Os políticos que administraram grandes cidades empreenderam obras de porte assinadas por famosos arquitetos. Com isso atraíram visibilidade no cenário global. Essa prática não é nova, para ilustrá-la podemos citar o mecenato renascentista ou irmos muito mais longe até ao Antigo Egito. Porém, aproximando-se de nossas circunstâncias, deve-se observar que ela adquiriu um caráter midiático, depois dos anos de 1980 e das obras de François Mitterand, em Paris.
As intervenções no Museu do Louvre, o arco de La Défense e ou Museu d’ Orsay foram fartamente fotografados, suas imagens circularam em jornais, revistas e serviram como cenários para filmes como “Até o fim do mundo” de Wim Wenders. Da mesma maneira, o museu de Bilbao foi capaz de transformar a violenta cidade basca em “Meca” de turistas munidos de poderosas máquinas fotográficas. Tudo isso surte muito efeito, como se observa na grande difusão dessa prática em quase todo o mundo.
Em sua grande maioria, essas obras foram escolhidas em concursos públicos internacionais amplamente divulgados. Essa atitude democrática abre espaço para que a criatividade dos arquitetos emerja em inovações e especulações plásticas de naturezas diversas, sustentadas por propostas tecnológicas apropriadas. Além disso, a multiplicidade de soluções fomenta o debate e a crítica, promovendo uma efervescência saudável no meio profissional e, o que é mais importante, nas pessoas comuns.
Nos últimos anos, os administradores de Goiânia esforçaram-se para que ela pudesse partilhar de destino semelhante, saindo de seu misterioso isolamento do cerrado para um lugar de destaque no cenário nacional. Os primeiros passos foram tímidos e concentraram-se nos seus jardins de praças e rótulas. Flores coloridas brotaram por todos os lugares como se pudessem amenizar as asperezas da terra goiana com inexpressivos jardinzinhos barrocos, arranjados em caprichosa geometria. As lições de nossos paisagistas, lembremos de Burle Marx e de nossa botânica Amália Hermano, não foram aproveitadas desperdiçando um conhecimento que nos poderia ser de grande utilidade.
Na década de 1980, houve a malfada tentativa do “Projeto Galeria Aberta” de “enfeitar” a cidade com painéis gigantescos, pintados por artistas plásticos locais, nas fachadas laterais de prédios. Essa opção não considerou a particularidade do espaço público, pois não se colocam painéis na cidade como se fossem quadros nas paredes de uma casa. Como se isso não bastasse e para agravar a situação, as logomarcas dos patrocinadores de tintas disputavam lugar com a assinatura dos artistas.
Mais recentemente, a iluminação do coreto e a do relógio na Avenida Goiás foram outras decisões infelizes. A luz violeta que incide sobre ambos cria uma atmosfera fantasmagórica e, em dias chuvosos, lembra-nos cenas de um filme de terror.
Mas vamos ao nosso foco principal, o Centro Cultural Oscar Niemeyer. Primeiramente, é preciso reconhecer a importância de um equipamento dessa natureza para uma capital como Goiânia, ainda mergulhada em grande isolamento e sujeita apenas às impressões vindas da cultura de massa ou alimentando-se de um excesso de regionalismo expresso em “causos” ou músicas que não se cansam de louvar as noites goianas ou as belezas eternas do rio Araguaia.
Equipamentos como esse podem permitir, se bem administrados, o intercâmbio necessário com o restante do país e com o exterior, colocando-nos finalmente para além dos “Tristes Trópicos”, inserindo-nos em vários circuitos culturais. Esperamos que seus salões e auditórios não sejam apenas destinados aos artistas locais. É claro que eles merecem, além de tratamento especial, ser acolhidos com oportunidades para que não os percamos para os grandes centros, como tem acontecido com nossos brilhantes pianistas. Assim, mais do que o espaço físico, nossos artistas necessitam do respaldo de uma política cultural que valorize os seus talentos: bons salários, bons instrumentos, boas escolas. A Orquestra do Estado de São Paulo (OSESP) é um bom exemplo, além de contar com uma magnífica sala de concertos, seus músicos são remunerados com valores justos.
No campo das artes plásticas lembremos o célebre exemplo de Chateaubriand na montagem do acervo do Masp. Foi somente devido a seus hercúleos esforços que Renoir, Picasso, Monet, Van Gogh entre outros grandes artistas tornaram-se acessíveis ao público brasileiro e, particularmente, ao paulistano. Precisamos trazer grandes mestres nacionais e internacionais para que a população goianiense possa apreciá-los. Isso é muito importante para a formação do “capital cultural” dos nossos jovens, que hoje contam com paupérrimas possibilidades de vivência nessa área, tornando-se crônicos desconhecedores das artes plásticas.
Há de se ressaltar que o velho Chateaubriant não se arvorou em ele mesmo escolher as obras que compuseram o acervo do Masp. Para isso buscou a experiência e largo conhecimento de Pietro Maria Bardi. Bons museus só se tornaram referências significativas porque contaram com curadores que associaram conhecimentos de história da arte com atitudes empreendedoras, podemos citar como exemplos os trabalhos de Maria Cecília França Lourenço e Emanuel Araújo, à frente da Pinacoteca do Estado São Paulo.
