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O arquiteto Luiz Carlos Toledo convoca cinco arquitetos especialistas em projetos hospitalares, todos falecidos, e os coloca em uma mesa de bar, em uma conversa imaginária de como seria possível converter o conceito de “cidade partida” em “cidade única”.
TOLEDO, Luiz Carlos. Cinco fantasmas velando por uma cidade que é uma só. Ideias para nos defender dos vírus, agora e para sempre. Minha Cidade, São Paulo, ano 20, n. 238.01, Vitruvius, maio 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/20.238/7751>.
As mesas do Jangadeiros estão lotadas em plena quarentena. Carioca é mesmo burro, pensei, e aí a ficha caiu: o que eu fazia ali, sem máscara e álcool em gel, finalizando meu terceiro chope, o quarto já se equilibrando na bandeja do Simões?
Somos seis à mesa, coberta de bolachas, eu e cinco ocupantes que têm muito em comum: arquitetos renomados, autores de centenas de hospitais e todos estão mortos. Em vida atendiam pelos nomes de Aldary, Jorge, Karman, Irineu e Lelé.
Conversam sobre a pandemia, sem temer o vírus como eu, afinal já morreram. Mas, preocupados com filhos, netos e as futuras gerações, discordam das medidas sanitárias tomadas em combate à pandemia e lamentam não estarem vivos para enfrentar o Covid-19. Condenam o egoísmo e o comportamento suicida da população que sabota o afastamento social, única ação capaz de reduzir a velocidade de propagação do vírus, na falta de uma vacina. Em altos brados, lançam impropérios aos cariocas, paulistas, cearenses e manauaras, por anteciparem o colapso das redes de saúde pública e privada.
Vou apresenta-los a vocês, caríssimos leitores: Aldary Henriques Toledo (1915-1998), meu pai, projetou dezenas de unidades de saúde, entre elas o Hospital do Fundão e a Puericultura, em parceria com Jorge Machado Moreira (1904-1992), o craque que projetou o Hospital das Clínicas de Porto Alegre, até hoje o hospital de placa e torre mais bonito que conheço.
Jarbas Karman (1917-2008) foi a maior referência entre os arquitetos que se dedicavam à arquitetura hospitalar; Irineu Breitman (1930-2019) foi um arquiteto extraordinário e um amigo querido, como foi João Filgueiras Lima, o Lelé (1932-2014), que, a meu juízo, é o mais importante arquiteto brasileiro, pela extraordinária qualidade de sua obra, pelos processos construtivos que criou e aperfeiçoou, e pela excepcional contribuição à arquitetura pública, projetando centros sociais, escolas, habitações de interesse social, mobiliários urbanos e os icônicos hospitais da Rede Sarah.
Lelé xinga o presidente que teima em acabar com o distanciamento social antes da hora, papai e Irineu não ficam atrás, decompõem o ex-Ministro da Saúde, no início cem por cento alinhado ao presidente, mas logo desistente do cargo por não suportar os despautérios do primeiro mandatário do país. Jarbas Karman e Jorge Moreira, mais comedidos, protestam contra governadores e prefeitos por relutarem em tomar medidas mais drásticas, diante da desobediência ao distanciamento social.
Os cinco fantasmas, para minha surpresa, em vez de sussurrarem suas ideias, como eu julgava próprio dos espectros, falam aos gritos como numa briga, chamando a atenção das mesas vizinhas. Refletindo sobre a gritaria, fico em dúvida se são devido aos chopes, ou se apenas estão compensando o tenebroso silêncio dos túmulos. Entre gritos e imprecações, eles discorrem sobre as estratégias de combate à pandemia com tal propriedade que, com medo de esquecê-las, passei a anotá-la em guardanapos.
