A estrutura física do ICC – Instituto Central de Ciências, de 1962 – é uma das mais importantes obras da arquitetura brasileira. Não apenas por ser uma forma arquitetônica da autoria de Oscar Niemeyer e João da Gama Filgueiras Lima, o Lelé, mas porque sua estrutura é integralmente pré-fabricada, constituindo-se num gigantesco experimento com o concreto protendido. Essa técnica de construção possibilita que o velho concreto armado se comporte de modo aparentado ao metal. Enormes vãos podem ser vencidos por peças muito esbeltas de concreto protendido. Por exemplo: os vãos de aproximadamente 32 metros da cobertura do ICC “a leste” são efetivamente vencidos por peças de cerca de 1,20 metros de altura. Essa é uma proporção típica de estruturas metálicas bem dimensionadas. Se um vão de 30 metros fosse vencido por uma viga de concreto de armadura ordinária, a altura das elegantes vigas do Minhocão viraria robustos 3,0 metros, aproximadamente. Ou seja, ocupariam o espaço de um andar inteiro!
O que são vigas protendidas
O raciocínio por detrás de vigas protendidas é o seguinte: os cabos de aço que formam a armadura dessas vigas são previamente tracionados por equipamentos especiais, gerando tensões internas da ordem de toneladas-força. Em volta desses aparelhos que geram essa tensão especial coloca-se uma grande forma (metálica, no caso do ICC), na qual será derramado o concreto de alta resistência. Esse concreto começa quase imediatamente a endurecer, iniciando um processo de “cura” que deve permitir que, em dias, o aparato de macacos hidráulicos que opera a criação das enormes tensões nos cabos de aço seja totalmente retirado. Agora, integrados à viga, os cabos de aço exercem a tensão criada artificialmente sobre o próprio concreto, fazendo com que a peça protendida trabalhe à compressão. Ou seja: o jogo estrutural “ordinário” de tração e compressão que ocorreria nas seções inferior e superior das grandes vigas “relaxadas” é quase anulado nas vigas “tensas”, protendidas. Um novo jogo de forças estruturais está em ação. Em especial, as grandes forças de tração que ocorreriam na parte inferior da viga são contra-arrestadas até o ponto de serem sobrepujadas pela compressão provocada pela protensão dos cabos de aço. Predomina então a compressão na face inferior desse tipo de estrutura! Isso permite que essas vigas se comportem de um modo especial – pelo menos em termos do tipo de resistência que as vigas metálicas oferecem aos esforços da flexão ordinária.
Contudo, isso não acontece gratuitamente. No interior dessas engenhosas vigas, cada molécula componente da mistura do concreto trabalha perto do limite, à compressão. Quanto mais delgada a viga – como no caso das belas vigas do ICC – maior a responsabilidade de cada uma dessas micro-ligações (e são micro mesmo, pois o concreto apresenta uma complexa estrutura molecular interna, repleta de micro-cavidades e ligações que dissipam eficientemente essas cargas de compressão).
Uma estrutura extraordinária
Quase 50 anos depois de executadas e montadas em seus lugares, essas vigas praticamente não apresentam fissuras em suas faces inferiores. Isso demonstra a perfeição técnica de seu cálculo e execução. Há poucas evidências de infiltração de água em seu corpo – apesar de essas vigas serem, literalmente, as “telhas” do ICC, formadas que são como um T, em que duas “abas” quase planas se estendem a partir da viga propriamente dita, cobrindo o maior prédio da UnB. Elas repetem-se centenas de vezes ao longo de duas longas faixas de 700 metros, uma com cerca de 24 metros e outra com cerca de 32 metros de vão livre.
