Até parece que finalmente a cidade da Bahia chegou lá no nível do Rio, cidade/ estado contra a qual, mesmo que veladamente, Salvador sempre tentou se medir: um governo ligado aos interesses de grupos religiosos não-tradicionais coincide com a era das chacinas de jovens moradores de bairros de pobres. Mussurunga é a nova Cidade de Deus.
A grande medida do que Salvador é hoje foi dada recentemente por um leitor do jornal local A Tarde que, no meio do debate sobre a retirada das pedras portuguesas do Porto da Barra, sugeria como modelo a nova orla de Aracaju. Quando o Rio de Janeiro deixou de ser referência, Salvador parecia querer olhar para Miami via Barra da Tijuca, mas hoje a referência possível parece ser mesmo Aracaju. Ou seria Belford Roxo?
O ferrorama inacabado – apelido certeiro que a população da cidade conferiu à feíssima estrutura aérea cosntruída para a linha de metrô que, caso um dia venha a funcionar depois de tantos anos em construção, não irá ter nenhum impacto sobre o trânsito urbano – faz par com um dos piores índices de ensino público do país, este condição para aquele. As barracas da orla que mimetizam o que seria uma favela linear, a área do antigo aeroclube transformada em lixo capitalista, os passeios de 1,20m de largura na área da Av. Tancredo Neves, o anseio por demolir a Fonte Nova, a espera indefinida por um telhado das baianas de Amaralina, um subúrbio de imagens menos atrativas do que aquelas exibidas na TV quando de algum ataque terrotista em Bagdá, o fim do calçamento de pedras portuguesas no Porto da Barra. Tudo pode parecer um luxo frente às chacinas, mas não é. É programático.
Faz-se serviço completo na Barra: as árvores, não só as pedras portuguesas, estão sendo sacrificadas em nome do novo calçamento. Poderiam aproveitar e exterminar os meninos de rua do bairro, e reinstalar as passarelas para caminhantes em salto alto no Pelourinho, seria um pacote de medidas de sentido reconhecível, possível de ser bastante ampliado.
Para a Barra, poderiam instalar ainda elevadores para a faixa de praia, esta poderia vir a ser azulejada, junto com a faixa de alvenaria da base dos fortes, e dessalinizadores de ar poderiam proteger os automóveis de quem por ali passa. Tudo leva a crer que o futuro da Barra está esboçado no Largo Dois de Julho, vítima de uma grande intervenção recente (anti-)cosmética.
No Rio de Janeiro não há nem nunca houve barracas de praia, nem ninguém pensaria em destruir o calçadão em pedras portuguesas de Copacabana, nem as famosas ondas, nem o trabalho de Burle Marx. E o Metrô vai do subúrbio a Copacabana.
E há dez anos atrás, quando Lisboa criou um bairro para a Expo, não deve ter havido dúvidas quanto ao material a ser usado para as grandes e generosas áreas destinadas aos pedestres: pedras portuguesas. Elas estão lá, em ótimo estado, sem oferecer barreiras a qualquer tipo de usuário. Como em toda a cidade.
Mas estas são referências muito distantes, já há muito voluntariamente perdidas. As atuais de Salvador parecem se limitar ao que há de comprovadamente ruim em outras cidades, seja Rio de Janeiro ou Feira de Santana. Entramos no novo tempo, aquele onde favela é solução urbanística e o cinismo e a indiferença apenas vão contabilizando o número de mortos em estatísticas, permitidas ou não. O tempo da completa falta de perspectiva, presente no argumento contra as pedras e aparentemente a favor dos deficientes físicos, como se não houvesse tecnologia de amortecedores para todo e qualquer meio de locomoção sobre rodas. Onde paisagem, texturas históricas, tectônicas de espaços e a vida humana não contam.
Logo não haverá árvores em Salvador, algo que acontecerá mesmo antes do grande dilúvio redentor, aquele causado pela calota polar derretida e que afogará os arranha-céus da orla que já começaram a aparecer. Há esperança.
sobre o autor
Márcio Correia Campos, arquiteto formado pela UFBA, Mestre em Arquitetura pela Universidade Técnica de Viena, Áustria, atualmente doutorando da Universidade Técnica de Muinque, Alemanha