A pandemia e as estratégias para combatê-la
Os vírus vieram para ficar e nada será como antes. A família dos coronavírus é imensa, dela só conhecemos alguns parentes; o Covid-19 foi a que fez mais estrago até agora, mas existem outros mais letais que ainda virão. Aquele não veio da China, como dizem as más línguas, nem de outro lugar específico, veio do Planeta Terra, maltratado pela nossa irresponsabilidade, envenenado pelas emissões de efeito estufa, desmatado e dilapidado de mil maneiras, com ferocidade e velocidade jamais vistas.
O Covid-19 é mais um aviso, como foram a peste negra, gripe espanhola e o ebola, entre muitos outros que a história esqueceu. Como o homo sapiens é incorrigível e vai continuar a maltratar o planeta nas próximas décadas, será necessário nos preparar para combater os novos inimigos invisíveis que voltarão à ameaçar a sobrevivência da nossa espécie.
Em relação a atual pandemia o perigo que corremos, a médio prazo, é esquecer esse novo aviso, assim que a ciência descobrir tratamentos e vacinas para o Covid-19, postergando ou abandonando medidas que deveriam ser tomadas para combater futuras ameaças.
É bom lembrar que velhos inimigos se encontram entre nós há muito tempo – o ebola, sarampo, malária, esquistossomose, dengue, tuberculose, ao lado do câncer, cardiopatias e AVCs – e ceifam a vida de milhões de pessoas por ano, em todo o mundo, sem contar com patologias das quais estávamos livres e que ressurgem, dramaticamente, em países como o Brasil, onde a desigualdade e a exclusão social são endêmicas.
Segundo meus amigos falecidos, para combater a pandemia no Brasil algumas medidas são fundamentais, então vamos a elas:
A pandemia explicitou problemas que nos acostumamos a varrer para debaixo do tapete, entre eles a falência das políticas públicas, a incapacidade de socorrer, a tempo e à hora, os mais pobres, e a falta de integração entre os três níveis de governo. O Covid-19 também desmontou truísmos como o da “cidade partida”, que pressupõe a existência de duas cidades num só território, a que respeita às leis urbanísticas e serve de morada para cidadãos plenos, e a que cresce sem controle, à revelia de qualquer norma, habitada por cidadãos de segunda classe vivendo na informalidade, sob o jugo de milícias e traficantes. A pandemia nos ensinou que a cidade é uma só, e que a falta de acesso à infraestrutura e ao emprego formal não são suficientes para se contrapor às inter-relações socioeconômicas, físicas e culturais, que fazem das duas cidades, uma só.
Vejam o caso da Rocinha. O Covid-19 penetrou na favela, em um primeiro momento transportada pelos moradores que trabalhavam nas residências das classes abastadas da Zona Sul, expostas ao vírus em viagens internacionais. Em um segundo momento, o vírus alastrou-se pela favela, nela encontrando o ambiente ideal para se propagar de forma explosiva, devido à elevada densidade populacional, à falta de saneamento e às moradias precárias, que tornam risível, senão trágico, o mantra “fique em casa”. Esta população, dizimada pelo vírus, é a que disputará vagas nas UTI com os moradores da cidade formal, quando os hospitais da rede privada estiverem lotados.
Em um último esforço, os fantasmas dizem que não são ingênuos a ponto de apelar para a consciência dos governantes, mas, por tudo que expuseram, acreditam que está mais do que na hora de o Estado entrar nas favelas com saneamento, equipamentos, serviços urbanos e moradias de qualidade, não porque a sociedade despertou para a desigualdade e exclusão que campeiam no Brasil, mas porque os vírus vieram para ficar e a melhor maneira de combatê-los é com cidades mais democráticas e solidárias.
Até então, o assunto são as medidas que transcendem o campo da arquitetura hospitalar, e percebo que a morte não interrompera a sede de conhecimento dos fantasmas; ao contrário, tinha aguçado neles a visão de longo prazo, própria da eternidade. Eu estou calado até esse momento, esmagado pelo saber que demonstram. Mas, para não deixar passar em branco a oportunidade, pergunto a opinião que têm sobre os hospitais de campanha do Rio.
