Um arquiteto de mente lúcida e olhar atento não há de passar incólume a uma visita à Casa Cor 2004. O evento ocupou a residência oficial do governador do estado, realizando intervenções arquitetônicas, paisagísticas e de decoração, tendo cada ambiente da casa sido desenhado por um profissional diferente. O mérito da exibição, no dizer de seus organizadores e de representantes do governo estadual, reside na permanência, após a conclusão da mostra, das benfeitorias realizadas, como uma contribuição ao patrimônio público. O objetivo, entende-se, é que a edificação se torne mais adequada à recepção de visitantes oficiais.
Vejo, no resultado deste arranjo, uma infeliz deturpação de conceitos elementares da arquitetura, tais como unidade de linguagem, ajustamento dos ambientes e materiais às suas funções e ordenamento dos fluxos. Percebe-se na mostra a inadequação de alguns dos espaços aos seus futuros usos, tendo em vista seu dimensionamento e o desenho do mobiliário. A exemplo disto, a cozinha principal, por seu porte, se aplicaria às necessidades de uma família pequena, e não ao preparo de banquetes oficiais, como os que se presume serão realizados na mesa da sala anexa. Por sua vez, os materiais adotados e os apetrechos tecnológicos exibidos – e não o espaço – são os verdadeiros expoentes da mostra, evidenciados por seu alto custo e caráter exótico.
O patrocínio dos fornecedores parece ter ditado as decisões de projeto – acima de qualquer aspecto funcional. Especial desapuro foi dado aos banheiros, posto que se esqueceu serem lugares essencialmente dedicados à higiene pessoal. Num mesmo ambiente se encontram um box para chuveiro feito de contas de vidro suspensas por fios (quem vai enxugar todo o banheiro depois do banho?) e uma banheira que fala quatro línguas (!). Um outro ambiente nos sugere perguntar – de que forma um lavabo em forma de jangada torna o “lavar-se” mais agradável? As propostas trazem em si uma patética vontade de parecerem engraçadas, como uma piada materializada no espaço. Não se tratam, muitas das intervenções, de soluções formais e funcionais para determinados problemas e atividades humanas (em outras palavras, arquitetura), mas exercícios frívolos de aplicação de materiais e equipamentos, tantos quanto forem possíveis, nos exíguos ambientes. Cada projetista, afinal, tem que aparecer e se projetar (e há uma indisfarçada ironia nesta frase).
Tais considerações podem ser facilmente ignoradas quando se analisa o evento sob a perspectiva de uma mostra efêmera voltada para um público de alto poder aquisitivo e baixa formação cultural – de que outra forma se explica um ambiente voltado para o repouso do cachorro, com televisão, sofá e esteira rolante? Os devaneios e as veleidades criativas, sob este ponto de vista, são permitidos. Desta feita, entretanto, pretendeu-se fazer uma intervenção permanente num imóvel de destacado significado público, com a presunção de representar a legítima produção cultural cearense, sendo portanto intoleráveis tais desacertos. Muito se falou, por ocasião deste evento, da “cearensidade” expressa em seus espaços. A meu ver, a intenção de materializar este jeito cearense de viver, no afã das soluções fáceis e de rápido apelo visual, voltadas para o turista, resultou algumas vezes caricato e, mesmo, cenográfico. Há exceções, é preciso dizer. Não se trata de apontar nomes, mas fazer ver aos arquitetos e ao público em geral este arranjo ruim que nos é apresentado como uma abordagem correta da prática arquitetônica e que, por vezes, não é discutido, dada a farta cobertura e o apoio da mídia ao evento. O somatório de diferentes intervenções, ao mesmo tempo, numa mesma edificação não resulta num conjunto harmônico e bem resolvido. A venda fracionada deprecia o projeto arquitetônico, produzindo não mais que uma colcha de retalhos – cara, no caso.
Uma outra questão que se nos apresenta é a capacitação e a responsabilidade técnica dos profissionais envolvidos no evento. Estes são, em sua maioria, ou arquitetos, ou designers de interiores, ou decoradores. É preciso deixar claras as competências de cada uma destas terminologias. Arquiteto é o profissional, graduado em curso de nível superior, capacitado a elaborar projetos arquitetônicos (inclusive os de arquitetura de interiores). O designer é o profissional, também graduado em curso de nível superior, capacitado a elaborar projetos de desenho industrial, sendo o designer de interiores uma variação (ou especialização) desta atividade, sendo geralmente capacitado através de cursos de curta duração. O decorador, por sua vez, é o profissional que se dedica à ambientação dos espaços, caracterizada pela escolha e disposição de mobiliário e objetos e definição de materiais de acabamento. Não se exige formação específica para a sua prática, ainda que existam cursos de aperfeiçoamento nesta matéria. Entre os não-arquitetos, na mostra, a predominância de profissionais ditos “designers de interiores” nos faz presumir que todos estes profissionais têm efetivamente a necessária formação para exercer sua atividade. De outra forma, utilizam erroneamente o termo “designer”, o que demonstraria talvez uma surpreendente ocorrência de autodidatas em nosso estado ou, mesmo, a ignorância do significado do termo, motivada pelo apelo das palavras estrangeiras.
Por sua vez, a responsabilidade técnica pelas obras, atestada pelo CREA – Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura, se restringe aos arquitetos. Nos causa inquietação, portanto, a existência de obra arquitetônica, na mostra, em cuja ficha técnica não se lê o nome do profissional tecnicamente responsável. Aponta-se a autoria de projeto arquitetônico, neste caso específico, a profissional não-capacitado. Se há um profissional responsável de fato, a omissão de seu nome se torna de todo inexplicável, suscitando mesmo a impressão de que profissionais não-capacitados podem, livremente, elaborar projetos arquitetônicos, muitas vezes amparados por profissionais capacitados que assumem a responsabilidade pela obra (vulgarmente conhecidos por “caneteiros”), numa clara desvalorização da atividade. É preciso que o Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura também fiscalize e puna tais posturas, e não somente aos profissionais a ele vinculados, quando não ocorrer a anotação de responsabilidade técnica.
A condição em que se realizou este evento demonstra, por fim, a falta de compromisso da gestão pública com os concursos públicos de arquitetura. Trata-se de um evento privado, em que profissionais e empresas expõem seus trabalhos e produtos em um edifício público, alterando-o, com contestáveis retornos material e imaterial ao Estado e à sociedade – à revelia de qualquer critério racional de seleção de profissionais e fornecedores. Esta promiscuidade entre interesses públicos e privados, tão danosa à coletividade, pode ser observada in loco, na mostra. Através de um prosaico exemplo, já desde seu exterior, poder-se-á perceber a apropriação do espaço público pelo privado – uma enorme empena que, do muro, avança em balanço sobre a calçada, interrompendo a circulação de pedestres naquele trecho. Definitivamente, se houve qualquer tentativa de associar a arquitetura a este evento, certamente desprezou-se o urbanismo.
sobre o autor
Tiago Fernandes Távora Veras é arquiteto e urbanista.