“O Homem a escreveu, o tempo a protegeu, a pesquisa a explicou. A nós de preservá-la”
Filosofia adotada pela FundhamDuas realidades, distantes e opostas em um mesmo local. Duas épocas, duas vontades, dois anseios, dois objetivos e dois direcionamentos de como encarar um mesmo lugar: A Serra da Capivara localizada na cidade de São Raimundo Nonato, Piauí, Brasil.
Ano 2005: noticiado, em alguns veículos de grande alcance (jornais, revistas e televisão), o conflito pela terra. De um lado sem-terras, agricultores e o secretário de Políticas Públicas da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Piauí (Fetag), Antonio Soares; do outro a Fundação Museu do Homem Americano (Fundham), ONG que administra o Parque da Serra da Capivara em co-gestão com o Ibama e o Ministério de Cultura. A terra em questão: 1.291 quilômetros quadrados que formam o Parque Nacional da Serra da Capivara que tem seu valor tanto pelos sítios arqueológicos que sustenta quanto pela vegetação nativa formada por rochas areníticas e flora/fauna da caatinga ameaçada de extinção.
O resultado desse conflito é um só: animais humanos levando animais em extinção (como tatus e tamanduás) mortos ilegalmente nas costas; grupos de agricultores promovendo queimadas para iniciar plantio dentro dos sítios arqueológicos; grandes paredões contendo belíssimos desenhos rupestres cobrindo-se com a mais delicada, fina e refinada película de fuligem negra formada pela queima de pneus; técnicos do Incra descrevendo a terra que sustenta a história do homem como um local com “solos arenosos, mas capazes de produzir caju, mandioca e feijão, por exemplo além da região ser propícia para outras atividades como a apicultura” (Paulo Gustavo de Alencar, coordenador da Divisão Técnica do Incra no estado).
Para finalizar o quadro temos mais dois fortes agravantes: os repasses de recursos para o Parque não aconteceram durante todo o ano de 2004 devido a cortes de gastos e burocracias do governo e a Fundham conta ao todo com 79 funcionários e três servidores do Ibama para dar conta de toda a sua imensidão de quilômetros quadrados para proteger, gerenciar, administrar e manter esse Patrimônio Natural da Humanidade (título concedido pela Unesco).
Este texto, não está aqui para discutir a questão agrária do país, não está aqui para julgar a política do movimento sem-terra. Não, definitivamente não. Que o país precisa discutir esse assunto é fato, mas o que não falta são registros de excessos cometidos por trabalhadores sem-terra, sob a justificativa de que tudo vale na luta por um pedaço do solo.
Segundo a Revista Época do dia 7 de Fevereiro, “uma reunião realizada na quarta-feira 26, em Brasília, pode encerrar a polêmica. Após três horas de negociação, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, o presidente do Incra, Rolf Hackbart, o presidente do Ibama, Marcus Barros, e a presidente da Fundham, Niède Guidon, teriam chegado a um acordo. Ficou acertado que a ministra visitará Parque Nacional da Serra da Capivara na semana pós-Carnaval para a assinatura de uma portaria criando o tal corredor ecológico. De sua parte, o Ibama comprometeu-se a regularizar o repasse de recursos para a manutenção do parque. O Incra vai estudar um modelo de assentamento que retire os trabalhadores das áreas de preservação”.
Mas aqui vai a pergunta: quando tudo isso vai ocorrer? E até que essas promessas se concretizem, que artifícios serão feitos para resguardar, respeitar e preservar essas áreas? Porque isso acontece? E porque devemos preservar esse local?
Ano 2000: um grupo reduzido de alunos da Faculdade de Arquitetura da Puc-Campinas, acompanhado de duas professoras vai para uma cidadezinha do Piauí chamada São Raimundo Nonato, localizada a 500 quilômetros de Teresina. O motivo é claro e bem definido: estudar os desenhos rupestres no Parque Nacional da Serra da Capivara, local formado por 735 sítios arqueológicos, com artefatos de pedra polida e cerâmica, além de 40 mil pinturas catalogadas nas suas rochas dentro de um parque cuja criação data de junho de 1979.
Lá realmente encontra-se farto material para pesquisar, aprender e perguntar. As inscrições rupestres do local são conhecidas e respeitadas em todo o mundo. O Brasil tem o maior museu a céu aberto e poucos sabem disso. Gira em torno de 10 mil pessoas o número de turistas que desembarcam anualmente em terras piauienses em busca de conhecimento, de história, de resgate e de aprendizado. Porém a maioria dessas pessoas não fala português.Um dado importante para este local não receber mais estudiosos e turistas em geral é o não atendimento a um peito da Fundham, de 1996, pedindo recursos para a construção de um aeroporto na cidade.