Talvez o erradio convívio dos nossos adventícios dirigentes com essas extraordinárias estruturas tenha levado a uma relação desrespeitosa, que pode ser verificada no tempo presente. Quando eu apresento essas estruturas a meus estudantes, eu falo que foram feitas por “Titãs” do passado, quando grandes arquitetos e engenheiros trabalharam juntos, e pensaram de forma realmente inovadora e corajosa, sem os carreirismos que ocasionam a atual perda de rumo do papel que a escola pública de arquitetura desempenhou no passado da própria UnB. Há mais ciência nessas estruturas que nos currículos de Reitores que há por cá.
A decadência dos contemporâneos
Vemos, em nossos atuais dirigentes, exemplificações espantosas da ignorância das gerações que vieram “depois-dos-Titãs”. Na mitologia grega, as gerações dos homens decaem em qualidade e valor, na medida em que se sucedem. Essas poderosas vigas vêm sendo estupidamente perfuradas nos últimos anos, de forma impensada, não planejada, inconseqüente. Nos últimos anos, a Prefeitura da UnB, as direções de Institutos e Faculdades abrigados no Minhocão, e suas centenas de pequenos prestadores de serviços – até mesmo professores, funcionários e estudantes – têm nelas metido milhares de parafusos para pendurar suas calhas técnicas, suas fiações, suas luminárias e lâmpadas, seus forros e tubulações particulares de ar condicionado, seus ventiladores, entre outros trastes, nessas vigas protendidas.
Façam suas contas: são 231 vigas no lado “A” e 231 vigas no lado “B” do Minhocão. Cada portentosa viga protendida tem, hoje, pelo menos 2 perfurações. São cerca de um milhar de perfurações, e contando.
Não há limites estabelecidos quanto a isso. Na verdade, a perfuração dessas vigas protendidas deveria ser terminantemente proibida, sobretudo em sua seção portante, na base do T.
Uma perfuração leva a outra. Um parafusinho é seguido por um parafusão, não há limite nem controle, até agora. As delgadas vigas protendidas do Lelé ganham imprudentes piercings que arrebentam sua leveza, sua elegância. É impressionante que a própria Direção da Faculdade de Arquitetura piore tudo, e tome a iniciativa de colocar umas estranhas caixas metálicas, curiosas e inúteis gaiolas, no fundo dessas vigas, bizarramente penduradas nelas. É inacreditável, a inépcia. As inovadoras gaiolas da FAU também perfuraram as outras, elegantes vigas que estruturam o piso superior da parte que nos cabe no ICC. Furam tudo, os expertos. As fotos que seguem em anexo mostram alguns trechos dessas perfurações, na própria Faculdade de Arquitetura da UnB. Lições de arquitetura.
(Ah, não: a culpa não é dos dirigentes, é dos “peões” que obedecem às suas ordens; Ah, sim: a culpa é da Prefeitura do Campus, somos “apenas professores” de uma certa Faculdade de Arquitetura, como já me disseram. Se as vigas da própria Arquitetura lhes cair nas suas cabeças moles, esses bons professores não têm nada a ver com isso. Isso me lembra o atual Reitor, que também não parece aplicar seus conhecimentos profissionais de formação ao bem-estar da comunidade universitária. Que não discute o que interessa).
Soluções elegantes
Há soluções elegantes para a passagem do que quer que seja, ICC a fora e ICC a dentro. Senhores Dirigentes: Instalem corretamente as instalações e equipamentos! Procurem soluções que não sejam brutais, desinteligentes! Acabem com essas gambiarras, que materializam a vossa capacidade técnica, vossa visão de instituição. Colegas professores, exerçam sua capacidade de veto: impeçam que as perfurações nessas vigas continuem. Pessoalmente, a minha capacidade de veto por aqui não vale um buraco na viga.
Essa situação nos leva a uma hipotética situação de iminente desastre – e também de evidente demonstração de negligência técnica. Se uma viga dessas se romper, matará pessoas. E uma delas se romperá, com certeza, se irresponsavelmente continuarmos a abrir buracos e mais buracos em suas seções estruturais.
