Mas se, comparativamente, a casa da Rua Santa Cruz apresenta limitações, isso não lhe reduz a importância. Ao contrário, tratando-se de um exemplar de transição, adquire um valor documental único, como testemunho da mudança na direção da arquitetura moderna. Mudança que se manifesta na hesitação entre dois códigos distintos, entre duas formas de concepção diversas evidenciadas pela presença de certos elementos de solução formal já apontados, como a simetria da composição, o recurso ao tromp l’oeil, a adoção de soluções espaciais como as varandas e a persistência de técnicas e materiais tradicionais, como o uso de telhas cerâmicas.
Se o raciocínio está correto, o juízo dele decorrente tem conseqüências diretas nos critérios de restauração a serem adotados, pois o propósito de evidenciar a importância documental do edifício implica na necessidade de restaurá-lo segundo sua forma original. É na sua configuração primitiva que é possível perceber os elementos contraditórios de sua concepção.
Embora esta proposta possa escandalizar aos mais ingênuos e parecer conservadora aos que se pretendem mais atualizados em relação às teorias contemporâneas de restauração, é relativamente fácil argumentar em sua defesa.
Para levar a efeito a preservação deste edifício temos três alternativas:
a) preservá-lo tal como se encontra;
b) recuperar alguns de seus aspectos originais como a fachada emblemática preservando o restante de acordo com a situação atual;
c) fazê-lo retornar à sua configuração original.
Preservar o edifício tal como se apresenta a partir da reforma de 1934 ou incorporando as alterações mais recentes, significaria atribuir a prevalência da biografia do arquiteto sobre o significado da obra. Apesar do inegável papel de Warchavchik como introdutor da arquitetura moderna, é sabido que sua trajetória posterior se orientou para uma produção mais voltada a demandas correntes do que à continuidade de suas pesquisas iniciais. Além disso, como foi destacado, a reforma de 1934 promoveu alterações de valor duvidoso, comprometendo os atributos que levaram ao reconhecimento do papel de Warchavchik na introdução da arquitetura moderna no Brasil.
Recompor alguns aspectos do edifício como, por exemplo, a fachada, imagem marcante desta obra, à qual sempre esteve associada a sua memória na maioria das publicações, mantendo-se o restante de acordo com a situação atual, resultaria em algo que o edifício nunca foi. Mas, pior que isso, uma tal proposta estaria em conflito com um dos preceitos mais importantes do Movimento Moderno, isto é, que a forma externa de um edifício deve estar, necessariamente em correspondência com seu conteúdo.
Resta, portanto, examinar a última hipótese.
A reversão da casa à sua configuração original é relativamente fácil. Não se trata de recriação, pois lá estão presentes quase todos os elementos originais. O mais difícil - porém simples diante dos recursos hoje disponíveis - é a remoção da laje do terraço. O pavimento superior é praticamente o mesmo, tendo sofrido apenas alguns acréscimos. A iconografia disponível é suficiente para orientar a recuperação dos elementos em seus detalhes. Prospecções dos elementos originais poderão servir para verificar dúvidas e confirmar detalhes construtivos.
Reforça esta hipótese o fato do edifício se encontrar em estado avançado de arruinamento. A casa permaneceu por longos anos sem conservação, na expectativa de solução do litígio judicial e de sua destinação final. Em face disso, os custos de restauração não serão muito diferentes numa hipótese ou noutra.
O critério proposto para o edifício se aplica, do mesmo modo, ao jardim. Tratando-se, no Brasil, da primeira obra paisagística moderna, o jardim fronteiriço à casa deverá ser recomposto com todo o rigor. O levantamento das espécies e a distinção entre elementos originais e acrescentados será indispensável para a recomposição de sua integridade. As espécies estranhas à sua concepção original deverão ser removidas. As espécies originais deverão ser analisadas quanto a sua condição fito-patológica para avaliar as possibilidades de sua conservação ou necessidade de substituição. Os registros fotográficos disponíveis são suficientemente ricos para guiar com segurança a seleção dos dados obtidos no levantamento.
O momento em que, finalmente, são obtidos os recursos necessários à recuperação deste importante testemunho da arte moderna brasileira, constitui uma oportunidade excepcional para buscar o restabelecer os seus valores em toda a sua integridade.
Argumentos conceituais complementares e que fundamentam nossas observações poderão ser lidos em outra sessão de Vitruvius: Restauração de obras modernas e a Casa da Rua Santa Cruz de Gregori Warchavchik Marcos José Carrilho, texto especial 030 de Arquitextos.
notas
1
Franco, Luis Fernando. Instrução do Processo de tombamento das Casas da Rua Santa Cruz, Itápolis e Bahia, MEC/SPHAN, p.64.
sobre o autor
Marcos José Carrilho é arquiteto (Universidade Federal do Paraná, 1978), mestre em História da Arquitetura pela FAUUSP (1994), visiting scholar na Graduate School of Architecture, Planning and Preservation, Columbia University (Nova York, 1995), professor das disciplinas de Projeto I e Técnicas Retrospectivas da FAU-Mackenzie e arquiteto do IPHAN - 9ºSR - São Paulo.