Em meados dos anos 50, o governo JK deu seqüência a proposta a um dos pontos da geopolítica do governo Vargas – a "Marcha para o Oeste" – que pretendia deslocar para o Centro-Oeste o eixo de povoamento e de desenvolvimento do país. Com a construção de Brasília e a transferência dos órgãos federais do Rio de Janeiro para a nova capital, demarcava na "meta-síntese" um elenco de projetos reorientadores da implantação de infra-estrutura física. Até então era dada preferência para o eixo Rio-São Paulo. Em resumo: com Brasília, redirecionava-se o povoamento e dotava-se o interior com a necessária infra-estrutura física para a assim denominada "integração nacional", visando o desenvolvimento regional e nacional.
Para a "meta-síntese", Brasília foi pensada para abrigar 500 mil habitantes, mas o presidente do júri internacional que julgou os projetos urbanísticos, sir William Holford, sugeriu que se ampliasse esse patamar populacional em 100 mil. Com isso, Brasília teria, em fins de 2000, um total de 600 mil habitantes. Idealizava-se que Brasília coincidiria com o "plano piloto" da cidade que, ao atingir o total preconizado, ensejaria a construção de "cidades-satélites". Claro está que nos anos 50/60, não se previu que a dinâmica populacional, com fortes correntes migratórias rurais e urbanas, acrescidas do apelo de bons empregos na construção da capital, subverteu a meta populacional, multiplicando-a por quatro em 2000. Assim, Brasília chegou ao final do século XX com população estimada em mais de 2 milhões, dos quais, segundo o IBGE, apenas 240 mil habitavam o Plano Piloto de Brasília, transformado em centro da capital. Nesse centro se localizariam os principais órgãos do governo federal e do governo do Distrito Federal (DF). Na prática, essa massa populacional constitui uma das características geográficas para a definição de uma metrópole.
Desta forma, a "capital da esperança", bandeira dos ufanistas dos anos 50 e 60, deu ensejo a correntes migratórias que não encontraram guarida em outros pontos do país e, ao contrário da proposta contida no projeto inicial, não "volveram aos seus lugares de origem", após a inauguração do Plano Piloto, em 1960. Com isso, mesmo antes da inauguração da capital, os governantes abriram novos espaços urbanos, começando com Taguatinga, em 1958, o Núcleo Bandeirante, consolidado com sua fixação, em 1961 (esse aglomerado inicial, denominado, então, de "Cidade Livre", deveria ser demolido após a inauguração de Brasília) e a criação de outros núcleos urbanos (Gama, Sobradinho, Guará, Ceilândia etc). Os novos núcleos foram, paulatinamente recebendo habitantes dos canteiros de obras e das favelas erguidas do Plano Piloto e migrantes, muitos migrantes. Ao longo do processo de urbanização, não houve governo do DF que não abrisse espaço para novos "assentamentos semi-urbanizados".
Com isso, formou-se uma metrópole em quase tudo assemelhada às demais grandes cidades brasileiras, tanto em termos de complexidade funcional, quanto em importância regional, nacional e internacional. Apenas, não estão presentes indústrias pesadas e/ou poluentes, vedadas em sua lei orgânica. A dinâmica econômica centra-se nos diversos ramos do terciário/quaternário – público e privado – em atividades que suprem o mercado de trabalho local. Diga-se que os empregos gerados são insuficientes para a população economicamente ativa – PEA – de 900 mil pessoas. Fontes oficiais estimam em mais de 160 mil pessoas desempregadas no DF. Na área da força de trabalho, há potencial para crescer.
Brasília, portanto, escapou ao modelo de urbanismo inicial, tanto em termos de povoamento, dos sugeridos 600 mil para mais de 2 milhões de habitantes, quanto em termos de atividades, apoiadas fortemente no setor privado. Essas atividades, desenvolveram um diversificado comércio e serviços, muitos deles, logicamente servindo órgãos federais e governo local. A essa massa populacional (leia-se potencial de produção e de consumo), deve-se agregar habitantes do assim denominado Entorno de Brasília. O Entorno é constituído de núcleos habitacionais erguidos em loteamentos pelo setor privado em Goiás e se destinam a trabalhadores e funcionários de baixo poder aquisitivo. Funcionalmente, o Entorno depende de empregos e serviços oferecidos nas cidades do DF, principalmente no Plano Piloto de Brasília. Então, aos 2 milhões de habitantes do DF, agregue-se cerca de 500 mil dessa periferia urbana, o que se traduz numa metrópole das mais importantes do Brasil, com mais de 2 milhões e meio de habitantes, distribuídos em extenso território, no interior do DF e no estado de Goiás.
Portanto, ao longo dos 41 anos de existência. Brasília se tornou complexa e, sobretudo, exige ser definida: Brasília não coincide apenas com o Plano Piloto como muitos referem. O Plano é o centro da metrópole com o somatório desse núcleo central e quase duas dezenas de cidades (até há pouco tempo denominadas de "cidades-satélites"). Muitas dessas cidades resultam de "assentamentos semi-urbanizados", sendo carentes de infra-estrutura básica e de equipamentos sociais – escolas, hospitais equipados e serviços públicos. São cidades-dormitório e núcleos potenciais para a futura implantação de atividades produtivas, geradoras de novos locais de trabalho.
Finalmente, sob o ponto de vista sócio-espacial, não foi atingida a meta dos fundadores de transformá-la em "Capital da Esperança", pois as ex-cidades-satélites resultam de um continuado movimento de exclusão social, do centro para a periferia. A exclusão sócio-espacial assemelha-se a dos demais grandes centros urbanos. Se, por um lado, o ufanismo perdeu o brilho porque Brasília é a síntese da urbanização brasileira, por outro, não há porque denominá-la de "Ilha da Fantasia", como querem os crítico-cínicos. Se fosse realmente, ilha da fantasia, poderia extrapolar para a periferia todo o bem estar e equipamento existente no elitizado e bem equipado Plano Piloto. Com esse apelido, tentam os crítico-cínicos desabonar o esforço dos brasileiros que, por quatro décadas, trabalham para consolidar uma capital representativa da cultura brasileira.
Por seu turno, intelectuais, pesquisadores, como crítico-construtivos, desejam retomar o que foi idealizado nas fases iniciais de Brasília, como a implantação de projetos capazes de gerar novos postos de trabalho visando os mais de 160 mil desempregados (ou 18% da PEA). Almejam também que se democratize o acesso aos diversos equipamentos e infra-estruturas urbanas de tal modo que haja distribuição social dos bens e serviços socialmente constituídos na cidade. Mas, convenhamos, isso é algo desafiador e depende de uma mudança/transformação em termos de urbanização e do ideário sócio-político e econômico a ser desenhado para o país. O desafio para Brasília e para o Brasil é obstaculizar os processos de exclusão sócio-espacial por intermédio de políticas públicas que privilegiem a distribuição social do produto socialmente elaborado/acumulado, tal como os crítico-construtivos estipulam nas obras da Coleção Brasília, publicadas pela Universidade de Brasília.
notas
[artigo originalmente publicado no jornal Gazeta Mercantil, edição de 23/abril/2001, Caderno Distrito Federal, p 2]
sobre o autor
Aldo Paviani é Geógrafo, professor titular aposentado e pesquisador associado do Depto. de Geografia e do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais/CEAM, da UnB.