Fica a questão: quantos furos podem ser abertos em vigas protendidas dessa extensão, com quase 50 anos de idade, antes do previsível colapso? Será que o arquiteto Lelé, precavidamente, antecipou a selvageria dos pósteros, e criou uma segunda armadura anti-perfurações nessas elegantes vigas? Duvido, mas alguma ciência pode ser extraída da negligência dos atuais dirigentes universitários. Há um inusitado experimento em andamento.
Desafios e trabalho e saúde
Outra questão: aceitam o desafio de levar o experimentado arquiteto João da Gama Filgueiras Lima, o Lelé, a examinar os danos já feitos às vigas protendidas – que projetou e dirigiu a execução e montagem, há quase 50 anos atrás? Fico curioso por saber o que esse grande profissional dirá.
A atual geração de professores-arquitetos é capaz de fazer dezenas de lacrimosas cerimônias de homenagens ao excelente Lelé, mas parece incapaz de zelar pela útil obra que realizou, por uma só dessas vigas! Rituais universitários vazios de significado ocultam omissões verdadeiramente perigosas. Um viva aos idiotas eméritos. Um viva aos honoris sine vera causa. As vigas carcomidas pelas exigências cotidianas bem simbolizam a alienação da Universidade Nova.
(O que dirá uma geração futura e eventualmente mais conscienciosa? “Essas pessoas eram melhores quanto ao cerimonial das aparências do que quanto à inteligência dos fatos: faziam homenagens aos grandes construtores do passado, e em seguida metiam rebites nas elegantes vigas protendidas destas jovens ruínas, sem piscar”).
Fica também o desafio de solucionar elegantemente o problema do pendura-calhas e gaiolas sem parafusos e buracos nas estruturas. Vamos pensar universitariamente! Isso aqui é uma Universidade. Chega de gambiarras. Quem é o Responsável Técnico pelos parafusos e buchas dessas vigas do ICC? Esse profissional é forte candidato ao Prêmio Estádio Fonte Nova (cujo concreto caiu de podre no início de 2008) de Manutenção do Concreto Protendido.
Devemos lembrar que o concreto armado é um material relativamente jovem, cujas estruturas têm no máximo 200 anos. E que os edifícios que construímos em Brasília possuem, efetivamente, a necessidade de monitoramento, de conservação, de manutenção. Possuem “prazos de validade” de cerca de um século, ou menos, dos quais nos aproximamos inexoravelmente – e com maior rapidez do que esperamos, no caso das estruturas que envelhecem sem cuidados, agredidas, mal mantidas. Quanto mais “ousada” a estrutura, quanto mais exposta a sua armadura, quanto mais calculada para limites próximos de sua ruptura, menor o prazo de validade a ser prudentemente atribuído.
Em especial, o concreto armado, uma vez perfurado, pode iniciar processos de infiltração e corrosão de suas estruturas portantes, de suas armaduras. Nesse sentido, é crucial conhecer os estudos empreendidos pelos professores Teatini e Nepumoceno, da Faculdade de Tecnologia da UnB, com respeito ao estado crítico do ICC. Sugiro que a ADUnB – Associação dos Docentes da Universidade de Brasília consulte os autores e o Ceplan para que, com sua autorização, seja possível ter esse estudo no nosso website sindical. Acredito que diz respeito à nossa segurança.
Não manter é destruir, nesse caso, e em outros. Devemos, sobretudo, perguntar aos nossos dirigentes e arquitetos: o que os senhores estão fazendo com as (nada metafóricas) vigas desta Universidade? Gostaria de conhecer sua resposta.
Trabalhamos debaixo delas, e quereremos continuar a trabalhar. Com alguma segurança.
(artigo originalmente publicado no website da Associação dos Docentes da Universidade de Brasília no dia 06 de abril de 2008 no link www.adunb.org.br/modules/wfsection/article.php?articleid=202 )
sobre o autor
Frederico Flósculo Pinheiro Barreto é professor do Departamento de Projeto, Expressão e Representação em Arquitetura e Urbanismo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília