"Se conhece algo melhor, perdoa minha candura; se não, desfruta comigo." (Horacio, Epístola I, 6)
Rebatizado em 1998 em homenagem a seu idealizador, o Museu das Missões teve suas obras concluídas em 1940 pelo arquiteto Lucas Mayerhofer. Solução exemplar de inserção de nova construção em sítio do século XVII, o edifício realiza uma perfeita integração entre o antigo e o moderno, aproveitando materiais provenientes das ruínas. Se tais características são amplamente conhecidas, a maneira pela qual a concepção original de Lucio Costa procura relacionar visitante, vestígios e ruína nunca é lembrada (ver texto De museus e ruínas).
É desnecessário argumentar em favor do entendimento de que obras paradigmáticas não podem ser preservadas (e compreendidas) mantendo-se alterações que as descaracterizam, e/ ou sem os demais elementos que compunham sua "ambiência" original. É impossível, por exemplo, imaginar a Casa Schroeder sem o mobiliário desenhado por Rietveld, ou a Casa da Rua Santa Cruz com as alterações posteriores feitas pelo próprio Warchavchik.
No caso dos museus, no entanto, a situação é mais delicada. Um grande arquiteto sempre imagina como sua obra será fruída. Ao projetar um museu, portanto, é inevitável que se depare com a questão do tipo de recepção da obra de arte que seu prédio irá proporcionar. Paralelamente à concepção e ao projeto do edifício há sempre, senão um projeto museográfico, pelo menos uma "concepção museológica", não raro polêmica como nos dois Guggenheim mais célebres. Recentemente, em um seminário sobre o tema em Porto Alegre, o diretor do Centro Cultural Hélio Oiticica, Paulo Sérgio Duarte, criticou duramente a proposta museológica de Lina para o MASP – além dos prédios do MAM-RJ e do Museu de Niterói – lembrada pelo crítico Josep Maria Montaner em sua exposição.
O caso do Museu das Missões ou Pavilhão Lucio Costa não é menos problemático. Desde a alteração da concepção original de Lucio por Paulo Thedim Barreto (1) ou de intervenções mais ou menos felizes, como os fechamentos de vidro colocados por Lucas Mayerhofer ainda em 1940; passando pela evidente inadequação de seus espaços frente às modernas técnicas museológicas de preservação, exposição, segurança e climatização; até a inevitável empatia com a sutil, e ao mesmo tempo genial, relação estabelecida entre observador, pavilhão, peças expostas e ruína; torna-se impossível, apesar ou em razão de tudo isto, esquivar-se à uma solução de compromisso a partir das possibilidades abertas pela futura construção, no local, do Centro de Documentação e Pesquisa.
Atualmente, mesmo com a chegada ao local tendo que ser feita, necessariamente, desde a Avenida José Basílio, situada no limite norte das ruínas, o acesso dá-se pelo lado oeste, fazendo com que o museu seja visualizado "erroneamente", quer dizer, ao invés da transparência dos fechamentos de vidro, a opacidade das paredes de pedra caiadas – inicialmente pensadas como fundo para as peças expostas. Além disto, uma vez que para chegar até a igreja é preciso descrever um percurso em diagonal desde o museu, não é possível tampouco visualizar as peças ali expostas em contato direto com a ruína ao fundo, primeiro porque, novamente, não se percebe a transparência do pavilhão, pois estamos praticamente de lado em relação ao eixo norte-sul, e sem perspectiva suficiente; segundo porque, mesmo que cheguemos a percebê-la estaremos olhando para o lado errado (contrário ao da igreja). Da mesma forma, os fechamentos de vidro, fixos na fachada norte e com portas de correr duplas na fachada sul, impossibilitam atravessar os espaços, de modo a deambular por entre as peças, dificultando sua apreensão tátil e, outra vez, o sentido de leitura apropriado – ruína da igreja como pano de fundo.
