Estações ferroviárias são, em sua essência, pontos de acesso e saída do sistema de transporte. Simultaneamente se articulam com o espaço urbano em múltiplas escalas, aumentam a acessibilidade dos locais atendidos e representam uma possibilidade de conexão para os passageiros.
Por essas características, estações ferroviárias não são, ou não deveriam ser, apenas artefatos técnicos, concebidos para ligar uma origem a um destino, visto que estão em íntima relação com o espaço urbano e com os passageiros que se deslocam pelos seus ambientes.
A circulação de pessoas é fundamental para o seu cotidiano e é capaz de gerar outros usos e oportunidades de relações sociais, ainda que efêmeros. Nesse sentido, o que um olhar sobre os usos das pessoas em deslocamento no entorno das estações ferroviárias pode revelar?
A esses usos pode-se atribuir o termo práticas sociais da mobilidade, definido por Tim Cresswell como as relações entre os corpos em movimento com as várias tecnologias, sistemas e espaços que envolvem os deslocamentos (1).
Sob a perspectiva das práticas sociais da mobilidade as estações ferroviárias abrigam majoritariamente movimentos corriqueiros, habituais, regulares e até banais que se repetem nos mesmos dias e horários e que, nem por isso, são irrelevantes, pois compreendem a experiência dos passageiros.
Esses movimentos repetitivos nos espaços das estações ferroviárias são em sua maioria de curta duração e estão em grande parte relacionados com o ato de circular, seja para embarcar ou desembarcar dos trens, comprar bilhetes ou outra ação que envolve sobretudo os deslocamentos regulares. A predominância da dimensão da circulação, no entanto, não nos permite ignorar a possibilidade de as estações abrigarem outras práticas sociais em ocasiões específicas.
Uma análise mais detalhada dos usos das pessoas em deslocamento no entorno das estações Barra Funda, Pirituba e Jardim Helena-Vila Mara indicou, como esperado, a predominância da circulação. Todavia, outras práticas sociais foram identificadas nessas três estações que fazem parte da rede metropolitana de transporte de São Paulo, com destaque para a presença de trabalhadores informais vendendo produtos nos espaços públicos adjacentes aos acessos e ao longo dos principais percursos dos passageiros no entorno imediato.
Vendedores em barracas, tendas, trailers, veículos e outras estruturas se aproveitam do fluxo de pessoas que acessam e saem das três estações e vendem principalmente alimentos e bebidas, possibilitando uma prática muito comum em várias infraestruturas de transporte da metrópole paulista que é o consumo rápido durante o trajeto.
A seguir são descritos como o comércio informal acontece nos espaços públicos do entorno das três estações, respeitando as diferenças entre elas, tais como localização, porte dos edifícios, função na rede de transportes, demanda diária de passageiros, relação com o entorno urbano e escala de atuação.
Estação Barra Funda
Por se tratar de um terminal intermodal de importância metropolitana que abriga linhas de trem, metrô e terminais de ônibus, a Estação Barra Funda é frequentada diariamente por centenas de milhares de passageiros. Boa parte desse contingente de pessoas realiza integração modal e não deixa o espaço interno da estação. Uma parcela menor, mas ainda assim expressiva, deixa a estação em direção aos diversos equipamentos e postos de emprego existentes nessa região do centro expandido da cidade de São Paulo.
Boa parte dos passageiros que seguem para o entorno circulam pela praça Doutor Osmar de Oliveira. Por esse espaço público a circulação de pedestres entrando e saindo da estação é complementada pela presença expressiva de trabalhadores informais que oferecem uma diversidade de produtos em estruturas fixas ou móveis.
São muitos vendedores de alimentos em tendas, bancas e veículos, sobretudo nas esquinas e vias laterais da praça, gerando curtos momentos de permanência. A maioria comercializa pastéis, lanches, salgados, bolos, cafés e bebidas. No período da manhã estão presentes em maior número em razão das pessoas que chegam para o trabalho e pausam para ter a primeira refeição do dia. Com o fim do movimento dos trabalhadores, alguns desmontam suas tendas. No horário do almoço o movimento na praça é menor e volta a aumentar no final do dia. Nesse horário, a maior parte dos que param para comer são estudantes a caminho das aulas nas universidades que se localizam no entorno da estação.
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Na rampa de acesso à estação, localizada em uma das extremidades da praça, os vendedores se concentram e expõem roupas, acessórios para celular, equipamentos eletrônicos, alimentos e bebidas e, em dias chuvosos, guarda-chuvas. Se apropriam a seu modo dos espaços cobertos e dos elementos da estação, como guarda-corpos e corrimãos, para ofertar seus produtos que chamam a atenção dos passantes e geram pequenas interações e momentos de parada em meio ao fluxo intenso. Não são muitos, mas chamam a atenção por fugirem à regra que pretende deixar os espaços desimpedidos para a circulação.
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O dinamismo na praça é complementado por aqueles que se direcionam para outros modos de transporte e durante o percurso ou em momentos de espera também consomem produtos oferecidos. Alguns passageiros aguardam em fila o embarque no ponto final de uma linha de ônibus. Outros se direcionam aos táxis que param em uma das ruas laterais da praça. Um pequeno número aguarda carona ou carro de aplicativo perto das esquinas.
Estação Pirituba
Em Pirituba, localizada na região de mesmo nome na Zona Norte de São Paulo, o fluxo de pessoas no entorno está muito associado com a integração modal entre a estação e o terminal de ônibus localizado em terreno próximo.
O percurso de transferência entre trens e ônibus se dá pela calçada da avenida Paula Ferreira e atrai alguns vendedores que comercializam principalmente alimentos (bolos, café, doces e salgados) e são os únicos atrativos, visto que não há estabelecimentos comerciais e a calçada é acompanhada em quase todo seu prolongamento por um muro que delimita a faixa ferroviária.