É preciso dizer que um museu difere de uma galeria de artes, principalmente porque o primeiro não pode prescindir de um acervo de peso para que sua existência se justifique e para que sua função pública seja cumprida. Portanto, mesmo um museu destinado à arte contemporânea, como é o caso daquele que se encontra no Centro Cultural Oscar Niemeyer, não deve perder de vista que a arte da atualidade tece vínculos com uma longa trajetória histórica, o que justifica a formação de um acervo relevante, e, diga-se de passagem, variado.
Quanto à futura biblioteca do referido centro cultural, seus livros devem ser escolhidos com a calma necessária para que possam ser feitas as escolhas apropriadas, atendendo a diversos interesses. Número de livros não significa qualidade e a impressão que causa é efêmera diante de escolhas inadequadas.
Agora, falemos de arquitetura! Lembremos que a obra em questão não resultou de concurso público. Aliás, esse procedimento deletério em relação às obras públicas, com raras exceções, tem sido um consenso na capital de Goiás.
Em nossa opinião, o Centro Cultural Oscar Niemeyer é uma escolha equivocada representada por uma proposição anacrônica que não articula as principais questões contemporâneas: a redução do consumo de energia, o aproveitamento das águas pluviais, o uso de materiais recicláveis e concepções espaciais flexíveis que permitam alterações e, portanto, a garantia de longevidade. Somente uma política cultural responsável e esclarecida poderá redimir o Estado dessa opção duvidosa.
Goiânia, quase cinqüenta anos depois, adquire parte da fisionomia de Brasília. Essa identidade postiça parece atender a duradoura frustração da cidade de nunca ter contado com obra de um dos mais ilustres arquitetos brasileiros, mesmo sendo vizinha da nova capital do país. Porém, essa justiça tardia tende a reforçar nossa tradição de estarmos a reboque da atualidade das discussões nas artes em geral, o que inclui a arquitetura.
Durante muito tempo acreditou-se que Niemeyer houvesse projetado, nos anos de 1950, o conjunto “Lar Brasileiro” localizado no Setor Sul. As formosas casinhas com telhados em “asa de borboleta”, destinadas à classe média, porém, tiveram sua autoria veementemente negada pelo mestre, restando-nos o vazio de termos sido totalmente destituídos de obras do arquiteto. Sem dúvida, um grave demérito e quebra de status para os goianienses.
O nome de Oscar Niemeyer, a quem não se deve negar o reconhecimento de grande arquiteto, transformou-se em uma espécie de grife cobiçada por administradores municipais ou estaduais do Brasil. A redução das obras do arquiteto a produtos turísticos começou com o árido Memorial da América Latina, construído em São Paulo no governo de Orestes Quércia, depois prosseguida com a construção do caminho Niemeyer em Niterói, o museu de Curitiba, o memorial em Palmas e, agora, somos nós os responsáveis pelo mais recente lançamento.
A intenção de inserir Goiânia em um circuito internacional de arquitetura não passa de um sonho simplório. Mesmo porque, quem conhece arquitetura e a aprecia sabe que o Centro Cultural Oscar Niemeyer expressa ideais dos anos de 1960 e, no máximo, de 1970. Estudiosos e críticos da arquitetura consideram proposições, como as desse centro, típicas da terceira geração dos arquitetos modernos. As formas escultóricas dispostas na imensa esplanada, a técnica da protensão do concreto armado e as investidas contra a gravidade pelo uso de grandes vãos não são hoje recursos arquitetônicos dignos de “tirar o fôlego”, como acontecia à época da construção de Brasília.
A mentalidade brasileira afeita ao paternalismo, advindo dos senhores de engenho, traz o ranço do culto à personalidade, o que provoca uma espécie de cegueira para o novo. Tal nostalgia envolve em uma nebulosa tudo o que desponta na atualidade. Poderíamos então indagar se estaríamos diante de um novo fenômeno: o do aparecimento de uma tradição congelada na arquitetura? Ou seria isso um sintoma de que, mais uma vez, perdemos a capacidade de nos mantermos atualizados em pesquisas, discussões e avanços tecnológicos? Grosso modo: perdemos o bonde?
Créditos das ilustrações
As fotografias feitas para este artigo são de autoria de Juliana Gomes Freitas, estudante de arquitetura e bolsista de iniciação científica do Departamento de Artes e Arquitetura da Universidade Católica de Goiás. O mapa da cidade foi trabalhado pela também estudante Isabela Gomes Ferrante.
sobre os autoresElane Ribeiro Peixoto, mestre e doutora em Arquitetura e Urbanismo pela USP, com estágio na Maison des Sciences de L’homme (MSH), Paris
Márcia Metran de Mello, mestre em Arquitetura e Urbanismo pela USP, doutora em Sociologia pela UnB