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português
As residências octogenárias de centenas de famílias da Comunidade Tradicional do Porto do Capim estão ameaçadas pela implantação do polêmico projeto do Parque Ecológico Sanhauá.
english
The households of hundred of octagenary families at the Traditional Community "Porto do Capim" are now threatened by the controversial project "Parque Ecológico Sanhauá".
PEREZ, Letícia Palazzi; ROMÃO, Ana Heloísa Oliveira; SILVEIRA, José Augusto Ribeiro da. Desterritorialização da Comunidade do Porto do Capim em João Pessoa. Revitalização do centro histórico desconsidera moradores pobres. Minha Cidade, São Paulo, ano 19, n. 227.03, Vitruvius, jun. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/19.227/7392>.
Onde tudo começa
A comunidade Porto do Capim ocupa o lugar onde nasce, em 1585, na cidade de João Pessoa, ocupando uma área de aproximadamente 2,5 hectares, no Centro Histórico, tendo como divisa nordeste o rio Sanhauá, afluente do rio Paraíba.
Até a década de 1920, o Porto do Capim recebia embarcações internacionais, mas, com o tempo, o porto perde capacidade, por causa do assoreamento do rio Sanhauá, que impedia o atracamento de grandes embarcações. A partir de 1935, um novo porto regional para o transporte de mercadorias é inaugurado, na vizinha Cabedelo (1).
A área do antigo polo comercial do Porto do Capim foi esquecida e abandonada pelos poderes públicos, replicando o cenário decadente comum das áreas centrais da maioria das cidades de ocupação histórica (2).
Enquanto o Porto do Capim foi perdendo importância, os trabalhadores do próprio porto, bem como pescadores e marisqueiros, passam a ocupar as instalações locais, muitos em busca de subsistência no rio Sanhauá, uma vez que já não existia mais emprego para trabalhadores braçais na carga e descarga de mercadorias (3). Em consequência desses fatos, o manguezal, inexistente na era da movimentação econômica do porto, volta a existir e, desta forma, ao longo dos últimos 80 anos, a região do Porto do Capim tem sido habitada por uma comunidade de relação histórica com o lugar (4).
A Comunidade Tradicional do Porto do Capim é dividida pelo poder público municipal em dois núcleos, (i) Porto do Capim e (ii) Vila Nassau, mas os moradores se reconhecem como uma única comunidade, que é conectada espacialmente. Ambas são compostas por moradias, com fundos para o rio Sanhauá, e estabelecidas há quatro gerações.
Atualmente, a Comunidade do Porto do Capim soma cerca de quinhentas famílias (5) de baixa renda que construíram, ao longo desses 80 anos, uma cultura e identidade com o local, das quais 124 famílias (6) estão sendo arbitraria e autoritariamente removidas pela Prefeitura Municipal de João Pessoa, com a promessa de realocação em conjuntos habitacionais distantes dois quilômetros das moradias originais.
Vídeo de divulgação do projeto Parque Sanhauá [PMJP]
A administração municipal afirma, em vídeo, que o núcleo Vila Nassau não pertence à Comunidade do Porto do Capim, desconsiderando o sentimento de reconhecimento dos moradores, indo na contramão da garantia dos direitos humanos desta população (7).
O centro (histórico) das disputas
A área do Centro Histórico da cidade de João Pessoa é tombada pelo Decreto nº 25.138 de 28 de junho de 2004 do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba – Iphaep, e homologado em 2007 pelo Iphan, que se superpõe ao tombamento estadual.
Inicialmente, reconhecendo a importância de valorizar o patrimônio cultural, histórico e ambiental da cidade surgiu o Projeto de Revitalização do Centro Histórico de João Pessoa, desenvolvido pela Comissão Permanente de Desenvolvimento do Centro Histórico de João Pessoa, ainda em 1987, a partir do qual foi possível diagnosticar a falta da integração rio-cidade (8).
Em 2002, surge a preocupação quanto às condições habitacionais no perímetro histórico, sendo então criado o Programa de Reabilitação de Sítio Históricos, desenvolvido pela Caixa Econômica Federal, juntamente com a Prefeitura Municipal de João Pessoa – PMJP e o Governo Federal. Dentro desse programa, voltado para habitação, foi elaborado, em 2007, o Programa de Revitalização do Varadouro e do Porto do Capim (9).
Este programa, ao mesmo tempo em que cita a importância de habitar o centro histórico, impõe a remoção da Comunidade do Porto do Capim, apontando a realocação das “favelas” como parte do processo de revitalização da área (10).
O projeto adquiriu apoio do Governo Federal, em parceira com a PMJP, por intermédio do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC e verba do Banco Interamericano de Desenvolvimento e, além de remover as famílias ribeirinhas, prometia realizar a revitalização do rio Sanhauá, enquadrando as intervenções como um projeto ambiental – o chamado Parque Ecológico Sanhauá.
Também com relação à habitação, o Projeto Moradouro, lançado pela PMJP também em 2007, através do Programa de Arrendamento Residencial da Caixa Econômica Federal, entregou, em 2018, a área hoje conhecida como Villa Sanhauá. Trata-se de uma mistura de habitação de artistas e estabelecimentos comerciais, relacionados à cultura paraibana, mas sem a alocação de moradores da Comunidade do Porto do Capim.