Em menor quantidade do que na Barra Funda, os vendedores estão mais presentes no período da manhã em dias úteis, quando os trabalhadores aproveitam o caminho para fazer rapidamente a primeira refeição. Há maior concentração deles no trecho estreito da calçada junto à escada de acesso da estação que acaba funcionando como um ponto de encontro, com alguns trabalhadores oferecendo seus produtos em meio às pessoas em pé conversando, aguardando carro de aplicativo ou esperando no ponto de ônibus.
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No decorrer da manhã, passado o momento mais movimentado, a maioria dos vendedores já desmontou as barracas e no período da tarde restam poucos. No horário de almoço, em dias úteis específicos, a calçada recebe também uma unidade do Bom Prato Móvel. O caminhão estaciona na calçada no meio da manhã e, após montar a estrutura, vende marmitas a preço acessível para os clientes que aguardam na fila.
Estação Jardim Helena-Vila Mara
Em Jardim Helena-Vila Mara o fluxo de pessoas embarcando e desembarcando é complementado pela intensa dinâmica urbana local. Localizada em região predominantemente residencial da Zona Leste de São Paulo, a estação é o principal meio de transporte público dos moradores e são muitos estabelecimentos comerciais concentrados no seu entorno.
O acesso sul da estação acontece na esquina da rua São Gonçalo do Rio das Pedras com a avenida Marechal Tito. Esse espaço acanhado destinado aos pedestres que chegam e saem da estação concentra o início da rampa de acesso, ponto de ônibus, travessias de pedestres, entrada de um atacadista e alguns trabalhadores informais que vendem diversos produtos em barracas, carrinhos e outras estruturas. Há grande variedade de produtos oferecidos, principalmente no período da tarde que, acompanhando o maior movimento de passageiros, recebe mais vendedores. Há barracas de mandioca, de ovos, de pastel e de roupas, carrinhos de churros, de açaí e de sorvetes, mesas de doces e salgados, painéis verticais com acessórios de celular e lonas no chão com doces.
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O acesso norte acontece em um espaço mais amplo que recebe uma sequência de barracas que se espalham da escada de acesso até a esquina, formando um corredor contínuo por onde os passageiros se deslocam para entrar e deixar a estação. Se no sul a maioria dos vendedores possui equipamentos desmontáveis ou móveis, na parte norte, as tendas são fixas e permanecem durante todo o dia, mesmo que vazias. Essas estruturas estão mais ocupadas no período da tarde, oferecendo bebidas alcoólicas, doces, acessórios de celular, roupas, eletrônicos, salgadinhos e bolachas. Além das barracas, um vendedor espalha acessórios de celular nos corrimãos da escada da estação.
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Indícios para uma interpretação mais atenta à experiência dos passageiros
Analisar as práticas sociais da mobilidade envolve considerar as formas de vivenciar o tempo e o espaço durante o ato de se deslocar, assim como o comportamento das pessoas e as relações sociais estimuladas no decorrer dos percursos. Oferecem, portanto, indícios que suplantam o viés quantitativo dos deslocamentos e o fluxo de passageiros como apenas uma massa uniformizada e irreflexiva.
Observar as estações ferroviárias sob essa perspectiva confere a devida importância à experiência dos passageiros e não nos permite qualificar essas infraestruturas de transporte como locais estritamente funcionais ou de menor importância por serem transitórios, de passagem, intersticiais, intermediários ou de apropriação temporária.
Pelas situações encontradas nas três estações ferroviárias apresentadas, pode-se afirmar que a mobilidade impulsiona práticas sociais que se materializam de diversas formas e com algumas especificidades. A presença do comércio informal nos espaços públicos adjacentes é uma delas e revela algumas questões decorrentes dos deslocamentos das pessoas.
Sob a perspectiva da relação com a cidade, os vendedores ajudam a animar os espaços públicos do entorno usualmente voltados para a circulação de passageiros, reforçando a participação das estações ferroviárias na dinâmica urbana e da circulação como uma dimensão fundamental da vida nas cidades.
Revela também que as pessoas que estão se deslocando querem consumir. Se os espaços comerciais não estão presentes no interior das estações ou estão e não atendem o público que viaja, os vendedores nas calçadas e praças do entorno satisfazem esse desejo. Predomina o consumo rápido nas três estações, sendo que na Barra Funda e em Pirituba é mais voltado para a alimentação. Em Jardim Helena-Vila Mara é direcionado para a dinâmica cotidiana do bairro, pois os clientes não são apenas os passageiros.
Mostra ainda que as pessoas precisam trabalhar e encontram oportunidades de emprego oferecendo produtos nas proximidades dos acessos das estações, refletindo o nível relevante de empregos informais que vem caracterizando a economia brasileira nos últimos anos e que foi agravado após os recentes períodos de recessão e a pandemia de coronavírus (2).
notas
NA — Este artigo tem como base os capítulos 6, 7 e 8 da tese de doutorado Estações ferroviárias de São Paulo: locais públicos da mobilidade, orientada pela professora doutora Fernanda Fernandes da Silva e defendida pelo autor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — FAU USP em 2023.
1
CRESSWELL, Tim. On the move: mobility in the modern western world. Londres, Routledge, 2006.
2
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua — Pnad Contínua, apurada pelo Instituto Brasileiro de Economia e Estatística — IBGE), a taxa de informalidade do país era de 38,9% no trimestre até abril de 2023.
sobre o autor
Rodrigo Morganti Neres é arquiteto e urbanista (FCT Unesp, 2009), mestre (FAU USP, 2018) e doutor (FAU USP, 2023). Atualmente trabalha como arquiteto na Companhia Paulista de Trens Metropolitanos — CPTM.