotado com frequência em descendentes de intelectuais e bem-nascidos. Não há nenhum arquiteto que diga deliberadamente a um jovem estudante que a profissão seja muito bem remunerada. Portanto, não esperemos que os humildes se engajem na profissão. Mas quem já tem dinheiro, precisa de mais dinheiro? Poder escolher o que projetar, ou o quanto se remunerar quando dinheiro não é fundamental tem sido um privilégio que por décadas tem estacionado a arquitetura justamente nesse lugar, de privilégio e má remuneração. Caberá aos jovens arquitetos estabelecerem as métricas do futuro, admirar os seus colegas que promovem a assistência técnica ou reformam o famoso banheiro da tia. Caberá aos futuros ex-estudantes abrirem os olhos para entenderem em que rodas eles têm sido hamster.
É urgente, sabermos dimensionar o peso que damos para aquilo que está diante de nós. Isso também diz respeito a tendência cada vez mais comum de promover outras artes sem teto nem quatro paredes, sob o chapéu da arquitetura. Talvez uma tendência do ensino recente, cada vez mais distante do bloco de concreto, e mais próximo de diagramas e textos indignados; até o direito à cidade passa pela aptidão de saber fazer cidades. Reverenciar uma escultura de arquitetura como se fosse uma obra de arquitetura é exatamente a distância das necessidades reais do mundo de oito bilhões de humanos que estamos renegando; estamos abraçando as idiossincrasias e dando dois beijos na bochecha. O premiado Riken Yamamoto nos traz de volta a luz, ao trabalho, a importância da arquitetura cotidiana e de massa, e nos livra da ambição mesquinha da arquitetura paradigmática e de tudo que ela tem representado, pelo menos no Brasil.
sobre o autor
Felipe SS Rodrigues é arquiteto e mestre em arquitetura pela FAU Mackenzie, com estudos complementares na New Jersey Institute of Technology e no Pratt Institute em Nova York. Colaborou com o arquiteto Isay Weinfeld e com Rem Koolhaas no OMA de Roterdã. Atualmente têm sua prática profissional homônima em São Paulo.