Nos séculos XVIII e XIX muitos artistas, cientistas e pesquisadores estrangeiros passaram pela cidade do Rio de Janeiro e descreveram em textos memoráveis um pouco das impressões momentâneas que tiveram por aqui. Por conta de tarefas acadêmicas, reli recentemente alguns destes relatos e daí me ocorreu a idéia de, à maneira daqueles estrangeiros, produzir um brevíssimo ensaio sobre as minhas impressões ao circular pela cidade ao longo de um destes aprazíveis dias do outono carioca. Ficou mais ou menos assim:
Das cidades que conheci não há no mundo sítio mais belo e gente mais cordial do que os cariocas. São assim chamados, ao que parece, por conta de um rio que atualmente só se percebe um mísero filete d´água num bucólico local chamado de Largo do Boticário.
Também impressiona-me fortemente a grande dimensão física desta cidade, o que faz com que milhares de pessoas precisem morar muito distante do trabalho. Assim, as classes mais abastadas usam um automóvel individual – é raro ver carros com muitas pessoas dentro – e as menos favorecidas têm que se contentar em andar em verdadeiras “latas de sardinha” que são os ônibus desta cidade. Os trens e as barcas são péssimos em igual proporção. Salva-se o metrô que é tão limpo quanto pouco eficiente, já que seus trens circulam em um trecho mínimo desta metrópole. E também existem as vans que, a despeito de estarem por toda parte, são tão vãs quanto sujo é o grupo que está à frente deste negócio.
Para os poucos cariocas que possuem cerca de R$ 50 mil, um serviço atualmente indispensável é o da blindagem de seus automóveis. Os que não fazem parte desta elite blindada devem se contentar em pelo menos colocar um vidro fumê por R$ 50,00. É particularmente curioso observar que a tendência do vidro fumê também já chegou aos táxis e até aos ônibus da cidade. Dizem os especialistas que são atitudes preventivas da população mais cordial do mundo – conforme pesquisa internacional anunciada recentemente - em face da violência urbana de proporções colombianas que por aqui impera. Cabe mencionar que até algumas autoridades da cidade já afirmaram que a Colômbia é aqui e, certamente, Columbine – para fazer alusão a um documentário muito festejado – também.
Outro fato digno de nota, ainda sobre automóveis e cordialidade, é que pude perceber que tanto faz se o indivíduo está numa BMW ou numa daquelas “latas de sardinha” todos jogam o lixo diretamente nas calçadas e nas ruas. As pontas de cigarro são as recordistas – seriam os fumantes menos civilizados? – mas também são lançadas nas ruas coisas como: latas de cerveja (o que não deveria acontecer com um motorista ao volante), papéis, plásticos e até casca de banana como foi um caso que presenciei em Copacabana
Um modismo muito interessante na cidade é a onda das motocicletas de baixa potência mas que são tão perigosas ou mortais como se de fossem carros de fórmula 1. A maioria de seus condutores são jovens ainda imberbes, que não usam capacete em um veículo sem placa de identificação, e que acreditam ter em mãos uma máquina inofensiva. Talvez por isso não respeitem os sinais de trânsito e muito menos as áreas que são exclusivas de pedestres como as calçadas.
Nas ruas desta cidade pude verificar a grande quantidade de pedintes e de vendedores ambulantes de toda e qualquer espécie. Pedem e vendem de tudo um pouco. Caiu uma chuva fina e já lhe cai nas mãos um guarda-chuva a preço de custo que você não imagina donde apareceu. Experimente chorar e a cidade cordial fará surgir lenços prontamente à sua frente. E assim, de súbito, também surgem balas perdidas sem que ninguém desconfie donde vieram, mas que conhecemos bem o seu destino em corpos de cariocas anônimos e até famosos.
Sobre as condições de habitação pode-se dizer que por aqui temos, em partes da Zona Sul, o metro quadrado mais caro do mundo. Mas na própria e cara Zona Sul também existem muitas ocupações informais nas encostas dos morros. São as chamadas Favelas. Para quem pensa que a favela é um problema recente desta grande e injusta cidade, cabe informar que a primeira delas já completou um século de uma excludente existência. A cidade hoje já possui mais de 600 favelas, o que se fosse um concurso também seria a campeã mundial.
A chegada na cidade é muito feia e amedrontadora pois temos que passar pelas perigosas Linhas Vermelha e Amarela que, rodeadas de favelas, fazem daquele trecho um imenso barril de pólvora. Até um ônibus da Polícia já foi tomado e tombado por ali. Mas todos podem perceber que a maioria dos habitantes destes locais é composta por gente de bem e do bem que, paradoxalmente, não sabem se chamam a polícia ou se chamam o ladrão.
Ao final deste belo dia de outono, não esquecendo da minha momentânea condição de viajante por um dia, fui apreciar o pôr do sol mais bonito do mundo nas areias de Ipanema. E pude perceber que apesar de tudo viver nesta cidade ainda vale à pena.
notas
[artigo originalmente publicado na revista eletrônica Viver Cidades <www.vivercidades.org.br>]
sobre o autor
Antônio Agenor de Melo Barbosa é arquiteto e professor de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ.