“De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas” Italo Calvino
No romance As cidades invisíveis, Italo Calvino (1) faz uma análise social da urbanidade e do viver humano refletido nela – talvez nunca antes observado na literatura não-científica. Mas não é inteiramente correto afirmar que o livro relata apenas as cidades, ou a cultura de assentamentos humanos. Marco Pólo, viajante veneziano, descreve as fantásticas cidades do império mongol de Kublai Khan. Sua descrição, perspicaz e pessoal, nos ensina um pouco sobre como o homem vive, não propriamente na cidade, mas com os sentimentos mais arraigados da existência humana. Entre o sonho e a realidade, ambigüidades se replicam numa leitura concisa, que, de certo modo, caracteriza a cidade como um sólido e poderoso significado expressivo de edificação de uma sociedade e de sua cultura.
Analisar a cidade como resultado cultural não é, obviamente, exclusividade da arte literária. Nesse contexto, é apropriado falar um pouco das idéias de Kevin Lynch, já que, além de conceber a cidade como fenômeno social, esse autor é apontado como dos mais importantes para o entendimento da percepção ambiental da urbe.
Assim como Marco Pólo, todos que freqüentam uma cidade (e principalmente aqueles que constituem a própria cidade) fazem uma leitura visual da paisagem urbana. A cidade, nesse momento, basta ser entendida como uma construção no espaço que pode ser percebida no decorrer de longos períodos de tempo e onde cada cidadão possui pontos de associação com algumas partes de sua cidade, ou seja, a materialização de uma cultura determinada pela imagem construída por seus moradores, através de seus sentidos, suas lembranças, seus sentimentos e impressões vividos diariamente num ambiente citadino. É nesse contexto que devemos nos colocar para entender a obra de Lynch, e, da mesma forma, é assim que desejo discorrer nesse texto.
Antes cabe lembrar alguns conceitos, de maneira bem sucinta, que são indispensáveis para entender Lynch, expostos em seu livro A imagem da cidade:
Legibilidade: é a facilidade com a qual as partes podem ser reconhecidas e organizadas numa estrutura coerente;
Imaginabilidade: pode ser definida em termos de uma qualidade de um objeto físico que lhe dá uma grande probabilidade de evocar uma imagem forte num dado observador. (2)
Pretendo, portanto, fazer uma breve análise da qualidade visual do centro de Porto Alegre, através do estudo das imagens mentais construídas por seus freqüentadores, enfatizando a importância da existência de marcos referenciais e de vias de passagem para qualquer assentamento humano. Analisando os desenhos, quero buscar relações na composição imagética do bairro e como essas relações auxiliam na legibilidade de tal parcela urbana. Assim, identificando as categorias de análise lyncheanas, mostrar que alguns elementos fazem parte do imaginário coletivo do bairro, demonstrando que a legibilidade e a imaginabilidade são constantes e inseparáveis, e que contribuem para o senso de orientação, para o convívio social e todas as atividades exercidas pelo homem moderno na cidade contemporânea.
A fim de analisar tais aspectos sob a ótica lyncheana, realizei uma pesquisa de baixa amostragem. Colaboradores receberam uma folha em branco e um caneta e foram instruídos a fazer um desenho ou esquema (podendo utilizar-se de palavras) para descrever, sucintamente, o centro da cidade. Nesse papel, além representar graficamente o centro, deveriam escrever nomes de algumas vias (ou assinalar as que achassem importantes) e demarcar alguns marcos referenciais, que resumem o bairro. A tentativa foi de fazer vir à tona imagens guardadas mentalmente. Os desenhos pareceram bem coerentes com a percepção que as pessoas têm sobre a área central. Algumas evidenciam uma imagem relacionada ao caos, ao tumulto, a concentração e a insegurança. Outras representam os temas típicos do imaginário citadino, que tem forte apelo cultural. Cabe lembrar que para Lynch, uma cidade poderia ser considerada coerente quando seus bairros, marcos e vias pudessem ser facilmente abstraídos em um modelo mental. Por isso o enfoque nos elementos dominantes não temáticos – uma vez que são inertes e imóveis – e a preocupação com as vias, ruas – aquilo que serve de passagem, que promove o percurso. Minha tentativa foi, de forma completamente livre e com mínima influência, colocar no papel o imaginário subjetivo dos colaboradores e, demonstrar que o modelo coletivo está muito próximo do modelo individual. Ou seja, que a cidade e, nesse caso, o centro de Porto Alegre, não é apenas o que existe fisicamente, mas tudo aquilo imaginado pelas pessoas que constituem o assentamento. Legibilidade e imaginabilidade, então, fundem-se para um entendimento mais profundo de cidade, agora sob uma perspectiva sociocultural.
A seguir farei uma leitura dos esquemas e desenhos produzidos pelos colaboradores. Convém ressaltar que a percepção mental apreendida pelo indivíduo, suas avaliações e preferências sobre o ambiente, de caráter subjetivo, mas também sociocultural, não representa toda a cidade, sequer todo o bairro. Notou-se que indivíduos que compartilham situações semelhantes no tempo e no espaço, que vivenciam as mesmas experiências perceptivas tendem a formar imagens mentais semelhantes. Para Kevin Lynch, “parece haver uma imagem pública de qualquer cidade que é a sobreposição de muitas imagens individuais” (3).
Na figura 1 observamos uma representação gráfica do que viria a ser a ponta da península, berço da cidade de Porto Alegre e de seu bairro centro. O desenho, produzido por Ricardo, 54 anos, demonstra uma visão bastante geográfica do centro. De fato, a existência da cidade está intimamente relacionada com sua geografia. A “ponta do gasômetro”, como o próprio colaborador denominou, é um marco referencial importante desde de a formação da urbanidade em Porto Alegre. Isso, entre outras coisas, demonstra a necessidade de se buscar o resgate cultural em pontos estratégicos. A Usina do Gasômetro, enraizada no imaginário da cidade, nada mais era que uma deteriorada construção abandonada na ponta da península central. Hoje, alguns anos após sua revitalização, tornou-se referência por sua localização e por sua concentração cultural. O mesmo ocorreu a outros elementos, como a antigo Hotel Majestic, e as edificações históricas de fins de dois séculos atrás, na praça da alfândega. O desenho mostra também a preocupação de Ricardo de representar a realidade (de maneira legível), numa busca de seqüenciar corretamente as vias longitudinais que compõem o centro. Ricardo disse, ao desenhar, que não lembra o nome das vias perpendiculares a essas. Ou seja, as ruas que desembocam num dos marcos referenciais estabelecidos por ele são de maior importância talvez por abrigarem maior variedade de funções ou mesmo por se tratarem de ruas que não possuem um desnível tão acentuado como aquelas que ele não representou. Em sua descrição gráfica consta ainda a rua Duque de Caxias, a rua Riachuelo, a “Rua da Praia” (rua dos Andradas), a Avenida Sete de Setembro, e a Avenida Mauá. Outro marco referencial foi o palácio Piratini.
Na figura 2 temos representado o que parece ser um largo com muitas pessoas, prédios, ônibus. O desenho, de Paula, 21 anos, pega uma parcela urbana bem pequena, mas é bem representativo de algumas áreas centrais. Lá temos setas que dizem: “prédios novos comerciais”; “sacadas juntas, detalhes nas fachadas, casas velhas, ruínas”; “calçada dentro dos prédios, colunas na calçada”; “ponto de referência: fim da linha ônibus”; “fumaça poluição (sonora, visual, olfativa)”; “camelôs e frituras”. Observamos que se trata de uma representação bem sincera do que parece o caos urbano junto aos terminais de transporte público – marco referencial eleito pela colaboradora. O centro, na visão dela, se resume àquilo que está ao redor de sua referência. Cabe, então, fazer uma análise através de três componentes: identidade, estrutura e significado. Segundo Lynch, “uma imagem viável requer, em primeiro lugar, a identificação de um objeto, o que implica na distinção de outras coisas” (4). Portanto, vale olharmos novamente ao desenho para reconhecermos que se trata de objetos físicos graficamente representados isoladamente, isto é, possuem sua individualidade inerente e podem ser entendidos separadamente. Um prédio visto isoladamente, para efeitos de análise de sua identidade, nada mais é que um objeto físico no espaço. Lynch continua: “em segundo lugar, a imagem tem de incluir a relação estrutural ou espacial do objeto com o observador e com os outros objetos” (5). No desenho o sujeito é passivo a imagem representada, portanto inviabiliza uma análise da relação espacial dos objetos com o sujeito. Porém, é possível notar uma clara relação estrutural entre os objetos, uma certa ordem compositiva (do desenho) que organiza em faixas o “bairro resumido”. Há uma linha de “prédios novos comerciais”, “sacadas juntas”, e outras de “casas velhas em ruínas” justapostas em frente aos prédios. Uma faixa de circulação, um terminal de ônibus, novamente uma faixa de circulação e uma seqüência de bancas de comércio popular. Existe, pois, uma razão formal para tal resposta gráfica. Por último, o que foi representado tem de ter para o colaborador um significado. Esse significado pode ser prático (nos terminais de ônibus se pega uma condução), sensitivo (“poluição sonora, visual, fritura”), ou emocional (caos, multidão, ágorafobia). A imagem do centro para Paula está construída, e a demonstra que, pelo menos próximo aos grandes terminais de ônibus (como o Parobé e o Rui Barbosa) há uma leitura visual subjetiva que, provavelmente, é coletiva. O estudo dos processos mentais relativos à percepção ambiental é fundamental para melhor compreendermos as inter-relações entre o homem e o meio ambiente, suas expectativas, julgamentos e condutas. Autores relatam que a falta de qualidade físico-espacial do centro urbanos, é um dos motivos do vandalismo, pois “não sem razão, os cidadãos expressam o seu descontentamento ou descuido para com o meio ambiente construído das cidades” (6). Isso constrói o par dialético de causa e efeito sobre as densas áreas centrais, desprovidas de políticas públicas de implementação de um modelo coerente e abrangedor da complexidade inerente a esses grandes centros.
Na figura 3 temos uma lista de palavras elaboradas por Guilherme, 26 anos, que demonstram um pouco da complexidade do centro de Porto Alegre. O colaborador organizou em duas colunas palavras que, segundo ele, resumem o bairro. A criação de pares de palavras com significações ora antagônicos, ora complementares, demonstra que, em sua imagem, o bairro é democrático espacialmente, apesar de existir significativos abismos sociais. Novo, velho, rico, pobre, camelô, shopping, parque, concreto, enfim: a imagem que foi construída do centro abriga tudo e todos (pelo menos espacialmente), num amálgama sociocultural.
A imagem (figura 4) do bairro formada pela colaboradora Luiza, 53 anos, foi claramente construída tomando como ponto de partida elementos não-temáticos que ela têm como referência e, a partir destes, traçado um percurso no sentido de delimitar a área central e identificar um miolo que ela delineou como caótico. Conforme Lynch, “a imagem de um bom ambiente dá, a quem a possui, um sentido importante de segurança emocional” (7). Isso, me parece, ser o contrário do que representaria a imagem de um ambiente desconexo, que gera medo e desorientação. Portanto, pode-se especular que a área periférica do bairro forma uma relação mais harmoniosa com a colaboradora e, em contrapartida, que a área mais central mostra-se extremamente ilegível. A necessidade de conhecer e montar uma estrutura coerente do nosso meio é tão importante e instintivo que tem um forte apelo emocional. Um ambiente coeso e organizado serve de referência, estrutura os pensamentos e as atividades humanas, talvez por isso os marcos referenciais de Luiza encontram-se nesse perímetro ordenado. Na conversa em que tivemos, Luiza comentou sobre duas setas que representam a “vista para o rio”, e que isso, para ela, era o mais importante no centro: poder olhar para o lago Guaíba. Segundo pesquisas realizadas no PROPUR, a percepção da importância do rio foi detectada como “latente nas mentes da população” e, entre outras coisas “acabou sendo ativada por sua divulgação na mídia, no meio técnico, no mundo político” (8). Há, evidentemente, uma relação conturbada entre a cidade, o rio e a população, alvo de muitas discussões há décadas do futuro das barreiras (Av. Mauá, muro e o próprio cais). Mesmo assim, o Guaíba parece-me ser um elemento obrigatório para a constituição da imagem (coletiva) da cidade.
Enfim, a área central de Porto Alegre guarda um volumoso acúmulo de fatos que vêm marcando sua memória e definindo seu espaço, sobretudo em questões de significado. A esquina democrática, o muro da Mauá, o Gasômetro, a “Rua da Praia”, o conjunto da Praça da Alfândega (e feira do livro). Há neles uma riqueza concentrada de referências culturais que expressam, de maneira muitas vezes bastante clara, os componentes que conformam a memória da cidade, do seu passado e também do seu presente. O centro de Porto Alegre é extremamente rico em significados histórico-culturais, pois nele estão contidas as imagens de todos os diferentes tempos da cidade. Estudar o processo cognitivo, mediante o qual estruturamos e organizamos nossa interface com a realidade é fundamental para o entendimento de nossa cidade, e nesse ponto, da imagem do espaço urbano, Kevin Lynch é referência fundamental para estudar a valorização da relação entre o homem e o espaço, entre o que é imagem e o que é real. Esse estudo é tão importante, pois, a partir dele, pode-se traçar propostas de revitalização das áreas centrais, assunto em pauta em quase todos centros metropolitanos brasileiros.
Construir uma imagem (coletiva) do centro de Porto Alegre a partir de uma amostragem tão baixa e de um trabalho de pesquisa tão breve seria um desaforo com os porto-alegrenses e uma irresponsabilidade com a cidade. Mesmo assim, esse trabalho ajudou-me a concluir que, de fato, a legibilidade é fator obrigatório para entendimento do fenômeno urbano, assim como a imaginabilidade é, de mesma forma importante, para o diagnóstico da qualidade visual de uma cidade. A estruturação cognitiva da imagem de uma cidade a partir dos elementos propostos por Lynch (marcos, superfícies, nós, eixos e margens) serve para a análise e descrição de qualquer urbanização. Talvez até para descrever “cidades invisíveis”.
notas
1
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
2
Cf. LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1998.
3
LYNCH, Kevin. Op. cit., p. 57.
4
Idem, ibidem, p. 18.
5
Idem, ibidem, p. 18.
6
DEL RIO, Vicente; OLIVEIRA, Lívia de. Percepção Ambiental: a experiência brasileira. São Paulo: Studio Nobel, 1996, p. IX.
7
LYNCH, Kevin. Op. cit., p. 14.
8
CASTELLO, Lineu. “A memória das cidades e a revitalização do Velho Centro”. In: Anais do VII Encontro Nacional da ANPUR. Recife, ANPUR, 1997, p. 37.
sobre o autorLeonardo Fitz é acadêmico do curso de arquitetura e urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.