Os arquitetos locais concordaram somente em que Barcelona não terá arranha-céus e, sim, torres, ou seja, edifícios isolados cuja altura ronda pelos 100 metros. As demais questões apontadas revelam a polêmica que se desenvolve, no meio profissional, desde a construção de alguns edifícios e monumentos isolados que pretenderam funcionar como marcos de uma nova etapa de desenvolvimento social e urbano desta cidade.
Se a frente marítima, como está sendo proposto, é o melhor lugar para sua localização, se estes projetos não estariam além dos limites de legalidade, que condições um edifício singular deveria obedecer relativamente ao seu entorno, que exigências de qualidade se poderiam fazer e, até mesmo, seu indesejável caráter de monumento aos grandes capitais, etc., etc., todos são pontos em que a discordância é total. Um forte argumento, que aponta à lógica peculiar na implantação destes edifícios, é o de que o grande déficit construtivo da cidade é relativo a moradias, enquanto existe ociosidade em imóveis de caráter comercial como os propostos. Apareceu até a acusação de “provincianismo” na decisão de deixar construir essas torres, como se a cidade precisasse inscrever-se no mapa da arquitetura mundial através do rompimento de suas próprias tradições (1).
Enquanto não se chega ao consenso, os projetos vão aparecendo em operações concertadas tratadas diretamente entre grandes grupos promotores e órgãos de planejamento locais. Em março de 2001, já estavam em andamento projetos de oito novos edifícios. Cinco destes estão localizados ao longo da avenida Diagonal, a leste do cruzamento com a Gran Via – sinalizando a expansão pretendida em direção a área onde se desenvolverá o Fórum Mundial das Culturas, em 2004, destinado a atualizar o espetáculo Barcelona.
A discussão acima teve lugar no Colégio de Arquitetos da Catalunha, onde alguns dos autores expuseram seus projetos quinze dias antes do lançamento da Torre Agbar, a mais alta de todas, com 142 metros de altura e 50.693 metros quadrados distribuídos em 32 pavimentos. Esta torre está sendo construída no coração de Poblenou, antigo bairro industrial em vias de recuperação. E, em 2003, passará a ser sede do grupo Aguas de Barcelona, uma das quatro maiores empresas da cidade.
O projeto de Jean Nouvel causou perplexidade num primeiro momento. A chamada de capa do jornal La Vanguardia, de 27 de março de 2001, dizia “rascacielos ‘supositorio’ en la plaza de las Glòries”, expressando da maneira mais polida possível a impressão imediata acerca de sua obviedade faliforme.
O edifício é constituído por dois cilindros de planta ovalada, em concreto armado, encaixados um dentro do outro. O interno funciona como um grande pilar, o outro define o volume externamente e, por sua vez, será coberto por uma fachada de metal e vidro, com lâminas inteiramente móveis de 120X 30cm. As janelas se distribuirão aleatoriamente na superfície de concreto, garantindo o espetáculo cromático – segundo seu idealizador. A partir do 26º pavimento, a estrutura adota a forma de cúpula com o clímax atingido no 32º pavimento, onde está prevista uma sala de recepções que deverá funcionar como um grande mirante em 360º.
Nouvel diz ter-se inspirado nas formas de Montserrat, um monte que abriga um Mosteiro de mesmo nome próximo à cidade, importante símbolo de identidade catalã. Entrevistado, o arquiteto é direto:
“Todas as cidades têm edifícios simbólicos desde o ponto de vista cultural. Além disso, o edifício emblemático está ligado à representação do poder e a arquitetura sempre tem estado a serviço do poder. […] Não há muito mais opções. O arquiteto não pode escolher. A arquitetura não é uma arte que possa dar respostas sobre si mesma, sempre existem razões pragmáticas e tangíveis. […] O arquiteto que não quer trabalhar assim só poderá fazer arquitetura no papel” (2).
Três dias depois, o mesmo jornal publicou algumas das manifestações que recebera de seus leitores. Entre “Sin cambios no hay progreso”, “Felicidades, señor Nouvel”, “Estupefación en Poblenou” e “Destrozan el paisaje”, minha favorita é a denominada “Un símbolo para la ciudad” e diz que Barcelona merece edifícios ainda mais “potentes” – entre aspas também no texto original –, e sugere a construção de um edifício de 180 metros de altura. Olé!
Naquele momento, achei que Nouvel estava se divertindo a custa dos catalães, depois achei que ele poderia ter sido formalmente menos óbvio. Passado algum tempo, o edifício cumprindo velozmente o cronograma de execução e ensaiando sua contraposição a outros elementos emblemáticos de Barcelona (as fotos são de outubro-novembro de 2002), retifico e complemento estas primeiras impressões: o autor do projeto concretiza a intenção do cliente, e o faz com tanta autoridade e tão perfeitamente que expõe, completamente, a verdadeira imagem do poder. É muito bem pago por isso e – provavelmente – ainda se diverte, apesar de se poder justificar a expressão formal como parte da concepção estrutural global.
Por outro lado, o episódio remete aos limites da ação da categoria dos arquitetos em modificar o significado cultural associado a espaços e formas. Em Londres, um novo projeto de Sir Norman Foster, de mesmo porte e que segue a mesma proposta formal de Nouvel para a Torre Agbar, foi apelidado pela população de “vibrador”. Este será construído na City, perto do Lloyds Bank (3), e, no imaginário popular, fará dupla com um outro edifício de sua autoria construído às margens do rio Thames, já chamado popularmente de “testículo de vidro”.
Necessariamente precisamos crer que esses projetos espetaculares forjam as “novas” formas da arquitetura do século XXI? Ou estarão sendo escritos os capítulos finais do percurso agônico desenvolvido pelo neoliberalismo de fim de século, num necessário potlach (4) arquitetônico que desembocará numa verdadeira renovação?
notas
1
El País, 14 de março de 2001, caderno Catatuña (:7).
2
La Vanguardia, Caderno Vivir, 27 de março de 2001 (:3).
3
Projeto de Lord Richard Rogers.
4
Festa presente na cultura de diversos grupos indígenas do norte do Canadá, principalmente os Kwakiutl, na qual o anfitrião consome todos os seus bens – queimando inclusive seus pertences pessoais – restando miserável, mas socialmente consagrado.
sobre o autor
Elena Salvatori é arquiteta, professora da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, doutoranda em Teoria e História da Arquitetura na Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona – ETSAB / UPC.