Eu também me preocupo com a manutenção do distanciamento social em níveis que não colapsassem a rede de saúde, com a dificuldade de adquirir e aplicar testes, com o número insuficiente de leitos, respiradores e insumos necessários à preservação da vida de pacientes graves, e com a falta de EPIs para os profissionais de saúde, mas também estou igualmente preocupado com o desempenho dos hospitais de campanhas, em muito comprometido pelo atraso na abertura de leitos, pela falta de equipamentos, insumos e profissionais de saúde.
Respondem que se as medidas que acabam de expor fossem levadas a sério, nada disso ocorreria. Não haveria falta de equipamentos, insumos e EPIs se a indústria nacional fosse estimulada a produzi-los. Não haveria falta de profissionais de saúde se sua formação se adequasse aos novos desafios impostos pela pandemia, e, principalmente se fosse criada uma carreira de Estado que abrigasse estes profissionais.
Em relação ao planejamento e à arquitetura dos hospitais de campanha, a resposta que me dão me surpreende; questionam o dimensionamento das unidades e asseguram que hospitais menores, com menos leitos, são mais apropriados por evitar a concentração, no mesmo espaço, de muitos pacientes portadores de um vírus que se conhece muito pouco.
Em relação à localização, são unânimes em dizer que teria sido muito melhor montá-los nas áreas de estacionamento de hospitais já existentes, para aproveitar as centrais de esterilização e de gases medicinais, geradores, cozinhas, reservatórios e estações de tratamento de esgoto, entre outras infraestruturas disponíveis nestas unidades. Além disso, eventuais intercorrências que surgissem nos pacientes contaminados pelo Covid-19 poderiam ser tratadas com rapidez por especialistas da equipe do hospital.
A conversa chega ao fim, eu a prolongara sem me importar com o esforço que eles tinham feito para vir de tão longe. Eu, curiosamente, também estou muito cansado, mas, antes de deixar o Jangadeiros olho em volta: na mesa ao lado, o pediatra Adamastor Barboza conversa com o cirurgião Paulino Fernandes, eles que me salvaram da morte aos quatro anos de idade; ao lado o cirurgião ortopedista Nova Monteiro, que operou meus joelhos há quase seis décadas, toma seu derradeiro chope, junto a outro ortopedista, o médico Aloysio Campos da Paz, o criador da Rede Sarah.
Todos sorriem para mim de um jeito tão caloroso, que nem me surpreendo ao lembrar que o Jangadeiros há muito tempo fechou as portas (1) e que o velho garçom Simões não está mais entre nós. Não conheço as sorridentes pessoas das outras mesas, mas a intuição me diz que são ocupadas pelos corajosos médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e todos os demais profissionais de saúde que perderam a vida combatendo o novo coronavírus. Covarde que sou, reluto em fazer a pergunta que não quer calar: será que eu...
nota
1
O restaurante Jangadeiro foi inaugurado em 1935 como Bar Rhenania. Localizado na Rua Visconde de Pirajá n. 80, Ipanema, mudou o nome original alemão para Jangadeiro durante a 2ª Guerra Mundial. Sede inicial da Banda de Ipanema, em 1971 mudou-se para a Rua Teixeira de Melo n. 20, onde permaneceu até 1985, para a seguir se mudar para o n. 53 da mesma rua, fechar em definitivo no ano de 1995. Ver: Blog Saudades do Rio, 20 jul. 2018 <http://saudadesdoriodoluizd.blogspot.com/2018/07/bar-jangadeiro.html>.
sobre o autor
Luiz Carlos Toledo, arquiteto, mestre e doutor pelo Proarq UFRJ, diretor da Mayerhofer & Toledo Arquitetura, autor do Plano Diretor Sócio-Espacial da Rocinha (2006) e diretor da Casa de Estudos Urbanos. Recebeu do IAB-RJ o título de Arquiteto do Ano em 2009.