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português
O artigo aborda algumas práticas projetuais voltadas para a produção de espaço público na cidade de Paris. O foco é a transformação da antiga linha férrea de Vincennes em um parque linear com ênfase no seu trecho em elevado, o atual Viaduc des Arts.
LOIOLA, Luís Eduardo. Viaduc des Arts, promenade plantée. Um recorte sobre a produção de espaço público em Paris. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 189.02, Vitruvius, abr. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.189/5980>.
A autoestrada e a transversal
Durante o período de forte crescimento econômico vivenciado pela França após o fim da segunda grande guerra, a cidade de Paris passou por profundas transformações em seu território. Nesse curto espaço de tempo – entre 1945 e 1973 – os chamados trinta anos gloriosos (1), o surto de prosperidade, sustentado por políticas que visavam pleno emprego e bem-estar social, se materializou em um surto na construção civil. Promoveu-se na capital francesa o maior canteiro de reformas urbanas desde as empreendidas pelo barão de Haussmann ao longo Segundo Império (1850-1870). Grandes obras de infraestrutura rodoviária (Boulevard Péripherique, avenidas marginais do rio Sena), o advento do trem metropolitano (RER), e a execução de grandes conjuntos habitacionais modificaram não só a fisionomia de bairros periféricos, mas a própria percepção da metrópole (2).
Em 1954, no âmbito das discussões para a modernização da cidade, o então presidente do conselho municipal, o médico generalista e político Bernard Lafay, apresentou um longo relatório que procurava definir pelas próximas duas décadas os rumos gerais do planejamento urbanístico parisiense (3). Sob o título de “Problèmes de Paris [...]” (4) o estudo colocava as bases para uma renovação radical. O último capítulo, intitulado de “Solutions aux problèmes de Paris [...]” (5) tornou-se objeto de uma importante publicação, trazendo uma nova leitura a respeito do papel da congestionada região central no contexto do fluxo viário metropolitano. Para essa geração de planejadores, a remodelagem dos sistemas de circulação por meio do incremento da rede de infraestrutura rodoviária seria uma condição incontornável para o futuro desenvolvimento urbano de Paris.
Lafay apontou em sua análise duas razões principais para os problemas de tráfego de veículos no centro da cidade. Ele identificou inicialmente excessiva concentração de escritórios, autarquias e atividades ligadas aos negócios na região. Em seguida, agravando a situação, ele apontou o centro de Paris como área obrigatória para passagem de todos que pretendiam atravessar a cidade, aumentando consequentemente a pressão sobre o sistema existente (6). Para Lafay a reorganização dos fluxos de circulação iria proporcionar o desenvolvimento “coerente e lógico” da metrópole permitindo assim que Paris reencontrasse “uma forma útil e eficaz ao extremo” (7).
Auxiliado pelo arquiteto chefe de obras da prefeitura Raymond Lopez, Lafay apresentou então um plano de intervenção rodoviária abrangente, que se desenvolvia em três eixos de ação: o projeto de uma rótula interna, sem cruzamentos em nível com as ruas existentes, equipada de 24 rotatórias desafogando o centro antigo do tráfego de veículos e assegurando a ligação entre bairros centrais e periféricos; o projeto de uma rótula de 35 km, com tratamento de autoestrada, no perímetro externo da cidade, duplicando assim o traçado dos Boulevards des Marechaux; por fim o projeto de uma Transversal, no sentido norte-sul, efetuando uma ligação expressa entre as portas de Gentily e de La Villette, tangenciando parte do anel interno. O novo sistema de vias seria complementado por uma ampla rede de estacionamentos subterrâneos (8).
Para a implantação da rótula interna o plano Lafay não previa a abertura de novas vias reduzindo o impacto de demolições na região. A solução dada seria então de conquistar os subsolos e ocupar os poucos “vazios” remanescentes da malha. Dessa forma o projeto sugeria a transformação de trincheiras de ferroviárias em túneis, conectando vias existentes, assim como o tamponamento do Canal de Saint Martin para a implantação da via expressa. O projeto da rótula interna não avançou, tendo apenas um pequeno trecho executado. Já a rótula externa foi rapidamente incorporada ao plano de obras da cidade. E em 1956 iniciam-se as obras do que seria posteriormente conhecido posteriormente como o Boulevard Peripherique (9).
O urbanismo praticado durante os trintas anos de ouro do capitalismo introduziu em Paris rupturas morfológicas e paisagísticas que, se por um lado foram pioneiras e inauguraram novas tipologias urbanas (fronts de Seine 15eme e projeto Italie XIII), por outro marcaram perda de substância na produção do espaço público. O foco se deslocou para a produção de sistemas de circulação, de grandes conjuntos habitacionais e para a produção de espaços privados. As grandes operações rodoviárias criaram uma rede de circulação intensa, quase autônoma em relação ao tecido urbano, dedicada exclusivamente ao transporte individual. O crescimento exponencial dos subúrbios da cidade modificou sua lógica, transformando a antiga Paris intramuros no hipercentro de uma vasta aglomeração metropolitana. O período seguinte seria marcado por uma profunda revisão de métodos para na produção dos espaços urbanos da cidade (10).
