Vals é uma pequena vila suíça, localizada a 1.252m de altitude. Situada num vale, no interior dos Alpes suíços. O centro da vila é cercado por casas tradicionais, construídas majoritariamente em madeira e pedra, que se expandem ao longo da linha do vale.
O cinzento é o tom predominante na vila, suas coberturas em duas águas revestidas a pedra local predominam, permitindo deste modo quase integrem harmoniosamente com a verdejante paisagem envolvente, onde a presença dessa mesma pedra é uma constante nas encostas. Deste modo, tendo como cenário a presença imponente dos Alpes Suíços, arquitetura e natureza caminham lado a lado numa simbiose perfeita onde a serenidade, tranqüilidade e o silêncio imperam.
É neste cenário que se localiza o mais importante cartão postal desta pequena vila e um dos edifícios mais famosos no mundo da arquitetura, o Spa termal desenhado pelo arquiteto suíço Peter Zumthor.
O volume que repousa tranquilamente sobre a encosta foge do nosso alcance visual devido à sua implantação em relação aos edifícios que o envolvem. Rodeado a norte pelo hotel, por um par de edifícios de apartamentos a este e pela encosta a oeste, apenas somos confrontados com a obra de Zumthor pelo lado nordeste do terreno, onde um espaço entre o hotel e o edifício multifamiliar nos permite visualizar timidamente o edifício entre a abundante neve e as árvores despidas de folhagem.
Ao contrário de uma obra de Ghery ou Hadid, este primeiro encontro não se torna impactante nem provocativo, não nos faz reagir devido a sua imponência e forte expressão formal como nas obras destes dois arquitetos, pelo contrário, a sua materialidade provocando a sua difusão na paisagem, a sua expressão formal e sua disposição horizontal no terreno nos transmite um sentimento de que o edifício faz parte da geografia existente, pretendendo “amigavelmente” se relacionar com a envolvente e não se afirmar e reagir perante esta.
“Quando olhamos para objetos ou edifícios que parecem permanecer em paz com eles próprios, a nossa interpretação sensorial se torna calma e tranquila. Estes objetos que visualizamos não nos transmitem nenhuma mensagem; estão simplesmente ali...Neste vazio interpretativo uma memória surge...” (1)
Após iniciarmos uma pequena subida pela encosta em direção ao hotel de Vals, a estrutura implantada paralelamente às linhas de encosta, no alinhamento norte-sul do vale, surge então levemente aos nossos olhos, através de sua geometria pura e suas fenestrações de várias dimensões, subtraídas a esse bloco de pedra permitindo que o exterior penetre no interior.
Trata-se de um edifício que parece que sempre habitou e sempre pertenceu aquele lugar desde a sua primária existência. Um edifício pequeno e contido que se relaciona com a sua geologia local e que responde positivamente aos restantes volumes de pedra presentes na vila, volumes esses também contidos, prensados e revestidos em pequenas placas de pedra local. Essa relação pode ser observada na sua estratégia de implantação, através do volume semi-enterrado no terreno, com seu telhado constituindo uma extensão da topografia existente, contribuindo para uma acentuação da horizontalidade e da leveza do volume de pedra, enfatizando a relação entre o edifício-topografia-envolvente.
O ato do banho era praticado na Antiguidade nos rios e lagos como um ritual de purificação religiosa, associado à imersão. Um local de culto, onde a cura era obtida através do ritual de se banhar, beber a água termal e dormir num ambiente fechado. Porém, através dos tempos serviu também como prática de higiene pessoal, tratamento de saúde, convívio social ou celebração.
Os romanos foram o povo da antiguidade que mais se importaram com transformar o banho num evento, construindo termas públicas onde qualquer cidadão poderia desfrutar dos prazeres do banho. A maior parte das cidades romanas, tinham pelo menos um edifício dedicado aos banhos termais, não só exclusivamente para o ato de banhar mas também para o de socializar, acreditando que a boa saúde era oriunda de banhos, comida, massagens e exercícios.
Deste modo, fica evidente um paralelismo entre a obra de Peter Zumthor e os rituais antigos no que diz respeito à prática do banho. As termas de Vals, não se limitam apenas ao cumprimento de um rigoroso programa funcional, elas possuem um caráter místico, transformando o banho não apenas num corpo imerso em água, mas numa cerimônia e num ritual de pureza, através da iluminação natural ténua, dos espaços na semi-escuridão, numa atmosfera tranqüila, silenciosa e relaxante, que nos leva de volta à Antiguidade.