Ao mesmo tempo em que o projeto parece demonstrar um olhar cuidadoso para com a história da cidade, não reconhece a relação histórica da população residente com o rio e com o Centro Histórico. A Comunidade do Porto do Capim faz parte do Centro Histórico da cidade e, através de suas práticas e manifestações culturais, demonstram que há forte vínculo com o local previsto para intervenção (11).
Em março de 2019, os moradores do que a PMJP nomeia Vila Nassau, foram alvo de notificação de despejo, para a implantação do projeto Parque Ecológico Sanhauá (12). As imagens abaixo apresentam a realidade local das áreas de remoções, com o recorte de frames do vídeo de apresentação do projeto, da PMJP (13).
Trata-se de uma proposta em que não foi possível a visualização pública dos detalhes técnicos e administrativos, ou seja, não foi feito um concurso público para propostas de intervenção, não há indicativo de quem ou qual escritório de arquitetura elaborou a proposta, não houve amplo debate público sobre o projeto.
Apesar das alterações drásticas no Centro Histórico, não foram apresentados projetos básicos e executivos, dados e detalhamentos construtivos, especificação de materiais, equipamentos e mobiliário ou custos, apenas um vídeo, que se tornou público, com apresentação de um estudo preliminar embrionário, com consideráveis problemas de desenho urbano e arquitetura, que devem ser tratados antes de maiores investimentos de aprovação ou execução de obras (14).
O projeto vai contra os diversos estudos elaborados, ao longo de décadas, por pesquisadores da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, que apontavam a necessidade de moradia no centro, a possibilidade de alterações estruturais para mitigação de riscos, de infraestrutura urbana e, inclusive, de acesso ao rio Sanhauá, sem a remoção de famílias.
A desterritorialização
Em As três ecologias, Felix Guattari (15) apresenta a “ecosofia”, subdividida entre a ecologia do meio ambiente, das relações sociais e da subjetividade humana, e retoma os conceitos de territorialidade e desterritorialização, de suas obras anteriores. A territorialidade é formada por múltiplas camadas, entrelaçando cultura, relações sociais, econômicas, além de processos cognitivos e subjetivos.
Silveira e da Silva (16) descrevem como diversos outros autores condicionam o conceito de território às relações cognitivas e subjetivas das pessoas que ocupam determinado lugar. A remoção da população residente naquele lugar ameaça o território Porto do Capim, enquanto comunidade tradicional.
A desterritorialização da Comunidade do Porto do Capim – mesmo que apenas parte dela – cria uma fragilidade subjetiva na noção de comunidade e também nos demais residentes, quando existe a possibilidade de o Estado intervir e realocar, autoritariamente, a qualquer momento.
A comunidade do Porto do Capim vive “há quatro gerações” naquele espaço, abandonado por anos pelo poder público. Trata-se de uma população vulnerável socioeconomicamente, com relações materiais e, principalmente, imateriais com o lugar.
A exemplo, o trapiche é utilizado para a mais importante celebração religiosa da comunidade, com a procissão e barqueada de Nossa Senhora da Conceição, que acontece a cada dia 8 de dezembro, que parte da Igreja São Frei Pedro Gonçalves, passa pela Rua do Porto do Capim e embarca em pequenas canoas no Trapiche, rumo à Ilha da Santa, no rio Sanhauá.
Residentes mais antigas da comunidade (17) costumam confraternizar, historicamente, nos quintais de suas casas, de frente para o rio Sanhauá, assistindo o pôr-do-sol, enquanto os homens fazem uso do rio para retirar dali a alimentação diária.
Na imagem acima são apresentadas as intervenções previstas no projeto Parque Ecológico Sanhauá. O “Sítio” [10], pertence à uma mesma família desde a época do abandono do porto, na década de 1930/40 por parte do poder público, possui árvores frutíferas e uma relação de afetividade com os moradores, situado no extremo oeste da Comunidade do Porto do Capim. Em frente à entrada do “Sítio, foi feita uma obra pública de saneamento que traz água pluvial e esgoto, de fora do perímetro da comunidade, para despejo de esgoto diretamente no rio Sanhauá.
Ao entrar na área que a PMJP chama de núcleo Vila Nassau, é possível avistar, ao fundo, uma grande área aberta [9] que poderia ser urbanizada para tornar-se um equipamento de lazer para os moradores, mas que, no projeto do Parque Ecológico, é uma área aberta, cimentada e pavimentada, com um espelho d’água sem sentido, de frente para o rio.
Naquela mesma entrada, há um Galpão [8], hoje ocupado por alguns descendentes dos antigos moradores das residências “do outro lado da rua”, que tem fundo para o rio Sanhauá, que aparece preservado e restaurado no projeto do Parque, com a remoção de todas as residências do entorno.
De frente para o Galpão, há uma marmoraria, que emprega moradores locais, bem como algumas residências [6;7] e casas existentes há 80 anos, que também devem ser removidas, para a construção de um estacionamento, contrariando inclusive a lógica de um parque ecológico, que deveria incentivar a mobilidade ativa.
