Este foi o título do workshop de iniciativa do Centro de Preservação Cultural da USP – CPC e do Instituto Polis realizado na casa de Dona Yayá CPC/USP, à rua Major Diogo 353, no dia 01 de setembro de 2006. Com a participação de Gabi-Dolff Bonekämper, professora da Universidade Técnica de Berlim, Maria Lúcia Bressan Pinheiro (CPC/USP) e Ana Lanna (IEB/USP).
A idéia do encontro foi discutir questões relativas a patrimônio histórico nas cidades que concentram memórias no espaço físico de difícil reconstrução e preservação, mais especificamente, memórias dolorosas.
Gabi além de professora universitária, está à frente da conservação de edifícios e monumentos históricos em Berlim e pôde lidar com experiências, memórias e lugares em que a guerra deixou suas marcas – como o Muro de Berlim e alguns monumentos da antiga Alemanha Oriental. A maior parte das questões discutidas no workshop partiram de um artigo da professora berlinense, distribuído antecipadamente aos participantes: “Sites of hurtful memory” (1).
O artigo, centrado no tema controverso de refletir sobre a preservação de lugares envolvidas em memórias dolorosas e difíceis, em linhas gerais, propõe que prestemos mais atenção àquilo que elegemos como bem a ser preservado, privilegiando nestes mais o seu caráter social e cultural, do que apenas seu valor arquitetônico e paisagístico.
Como definir estes objetos de memória cultural?
Para Gabi, estes objetos de memória cultural se incluem nos critérios gerais de preservação arquitetônica, onde o objeto tem de estar de acordo com as memórias associadas ao artefato, edifício ou monumento a ser preservado: os objetos de memórias difíceis são lugares, construções onde se passou algo desagradável, negativo, com o qual o lugar surge como um testemunho do evento.
O tema da dor como objeto a ser preservado, em si, já gera polêmica. E, neste sentido, a reflexão sobre estes objetos extremamente singulares sugere variações enormes das relações da memória com o lugar, especialmente ao pensarmos na história recente européia ou latino-americana, onde muitos lugares tomam um sentido de “edifícios ambíguos”: há lugares como o bunker onde Hitler ficou escondido, se fosse preservado, seria apenas mais um monumento para ser idolatrado pelos neonazistas, e ainda há outros como o Estádio Nacional do Chile, que não foi construído para ser uma prisão, mas, num “curto período de tempo”, era usado para tal fim.
Diante destes lugares “polêmicos” de memórias difíceis, a autora também propõe que tenhamos a prática de sempre fazer três questões básicas e fundamentais:
1. Por que deveríamos preservar estes bens se eles causam desconforto a pessoas que não querem mais lembrar de determinados acontecimentos ligados a eles?
2. Que tipo de informação eles proporcionam que não pode ser avaliável em outro tipo de registro como: livros, testemunhos, filmes e vídeos?
3. Por que e como estes lugares poderiam produzir uma herança material a ser conservada?
Lugares de memórias difíceis, tais como os relacionados à Segunda Guerra Mundial, sugerem lembranças que muitas pessoas gostariam de esquecer, vítimas e algozes. Porém, é necessário fazermos um mapa topográfico e humano amplo destes a fim de decidirmos da forma mais contextualizada possível o seu futuro destino, sejam eles restaurados ou demolidos.
Há lugares que não necessitam existir em seu registro físico, e livros, filmes e documentos, podem dar conta de suprir suas memórias. Mas há outros, que podem “falar por si”, e conseguem chegar como lugares de memória às gerações mais novas, as quais não necessariamente passaram pelas agruras de outro tempo. No caso das novas gerações da Alemanha, o que pode significar preservar/revitalizar lugares referentes à Segunda Guerra Mundial, quartéis onde foram guardados documentos secretos da SS em Berlim, barracões vazios em campos de concentração espalhados pelo interior do país? Tudo depende da forma de abordar estes lugares. Não basta apenas que eles permaneçam existindo, algo tem que lhes dar sentido para que o registro histórico de seu passado possa disparar aquilo que Freud afirmava como saudável e libertador para seus pacientes acometidos por traumas: re-visitar os lugares de memórias dolorosos e talvez, diante deles, libertar-se de um passado que vive a imbricar-se no presente e nas expectativas de futuro. Para as novas gerações, talvez este passado difícil e nebuloso, não seja o duro trauma vivido pelas vitimas dos tempos da guerra, em seu lugar sobrepõe-se o silêncio, ausência de diálogos e fatos diante de um passado recente que não se vê e nem se visita, mas de alguma forma, permanece no presente como algo, ao mesmo tempo, fantasmagórico e impenetrável.
Mapeando a cidade de São Paulo
Em São Paulo, estes lugares de memórias difíceis ainda estão por ser mapeados. De antemão, o workshop em um pequeno tour pela cidade no dia 02 de setembro, apontou alguns ligados à história mais recente, como DEOPS onde presos políticos foram torturados, hoje um espaço de exposição (Estação Pinacoteca), o extinto Presídio do Carandiru, parte do Parque da Juventude e o Portal do Presídio Tiradentes. Ou mesmo o local onde ocorreu o workshop, a casa de Dona Yayá, que mantém em seu registro arquitetônico aspectos da construção antiga com adaptações e anexos ligados ao confinamento psiquiátrico da sua última moradora.
Sobre a casa de Dona Yayá, a professora Ana Lanna contribui com a discussão falando um pouco de sua experiência pioneira de revitalização do imóvel da USP, o qual por muitos anos recebeu inúmeras propostas e projetos de revitalização que até o ano de 2003 não vingavam.
Dona Yayá, a última proprietária da casa, foi uma mulher rica que num determinado momento da vida enlouqueceu. Para seu tratamento, os médicos resolveram montar uma estrutura de confinamento psiquiátrico dentro de sua casa.
A execução do restauro finalizada em 2003, buscou oferecer ao visitante os vários registros de construção da casa antiga e parte da estrutura arquitetônica ligada ao confinamento psiquiátrico. Porém, o que chamou atenção no depoimento de Ana Lanna não foi o restauro em si, mas a forma como após a finalização das obras, a casa foi aberta ao público.
Na região do Bixiga todo mundo conhecia o imóvel, como a casa da louca, um típico lugar do espanto. Diante de uma legenda tão assustadora que envolvia o lugar, o que poderia ser feito na sua nova ocupação, abordar o assunto da loucura logo de chofre e ir tentando desfazer a legenda, ou talvez silenciar um pouco quanto aos fantasmas e as questões psiquiátricas que envolviam o lugar, e ir colocando para a casa novos sentidos de existência? A opção da equipe que abriu os portões da casa, foi proporcionar atividades que não estivessem diretamente relacionadas com a loucura.
Hoje a casa de Dona Yayá combina de forma instigante o seu passado com um presente bastante dinâmico. Aos domingos seu quintal é ocupado pelas crianças e por atividades ligadas aos moradores do bairro, durante a semana também se pode ver movimentos noturnos na casa que nada mais tem a ver com os legendários fantasmas dos outros tempos. Nos seus salões são oferecidos cursos, palestras e workshops ligados a preservação histórica. Até os moradores mais antigos já voltaram a visitar a casa e falar coisas de Dona Yayá que pouco se sabia até então, como as grandes festas e comemorações que foram realizadas ali.
Os gritos de Dona Yayá de fato não cessaram, ainda ressoam nas memórias e na legenda, porém agora são excertos de um concerto para várias vozes. A casa que até então era do espanto, é mais para usar do que para assustar. E isto acredito eu, foi o suficiente para amansar os fantasmas e produzir para o lugar um típico final feliz...
Poderíamos incluir muitos outros lugares de memórias difíceis na cidade. Num vôo particular, colocaria na lista o Minhocão, o elevado mais controverso da cidade, inaugurado nos anos 70 pelo prefeito Paulo Salim Maluf. E ainda alguns lugares menos visíveis. Os relacionados a história da escravidão, como a Igreja dos Enforcados e dos Aflitos no bairro da Liberdade, que em seu subterrâneo guarda as memórias do extinto cemitério dos Aflitos, vala comum de muitos negros escravos.
Porém, o que parece de fundamental importância neste rápido registro de experiências e reflexões sobre lugares de memória difícil, é de fato começarmos a olhar a paisagem urbana de São Paulo, seu espaço construído, em seu conteúdo humano e histórico. Melhor ainda, como possibilidade de memórias que cada lugar oferece e, de que maneira podemos facilitar para que estes registros venham à tona aos habitantes desta mesma cidade – de memórias difíceis sem dúvida - mas ainda assim, pensáveis e possíveis.
[artigo publicado originalmente no blog do VerSão Paulo, 04 dez. 2006 <www.carbonoquatorze.com.br/versaopaulo>.]
notas1
O artigo "Sites of Hurtful Memory” apresenta vários lugares de memórias difíceis, não apenas na Alemanha, mas também no Chile e na Argentina. O texto foi publicado em Conservation. The GCI Newsletter, volume 17, Number 2, 2002. Há também alguns livros que tem a colaboração de Gabi-Bonekämper como Materiel Culture: the Archaeology of 20th Century Conflict (2002) e Patrimoine européen des frontières (2004).
sobre o autor Paula Janovitch, editora da Carbono 14, chefe da seção de divulgação e pesquisa do Departamento de Patrimônio Histórico de São Paulo.