Apur e o quadrante leste
O Atelier Parisien d’Urbanisme (APUR) criado em 1967 para auxiliar o poder público a preparar o plano diretor de 1977 (Shémas directeur d’amenagement – Sdau) contribuiu enormemente a redefinir os termos de uma nova política urbana para a cidade de Paris. Em sua origem a agência governamental tinha por missão observar a evolução da cidade e preparar os planos de intervenção a médio e longo prazo. Tinha também função política, no sentido de esclarecer e influenciar os rumos de decisões tomadas pelos responsáveis eleitos da administração pública. A partir do início dos anos 1970, com o estudo sistemático do tecido urbano parisiense, o corpo técnico colocou em evidência a necessidade de revisão metodológica e prioridades de intervenção. É o início de um novo consenso teórico que iria restabelecer a importância do espaço público para a história urbana da capital francesa (11).
É com a retomada de interesse pelas características morfológicas específicas do território parisiense e com um vocabulário urbanístico extremamente diversificado que o APUR desenvolveu, de início, a revisão completa das dezoito operações de renovação urbana (ZAC) em andamento na época, seguindo novas orientações teóricas quanto ao respeito da forma urbana assim como das escalas preexistentes. A questão do desenho do espaço público, em suas mais variadas escalas, tornou-se elemento central para a reorganização da metrópole. Uma rara convergência conceitual no sentido de cultivar uma cultura comum de cidade a respeito da primazia do espaço público sobre o espaço particular assumiu impacto importante na paisagem parisiense do fim do século 20. É essa unidade filosófica, reunindo arquitetos, urbanistas e engenheiros, que conduziu a renovação dos principais espaços históricos da cidade e pautou uma série de intervenções, inicialmente no quadrante Leste de Paris, e em seguida em toda a metrópole (12).
Duas decisões foram fundamentais para a reinvenção do território parisiense: a valorização do rio Sena e de seus canais como elementos estruturadores da paisagem (Sdau 1977) e o programa de intervenções urbanas para a região Leste de Paris apresentado à municipalidade em 1983 (13).
O programa para a reativação do quadrante Leste de Paris marcou uma etapa decisiva para a evolução espacial da capital. A área, que havia sido preterida em favor do vetor de desenvolvimento na direção Oeste, concentrava então 3/4 dos terrenos passiveis de desenvolvimento urbanístico. O último grande projeto para a região datava do início do século 20: a construção de canais fluviais entre La Villette e o Bassin de L’Arsenale na Bastilha. Esse sistema fluvial, que durante anos foi ameaçado de tamponamento por projetos rodoviaristas, tornava-se então a espinha dorsal para a renovação urbana da região. Os planejadores da APUR também demonstram grande interesse no potencial paisagístico de antigas linhas férreas desativadas que atravessam o conglomerado metropolitano (14).
Eixo verde
A proposta de eixos verdes surgiu como resposta tipológica adequada para a recuperação de parte do território parisiense pela sua capacidade de se adaptar a diversos contextos urbanos. Notadamente é uma tipologia que se encaixava perfeitamente como resposta na recuperação do importante potencial paisagístico do antigo sistema ferroviário metropolitano.
O plano apresentado em 1983 previa a implantação de quatro eixos verdes na região Leste de Paris: um passeio ajardinado nas margens dos bassins de La Villette e do canal de l’Ourq, dois eixos recuperando antigas instalações da Petite Ceinture (15), e, por fim, a transformação da antiga linha de Vincennes em um parque linear, incluindo aqui a intervenção no viaduto da avenida Daumesnil (16).
A linha de Vincennes e o viaduto
Em 1853 a companhia privada Societé de Chemin de Fer Paris / Strasbourg recebeu a concessão para construção e exploração de uma linha férrea cujo objetivo era interligar a Praça da Bastilha à região do bosque de Vincennes, percorrendo o 12ème arrondissement na transversal, sentido Oeste-Leste. Inaugurada em 1859 a linha obteve imediato sucesso comercial, facilitando passeios bucólicos às margens do rio Marne aos fins de semana, mas também transportando trabalhadores e mercadorias.
Diante da popularização do trajeto a Companhie de L’Est decidiu investir na expansão do sistema. Após o fim da guerra de 1870 o ramal existente foi sucessivamente prolongado avançando cada vez mais em direção Sudeste da zona rural no entorno parisiense. Em 1892 a linha de Vincennes atingiu sua extensão máxima de aproximadamente 54 km ao estabelecer seu ponto terminal no município de Verneul – L’Etang.
O longo e lento declínio do uso ocorreu a partir de 1930 com a crise econômica associada à crescente concorrência do metrô, ocasionando perda substancial de passageiros. Em 1969 parte do trecho rural foi modernizado para em seguida ser incorporado ao traçado do RER A. A linha foi finalmente desativada em suas duas extremidades: no trecho que atravessa o conglomerado urbano e na zona rural.
Túneis, taludes e trincheiras haviam sido necessários para inserir o ramal ferroviário no traçado da cidade. Entre a Rua Rambouillet e a antiga estação da Bastilha, sobrepondo-se à artéria de trânsito existente, a Avenida Daumesnil, foi necessária a construção de um viaduto de mais de 1.5 km de extensão, vencendo assim o desnível da topografia local.
Reinterpretação da infraestrutura no desenho da cidade
“os objetivos múltiplos que a estrutura original permitiu não foram deliberada ou intencionalmente inseridos na estrutura. É antes sua “competência” intrínseca que faz com que se tornem capazes de desempenhar funções diferentes sob circunstancias diferentes, e de cumprir deste modo um papel diferente dentro da cidade como um todo” (17).
A Coullée Verte René-Dumont (Promenade Plantée) é o parque linear implantado ao longo do leito ferroviário da antiga linha Bastilha | Vincennes. Projetado pelo arquiteto Philippe Mathieux e pelo paisagista Jaques Verguely, o eixo verde conecta desde 1993, ano de sua inauguração, a Avenida Daumesnil e a região do bosque de Vincennes por um percurso de aproximadamente 4,5 km que atravessa o 12ème arrondissement transversalmente, sentido Oeste-Leste (18). Começando nos arredores da Ópera da Bastilha, o passeio se inicia a dez metros do chão, pelo Viaduc des Arts, faceando a Avenida Daumesnil. Na altura da Rua Montgallet uma passarela faz a transição entre cotas, sobrepondo o jardim de Reully, continuando em nível térreo pela Allée Vivaldi. Em seguida o parque passa por uma sequência de túneis e trincheiras até que, na altura da Rua Sahel, o traçado bifurca: um trecho segue em direção ao Boulevard Péripherique e o outro conecta com a linha da Petite Ceinture.
Em 1988 o arquiteto Patrick Berger venceu a concorrência para o restauro do viaduto. O projeto previa a ocupação dos 67 arcos remanescentes com fachadas de madeira e vidro. O espaço resultante abriga hoje uma serie de ateliers de arte e pequenos comércios, transformando essa obra de infraestrutura em um artefato híbrido: um edifício| parque que desenha a lateral de uma importante avenida da cidade. Em 1994 foram entregues as primeiras lojas e a obra foi completamente finalizada em 1997 (19).
Observa-se que a ocupação dos arcos ocorreu inicialmente de forma espontânea e anterior ao projeto de Patrick Berger. O projeto uniformizou o que a cidade já havia reinterpretado. Em seu livro Lições de arquitetura, Herman Hertzberguer analisou o artefato no capítulo destinado ao entendimento de conceitos relativos a Forma e Interpretação. Ele entende que uma forma específica (arquitetônica ou urbanística) nem sempre se ajusta apenas a um objetivo. Existem formas e tipologias urbanas que possibilitam diversas interpretações quando as circunstâncias permitem. Assim, é possível dizer que a variedade de interpretações já estava de alguma forma contida na estrutura existente, permitindo assim, a nova leitura (20). Hoje a obra se encontra completamente inserida no contexto urbano de Paris e é tida como exemplo bem sucedido (e pioneiro) da atuação do APUR na malha urbana da capital francesa.
notas
1
Les trentes glorieuses – expressão cunhada pelo economista francês Jean Fourastié (1907-1990) para descrever o período de prosperidade vivenciado pela França entre o fim da segunda guerra mundial e a crise do petróleo em 1973.
2
TEXIER, Simon (Org.). Voies publiques: Histoires et pratiques de l’espace public à Paris. Paris, Picard, 2006, p. 152.
3
Idem, ibidem, p. 136.
4
“Problèmes de Paris. Contribution aux travaux du conseil municipal: esquisse d’un plan directeur et d’un programe d’action.” Os problemas de Paris. Contribuição aos trabalhos do conselho municipal: esboço de um plano diretor e de um programa de ações (tradução do autor).
5
LAFAY, Bernard. Solutions aux problèmes de Paris. La circulation: Plan Bernard Lafay. Paris: Conseil du Nouveau Paris, 1955.
6
Ibid., p. 18.
7
Ibid., p. 260.
8
Ibid., ibidem.
9
TEXIER, Simon. Op. cit, p. 152.
10
Idem, ibidem, p. 152.
11
Idem, ibidem, p. 180.
12
Idem, ibidem, p. 181.
13
Idem, ibidem, p. 178.
14
Idem, ibidem, p. 184.
15
Antigo anel ferroviário de Paris
16
TEXIER, Simon. Op. cit, p. 181.
17
HERTZBERGER, Herman. Lições de arquitetura. 4ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 2012, p. 102.
18
LAPIERRE, Eric. Guide d’architecture à Paris: 1900-2008. Paris, Editions du Pavillon de l’Arsenal, 2008, p. 1996.
19
Idem, ibidem, p. 1996.
20
HERTZBERGER, Herman. Op. cit., p. 102.
sobre o autor
Luís Eduardo Loiola é arquiteto e urbanista graduado pela Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP em 2004 e sócio fundador do escritório Mira Arquitetos. Atualmente é mestrando no programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.