Boa nova: estão implodindo Brasília!
Calma. Para os mais mordazes críticos, não se trata da cidade toda, ainda. Apenas uma obra irregular, um hotel ousadamente construído na beira-Lago (Paranoá), há aproximadamente 20 anos.
Implosões são eventos barulhentos que são recebidos em silêncio pela maioria dos críticos e teóricos de arquitetura e urbanismo – assim como demolições “a picão” ou desabamentos. Nada a ver com a arquitetura que realmente interessa. Nada a ver? Creio que não. Uma das demolições mais celebradas da história crítica da arquitetura contemporânea foi a dos 33 blocos (de 11 pavimentos cada, espalhados em nada menos que 23 hectares de área de parques arborizados, como prescrevia a Carta de Atenas) do conjunto Pruitt-Igoe, em 1972. É antológica a evidência dada ao fato por Charles Jencks, na obra The language of post-modern architecture, de 1977: ele afirmou que essa demolição marcou o fim do Movimento Modernista dos CIAM.
Como se sabe, esse conjunto de habitações multifamiliares, como se diz, feito para os programas habitacionais destinados a abrigar famílias de baixa renda, projetado em 1951 pelo mesmo arquiteto do World Trade Center, Minoru Yamasaki (que mereceria o Pritzker das Demolições de Maior Visibilidade e Impacto de Todos os Tempos, mas a Union Internationale des Architects – UIA, nunca teria coragem para tanto), foi premiado por suas elevadas qualidades arquitetônicas, pelo poderoso American Institute of Architects, em 1957. Seu exemplo vale a primeira aula de um bom curso sobre Avaliação de Pós-Ocupação. É uma excelente ilustração de como as arquiteturas podem dar muito errado, especialmente quando são concebidas e premiadas por arquitetos que mal conhecem o uso e os usuários – para não falar dos que se recusam a conhecê-los.
A demolição do hotel situado a beira-lago não se relaciona com o Pruitt-Igoe nesse sentido: não foi obra premiada, não teve a iniciativa do governo, nunca foi posto ao uso. Talvez viesse até mesmo a ser um bom hotel. A única semelhança possível é o conteúdo explosivo eficientemente colocado em suas fundações, pilares, lajes, amplos halls e promenades suspensas.
O problema desse hotel implodido é que burlava todas as normas já pensadas e estabelecidas para as margens do Lago. Uma primeira questão a ser colocada é: como empresários, pessoas essencialmente devotadas ao sucesso de seus empreendimentos, profissionais da excelência na arte do risco calculado, podem ser tão idiotas a ponto de confrontarem diretamente as normas mais claras e básicas de uso do solo em qualquer cidade minimamente constituída, da atualidade, no presente estágio civilizatório?
Como se sabe, empresários empreendem, e esse tipo de ousada tentativa somente é feita quando se tem garantias de sucesso dadas pelo próprio governo da cidade. Se você sabe que mais cedo ou mais tarde a sua iniciativa será absorvida pela ordem urbana (que se deseja tanto figurar como inerentemente caótica e difusa, sem cidadania), vale a pena começar algo, digamos, “diferente”. Brasília está sob essa pressão desde 1957, há exatos 50 anos atrás, quando Lúcio Costa propõe o seu Plano Piloto, e vence o concurso de estudos de urbanismo para a Nova Capital do Brasil.
Demolindo Roriz
Mal se completaram três semanas do recém-empossado governo de José Roberto Arruda, que se diz “cria e aliado” de Joaquim Roriz (foi um de seus primeiros secretários de governo, ainda no final dos anos 1980), a quem sucedeu no governo, e uma encrenca “irresolúvel” foi decididamente resolvida. Bombou, Arruda (que promete agora a implosão da Bi-ba-bô, outro notável esqueleto brasiliense, dentre dezenas). Quando se vê tal presteza, deve-se fazer uma segunda pergunta: por quê os governos anteriores – quatro governos da Era Roriz (1987-1990; 1990-1994; 1998-2002; 2002-2006) e mais o único governo do celebrado Cristovam Buarque (1994-1998, que assistiu ao espetáculo desse hotel irregular por bons quatro anos, e não colocou um só traque-de-chio em suas fundações e promenades) – não fizeram nada remotamente assemelhado?
A resposta une elementos que nos interessam como arquitetos e urbanistas: elementos que deveriam ser estudados em cursos de planejamento urbano, ainda na graduação; que podem nos ajudar a compreender os atuais impasses de nossa profissão. A resposta diz respeito à prática real do planejamento urbano em nosso País – um assunto que as nossas escolas de arquitetura parecem ter desistido de estudar e discutir, atraídas há mais de duas décadas pelas abordagens do chamado “desenho urbano” e outras diversões “sintáticas”, “cognitivistas”, “situacionistas”, nas “arqueologias do urbano”, no afável Docomomo e outras patotadas, etc – mas isso bem que merece outra discussão. Vamos discutir a prática profissional, tal como ocorre em pranchetas reais, nos gabinetes onde habitamos, arquitetos.
Temos hoje escritórios públicos de planejamento urbano, nas prefeituras de nossas grandes cidades, que reúnem uma impressionante “inteligência de fatos e processos urbanos”, em tempo real, que deveria impedir que fatos assim, agressivos ao agenciamento dos empreendimentos econômicos (diz a lenda que “empresários desonestos prejudicam os empresários honestos”, e até mesmo os estimulam a dar os primeiros passos no mundo do crime desorganizado “por uma questão de sobrevivência nesse Brasil-cão”, mas, como se sabe, empresários empreendem, e não são de perder oportunidades), acontecessem. Empreendimentos esses que devemos examinar em termos preliminarmente econômicos – nem é necessário complicar ainda mais para entender o essencial da Babel urbana.
Uma reflexão séria deveria ser feita nesse sentido: como é mesmo a prática do planejamento e da gestão urbana em nossas cidades, na atualidade? Como os políticos conseguiram aquartelar os profissionais do urbanismo – e como esses se deixaram aquartelar, governo eleito a governo eleito –, para que a cidade fosse sistematicamente atacada por iniciativas que degradam a qualidade ambiental e de serviços? Quando o urbanismo se torna um quartel de tecnocratas, a cidade está mesmo perdida. Mas a tecnocracia veio para ficar, e é aguerrida.
Demolindo o Arruda, recém-governante e implosivo
No caso de Brasília, esse hotel demolido cresceu “à sombra” (pois se trata, essa outra monumental irregularidade, de algo muito maior e impactante que um mero hotel irregularmente construído na beira-Lago) de quase 600 condomínios irregulares, empreendidos no mesmo período de 20 anos passados.
Enormes extensões de terra pública foram griladas à luz do dia (uma ousada grilagem a cada semana-e-meia, na Era Roriz), num Distrito Federal que pode ser inteiramente percorrido e fiscalizado em uma hora, de uma ponta a outra, com boa visibilidade até nas noites de Lua Nova. É impossível fazer isso tudo sem o completo conluio e cumplicidade da máquina do governo. Aliás, o Governo do Distrito Federal asfaltou, levou luz pública e investimentos que viabilizaram (e valorizaram) boa parte dos empreendimentos de grileiros, nesse impressionante episódio da Longa Era Roriz.
(Quando presidi o Sindicato dos Arquitetos do DF, em 1989, substituindo o excelente Luis Alberto Gouvea, o Jacaré, tive de visitar o então Secretário de Obras José Roberto Arruda; a conversa foi brevíssima, mas a espera foi longa o suficiente para perceber, desde as amplas vidraças do 13º andar do Palácio do Buriti, a construção das primeiras quadras do Grande Colorado, aglomeração de uma dúzia de bem-sucedidos loteamentos clandestinos, que comprometeu dezenas de nascentes, desmatou e fez acontecer; nos anos seguintes, vários novos bairros feitos por grileiros e espertalhões ocuparam o horizonte do palácio do governo local). O primeiro gabinete a gente nunca esquece.
Arruda tem culpa no cartório, por essa bagunça urbana que está aí, no Distrito Federal.
Claro, trata-se de “apenas” um hotel implodido, mas ele representa um pedacinho do enorme universo de violências cometidas contra a nossa cidade, nesses últimos 20 anos. Neste momento, com a implosão, Arruda fez a hora. Um mau pedaço da Era Roriz virou pó. Espero que um novo planejamento urbano, sem cumplicidade com esse banditismo empresarial (empresários empreendem), surja em Brasília. Espero que os urbanistas sejam capazes de reagir e denunciar, de pensar por suas próprias cabeças, de se articular com a sociedade civil organizada, com o Ministério Público, para que a capital do país deixe de ser um dos mais negativos exemplos de atraso e irresponsabilidade ambiental e urbana do País.
Implodindo o diversionismo de nossa escola de arquitetura e urbanismo
Quem sabe isso não poderia começar com a nossa própria escola pública de arquitetura, se essa decidisse se abrir – e deixar de cooperar, com seu silêncio (ou, nos piores casos, com sua colaboração direta-ainda-que-subreptícia, com seu “notório saber”), para os atos desses governos que corrompem a nossa cidade?
Não parece factível. Pelo menos a nossa escola pública de arquitetura e urbanismo está especialmente interessada em apoiar argumentos, projetos e teorias “acima” e “fora” da política urbana que está bombando por aí, preferindo envolver-se em abordagens que evitam sistematicamente a crítica da gestão real da cidade. Quem quer comprometer-se? Qual é mesmo papel público de uma escola pública (universitária, e de arquitetura e urbanismo)? A Academia é contumaz quanto a escrever errado por linhas tão retas e bem normatizadas. Acresça-se: diversionismo é o oposto de diversidade: é desconversa e alienação, fraude e oportunismo. Essa é uma outra discussão a ser mantida. Alguém quer a palavra?
sobre o autor
Frederico Flósculo Pinheiro Barreto, arquiteto e urbanista, professor da FAUUnB