As residências e os comércios onde a PMJP vê um limite invisível entre os núcleos Vila Nassau e Porto do Capim [4;5], também serão removidos, para a construção de área para estacionamento de veículos particulares.
Algumas edificações e espaços públicos já sofreram alteração, como no caso da Vila Sanhauá [3], ou estão em processo de alteração, como a Praça Napoleão Laureano [2] ou o comércio [1] estabelecido entre a Vila Sanhauá e a Estação Elevatória de Esgoto do Varadouro.
A remoção das famílias da Comunidade do Porto do Capim implica no desmantelamento da memória local, além da proposta perversa de realocação em uma área distante da moradia atual.
A desterritorialização da comunidade do Porto do Capim é processo devastador, do ponto de vista da relação simbiótica da população com o rio, que compõe o território, e pela perda das relações familiares, sociais e de vizinhança.
Trata-se também não apenas da desterritorialização das famílias que residem na comunidade há gerações, mas também da subjetividade da imposição, pela PMJP, do apagamento higienista da memória urbana.
Considerações finais
Trata-se de um projeto arbitrário, que está sendo implantado de maneira autoritária, sem respeitar os ritos de discussão pública, tão importantes para processos públicos transparentes, com base na Carta Magna de 1988.
A apresentação de um protótipo embrionário de projeto aponta intervenções preocupantes do ponto de vista dos direitos humanos e respeito às comunidades tradicionais ribeirinhas; do ponto de vista da política urbana, por tratar-se de população baixa renda e, do ponto de vista ambiental, pelo problema da recuperação do manguezal, possível pelo cuidado espontâneo da comunidade para com o rio Sanhauá, além do caráter puramente higinenista da ação.
O processo de remoção das famílias do que a PMJP reconhece como Vila Nassau é nitidamente um processo de desterritorialização e desmantelamento do lugar enquanto território tradicional: a perda da casa, das relações de vizinhança, do caminhar espontâneo diário, do rio, do pôr-do-sol, das memórias e do pertencimento.
O impacto da desterritorialização de parte dos residentes da Comunidade do Porto do Capim cria ainda o sentimento de constante medo de perda da residência dos que ali permanecerem e é imperativa uma mudança de comportamento por parte da administração pública municipal.
notas
1
BOAVENTURA, Flávio Brandão. Diretrizes e alternativas de urbanização para área Frei Vital: consolidação e viabilização das relocações parciais da Comunidade do Porto do Capim. Trabalho de Conclusão de Curso. Orientadores Eduardo Teixeira de Carvalho e Elisabetta Romano. João Pessoa, DAU UFPB, 2016.
2
COSTA, Marília Jerônimo. Requalificação de centros urbanos: os programas de políticas públicas no caso do centro histórico de João Pessoa/PB. Anais do 3° Colóquio Ibero-Americano Paisagem Cultural, Patrimônio e Projeto – desafios e perspectivas. Belo Horizonte, UFMG, 15-17 set. 2014.
3
BOAVENTURA, Flávio Brandão. Op. cit.
4
COSTA, Marília Jerônimo. Op. cit.
5
CENTRO DE REFERÊNCIA DE DIREITOS HUMANOS. Porto do capim: relatório de violações dos direitos humanos. João Pessoa, UFPB, 2014.
6
PREFEITURA MUNICIPAL DE JOÃO PESSOA. Vídeo de divulgação do projeto Parque Sanhauá. João Pessoa, PMJP, 2019 <https://bit.ly/2ItcjCD>.
7
Idem, ibidem.
8
COSTA, Marília Jerônimo. Op. cit.
9
Idem, ibidem.
10
CENTRO DE REFERÊNCIA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit.
11
Idem, ibidem.
12
PPGAU. Carta de apoio à Comunidade do Porto do Capim e de avaliação preliminar do projeto Parque Ecológico Sanhauá. João Pessoa, SIGAA UFPB, 2019.
13
PREFEITURA MUNICIPAL DE JOÃO PESSOA. Op. cit.
14
PPGAU. Op. cit.
15
GUATTARI, Felix. As três ecologias. Campinas, Papirus, 1990.
16
SILVEIRA, José Augusto Ribeiro da; SILVA, Geovany Jessé Alexandre da. Ensaios urbanos: configurações e deslocamentos na cidade. João Pessoa, CCTA, 2018.
17
CENTRO DE REFERÊNCIA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit.
sobre os autores
Letícia Palazzi Perez é professora visitante no Departamento de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal da Paraíba. GIS & Sensoriamento Remoto. Planejamento urbano, assentamentos precários e informais, regularização fundiária, risco, vulnerabilidade, eventos extremos e mudanças climáticas.
Ana Heloísa Oliveira Romão é estudante do Departamento de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal da Paraíba
José Augusto Ribeiro da Silveira é arquiteto (UFPB,1982), mestre e doutor (UFPE,1997 e 2004), professor associado IV no Departamento de Arquitetura e Urbanismo do Centro de Tecnologia da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, onde coordena o Laboratório do Ambiente Urbano e Edificado – Laurbe.