Outra questão importantíssima que temos que aprender com a Serra da Capivara é a relação da Fundham com a comunidade local. Niède montou uma verdadeira fábrica de produção de talentos na região. Além de ter criado centros de saúde e de apicultura, a Fundham trabalha com as pessoas da comunidade, dando cursos e incentivando o estudo, transformando assim mão-de-obra local em mão-de-obra especializada. A maior fonte de renda para as famílias do entorno da região é o artesanato; para isso foi criada uma escola profissionalizante direcionada em manufaturas em cerâmica. Os restauradores das tocas também vieram de berço local. Os guias estudam línguas como o inglês e o francês para melhor atender seus público alvo. Assim, envolvendo pelo menos um integrante da família com o Parque, Niède controla a toque de mão-de-ferro a preservação do espaço (envolvendo a população com o local, dando trabalho e conseqüentemente dinheiro para as pessoas, a conscientização de que preservar é mais fácil de ser digerida).
Mais não é só isso que nos ensina aquele lugar. Ensina também que às vezes vestimos a carapuça de “terceiro mundo” e nos acomodamos muito com ela. Lá, envolto a tantos desenhos e tanta tecnologia avançada para transformar pequenos pedaços de pedra em armas, paredões em registros históricos que percebemos que já fomos “primeiro mundo”. Hoje, se somos terceiro, somos também porque queremos.
O trabalho feito no local para receber os turistas também tem que ser louvado. Passarelas de madeira, caminhos de pedra, luz na hora certa, na quantidade certa, do jeito certo são encontrados no Parque. Nada é supérfluo, nada está lá por acaso. O respeito com a natureza é máximo e seguido com uma força projetual impressionante.
Além de desenhos já bastante conhecidos do local, o que mais faz a gente gostar de lá, são os ensinamentos que as pessoas nos dão. Com Seu Nivaldo e Dona Carmelita, que com toda simplicidade deliciosamente nordestina nos contaram que tinham recebido, como homenagem pela dedicação a esses registros humanos de valor inenarrável, uma escola para a comunidade com seus nomes. Seu Nivaldo chorou. Pediu desculpas, nos contou que era analfabeto e que não sabia ler a placa de homenagem. Vale apenas um adendo aqui: Seu Nivaldo era o “mateiro” oficial de Niède Guidon, tendo sido responsável por encontrar diversas tocas com desenhos rupestres.
Esse lugar é assim: nunca se imagina em ir para lá, mas quando se vai, não acredita que quase ninguém o conhece. Quantas vezes a gente faz sonhos que não se cumprem, e de repente um sonho não sonhado se torna a melhor realidade? Esse conceito carrega a sabedoria que nós (os poucos alunos e professoras Mirtes Luciani e Vera Luz) entendemos: é mais importante deixar sua marca pelo que se fez do que pelo se sonhou. E a maior realização não foi somente enxergarmos que o silêncio é, muitas vezes, a melhor resposta, mas que juntos – família Piauí – fomos e somos muito mais do que 19 – Alan, Amadeu, Camilla, Edivan, Eron, Fabião, Fábio K., Keila, Linda, Luís Felipe, Manu, Marcelo, Marco, Mayra, Mirtes, Tatê, Tatá, Tonho e Verinha.
Em 1890, num poema sobre a vaidade humana – poema que acabaria popularizado ao ser lido por Orson Welles em Verdades e Mentiras – Rudyard Kipling imaginou uma das versões do demônio que a fantasia do homem já pôde criar. Nele – The Conundrum of the Workshops – Kipling descreveu o impulso desesperado que leva o homem a erguer torres, vencer combates, construir cidades, erguer civilizações, conhecer a verdade – até que o demônio se esgueira por trás de cada árvore, folha ou tijolo, só para sussurrar: “É bonitinho, mas é Arte?”. Aqui eu respondo: em São Raimundo Nonato, eu aprendi a arte. A arte de viver.
Nossos caminhos se cruzaram. Eu sou Antonio e ele, São Raimundo. Nós dois, queremos e precisamos contar história: São Raimundo se responsabiliza em passar a limpo a vida do homem, e eu, humildemente, em contar minha experiência com ele para quem queira ouvir.
“os olhos são para ver e o que os olhos vêem só o desenho sabe”
José da Amalda Negreiros, artista plástico português
sobre o autor
Antonio Fabiano Jr., arquiteto formado pela FAU PUC-Campinas, Jundiaí SP.