Seria desejável que tal estado de coisas fosse alterado, com o acesso sendo realizado diretamente pela Av. José Basílio, e com a retirada ainda dos painéis dispostos paralelamente aos panos de vidro, que diminuem a transparência do museu. Se os fechamentos envidraçados adequaram-se perfeitamente à concepção de Lucio – sendo necessário, tão somente, repetir as portas de correr na fachada norte, tornando possível a travessia dos espaços e o deambular por entre as peças - a colocação dos painéis, segundo projeto museográfico que procurava compatibilizar as pranchas informativas sugeridas pelo próprio arquiteto ao grande número de vestígios recolhidos, torna-se dispensável com a liberação dos espaços do pavilhão pela transferência da maioria das peças nele expostas para o novo Centro de Documentação e Pesquisa. (2)
Isto, nada mais que uma pálida homenagem ao mestre, seria o mínimo que poderia ser feito.
Os argumentos conceituais que fundamentam nossa proposta poderão ser lidos em outra sessão de Vitruvius: De museus e ruínas. Os liames entre o novo e o antigo, texto 008.02 de Arquitextos.
notas
1
Pode-se cogitar, até mesmo, para além da alteração na posição da casa do zelador, se a implantação atual também não seria diferente da originalmente pensada. Se Lucio sugere que o Museu deveria ocupar um dos extremos da antiga praça para servir de ponto de referência, e dar uma idéia melhor de suas dimensões, em nenhum momento, me parece, ele diz que estes extremos sejam os cantos da praça. Em A Arquitetura Jesuítica no Brasil, Lucio, ao descrever a organização das Missões, comenta: o edifício do Cabildo ocupava, geralmente, a extremidade da praça oposta à igreja. Uma vez que o cabildo localizava-se em frente à igreja no lado oposto da praça, levanta-se a hipótese de que para ele o extremo ou a extremidade da praça talvez não fosse necessariamente um de seus cantos. Com isto, viria por terra um dos argumentos a favor da proposta de Paulo Thedim Barreto, o de que com a localização da residência do zelador à sudoeste e não à noroeste o canto da praça seria acentuado sem prejuízo das visuais entre museu e igreja. A questão é que a intenção de Lucio poderia ter sido a de ocupar um "extremo" da praça e não um de seus "cantos". Ora, comparando o croquis do arquiteto com uma foto do museu fica claro que não há nesta o enquadramento da igreja que aparece naquele. Prolongando-se as linhas de fuga daquele veremos que elas se encontram num ponto que corresponde ao batistério da igreja. Só que na atual implantação o Museu se encontra um pouco mais à oeste do eixo traçado desde o batistério. Será que a implantação do museu é mesmo a correta? Se se imagina a variante que foi efetivamente construída, casa do zelador à sudoeste, ela é a mais indicada, pois o "L" da planta ajusta-se, de fato, ao canto da praça, sem que o volume da residência do zelador invada seu espaço. Mas ao se pensar na proposta de Lucio de recuperação do antigo eixo principal de acesso e naquilo que ele entendia por extremo ou extremidade da praça, provavelmente não: com a casa do zelador à noroeste, é possível trazer o museu mais para leste – sem que o volume da residência do zelador invada a praça – aproximando-o do eixo desde o batistério (que coincide com o do antigo acesso) possibilitando ainda um melhor enquadramento da igreja desde o alpendre do museu.
Mas a esta altura, já estaríamos no terreno da pura especulação, sendo completamente sem propósito (e fora da realidade) imaginar que a implantação e o prédio atuais pudessem ser alterados.
2
Sobre o projeto museográfico de 1985 e a proposta de transferência de parte dos vestígios para o Centro de Documentação e Pesquisa a ser construído, agradeço aos esclarecimentos prestados por Gládis Pippi, diretora do museu.
sobre o autor
Ricardo Rocha é arquiteto e urbanista pela UFES (Vitória - ES), mestrando em Arquitetura PROPAR UFRGS e professor do Departamento de Arquitetura da UFSM, Santa Maria RS.