A curiosidade, o conhecimento e o desejo de contato com diferentes culturas sempre me acompanharam ao longo da vida. Meu fascínio pela história de civilizações antigas e suas respectivas origens, creio ser uma consequência dessa mesma curiosidade que adquiri quando, após a minha formação, iniciei uma série de diversas viagens a diferentes partes do mundo.
Petra é uma cidade localizada na Jordânia, às margens do deserto montanhoso do Wadi Araba e um dos locais arqueológicos mais importantes do mundo. O seu nome provém do grego “Petra” que significa pedra, um dos principais materiais presentes na paisagem, que como consequência é denominada também de “cidade das rochas”.
Uma das principais características de Petra quando atentamos na sua paisagem, é a presença de arenitos que devido à sua grande quantidade de óxido de ferro, pintam a cidade de amarelo, rosa e vermelho.
Aproveitando as características e a facilidade de trabalhar este material local, os habitantes de Petra, ficaram famosos não só pela sua extrema habilidade de esculpir sua arquitetura diretamente nas rochas, potencializando ao máximo a expressão deste material, mas também, pelos seus sistemas de túneis e de reservatórios de água, que abasteciam toda a cidade.A cidade ergue-se como uma enorme pedreira, onde as montanhas iam sendo esculpidas pelos seus habitantes de acordo com as suas necessidades arquitetônicas e urbanísticas.
Uma das principais obras arquitetônicas da cidade, considerada hoje uma das sete nova maravilhas do mundo moderno, segue este principio. Uma rocha avermelhada esculpida à mão,a partir de um bloco único de pedra, onde o processo de subtração, tirou partido partindo das suas linhas naturais e fissuras existentes, para desenhar e transformar uma simples rocha, num edifício que ficaria e ficará na memória por muitos anos, o Khazneh.
Por trás de sua impressionante fachada, se encontra uma área de formato quadrilátero, de cantos e arestas bem definidas, que fora subtraída da rocha da montanha, uma típica tipologia praticada em Petra para os espaços que albergam os túmulos. Sem nenhum tipo de ornamento, o seu interior à semelhança das termas de Vals, é ornamentado única e exclusivamente pela presença dos veios e das fissuras naturais da pedra local, onde a ausência de elementos visuais supérfluos é evidente para que o olhar e a mente não se desviem da sua função principal dentro deste espaço.
Perto de Khazneh presenciamos também uma série de rochas esculpidas, contendo túmulos menores, que aleatoriamente distribuídos nos surgem como pequenos buracos negros, que transformam o que era antes uma simples rocha numa “fachada” porosa e ritmada.Foi este cenário que me invadiu a mente, quando pela primeira vez avistei as termas de Vals.
Tal como Petra, um grande bloco de pedra local e de geometria bem definida emerge na montanha como se tratasse de um monólito que habitasse aquela paisagem há vários séculos. Uma massa de pedra porosa de cavidades subtraídas do volume, na fachada e no topo. O seu interior é acessado através de um túnel que liga o hotel às termas e por ele somos conduzidos por uma espécie de “sistema de canais”, como que escavados na própria montanha, para permitir o seu acesso às diferentes partes programáticas do edifício. Iluminados apenas por luz artificial, o ambiente escuro dado pelas paredes, pisos e tetos de cor cinzenta e preta nos guiam desde a recepção até aos vestiários e às diversas áreas de serviço.
O contato com o exterior é nulo, a sensação de estarmos sob a superfície terrestre é sentida através da materialidade e da ausência de qualquer sonoridade. Finalmente “os canais” deságuam numa “gruta imensa”, um espaço continuo fisicamente, porém limitado visualmente, ao qual chegamos pelo topo. Khazneh me visita novamente, o interior das termas parece um espaço esculpido diretamente da rocha, Vals Gneiss, a pedra local nos envolve por todos os lados, da mesma forma que nos envolve os arenitos vermelhos naquele espaço geométrico em Petra. Esta continuidade da materialidade através das superfícies do edifício é um elemento crucial no fornecimento de uma tranqüilidade visual e mental que nos leva a um nível de relaxamento elevado.
Descendo até a parte inferior, o contato com a água é inevitável, o espaço é descoberto à medida que o percorremos, e a “gruta imensa” nos apresenta vários conjuntos de outras grutas e cavernas fechadas onde o encontro da água, pedra, pele e luz natural difusa, criam uma atmosfera propicia à abstração da vida agitada do cotidiano e oferecem uma dimensão mística ao ato do banho. Aqui o tempo não existe, não há relógios, apenas o movimento do sol penetrando pelas pequenas fendas na cobertura nos dá a noção de que o tempo não parou.
“No compto geral, iniciamos um processo de escavação no local de construção, nomeadamente na encosta em frente ao hotel como se tratasse de uma pedreira, retirando grandes volumes de pedra e adicionando outros. A água começou fluindo e se armazenando em fendas e cavidades que se surgiram. Cheios e vazios, aberturas grandes e compactas, ritmo, repetição e variação – estas foram as nossas preocupações enquanto projetamos os esboços da pedreira. E, no processo mental de subtração da massa, um grande espaço intermediário e vasto surgiu, com um contexto de interligação esse espaço continuo se tornou cada vez mais fascinante. O nosso banho termal, uma enorme área continua, trata-se de um espaço que quando penetrado imediatamente é percepcionado como um todo, mesmo que não tenhamos a visão total do conjunto, eu tenho que percorrê-lo e descobri-lo passo a passo.“ (2)
A fachada este se apresenta na sua máxima forca e a linha horizontal da laje de concreto sobreposta às diferentes camadas de pedra dispostas horizontalmente acentua a ligação do volume com o terreno.
Uma das formas de iluminação é através de suas janelas, “cavidades” extraídas do volume, com diferentes tamanhos, possuindo um ritmo e alternância que estão diretamente relacionadas com a funcionalidade e hierarquia espacial interna, capazes de produzir uma variedade de sensações inerentes a cada espaço.
Captando a natureza através de seus vãos, estas cavidades trazem a luz natural e a paisagem envolvente para dentro do espaço, estimulando deste modo os sentidos em relação à tranquilidade e serenidade interna, conseguindo captar o exterior sem arruinar o ambiente interno.
Uma segunda forma de iluminação está relacionada com a estrutura do edifício que é constituída por um sistema modular de volumes cúbicos, em que cada um destes volumes suporta uma laje de concreto em balanço. O espaço que surge no topo entre cada laje forma uma série de fendas que cobrem toda a superfície da cobertura e que contribuem para uma acentuação da geometria e definição espacial. Essas fendas além de constituírem uma fonte de luz natural, permitem que o peso visual das lajes de concreto desapareça, fazendo com que a cobertura pareça flutuar no espaço.
As luminárias pendentes no interior do edifício, possuem uma luz fraca e amarelada que nos remete para uma viagem à antiguidade onde este tipo de iluminação era característica da atmosfera que os banhos públicos costumavam possuir.
Conclusão
Poderá um edifício mudar o modo como agimos e pensamos?
Poderá ele possuir o poder de nos confrontar emocionalmente?
Estas são algumas questões que me deparei depois de visitar as Termas de Vals.
De fato, não se consegue ficar indiferente a esta brilhante obra de Peter Zumthor, de alguma maneira ela nos toca, não da maneira que os edifícios de Ghery ou OMA o fazem, mas de uma maneira subtil, respeitosa e “diplomática” que nos leva a ponderar e a refletir sobre as diversas questões ligadas à vida humana.
Creio que a arquitetura não deve ser apenas uma série de imagens ou elementos visuais isolados como aqueles que vemos hoje em dia nos mais variados meios de difusão do séc.XXI. Em vez de transformar o mundo numa mera viagem visual sem sentido, penso que a arquitetura terá que expressar não só as necessidades funcionais e sociais que lhe estão inerentes, mas também uma continuidade histórica, uma tradição cultural a que pertence e acima de tudo responder à sua própria natureza e à sua própria essência.
Este edifício não é apenas um abrigo com uma função inerente, comum a todos os projetos de arquitetura. Não se trata apenas de uma simples associação de imagens bem sucedida, a sua existência nos transporta de sua natureza física para um mundo metafísico, um mundo de sensações. Uma vez confrontada com estes elementos, a arquitetura se demonstra apta para expressar o significado da vida e da própria humanidade.
Através das águas termais e do ato de banhar, o edifício comporta-se como um elo entre pessoas e natureza, fazendo com que os três possam coexistir numa simbiose perfeita. A materialidade, a ausência de luz, a abertura calculada e direcionada dos vãos, a ausência de ruído, a sonoridade da água, a ausência do tempo nos remetem para uma realidade paralela onde o stress, a pressão e a ansiedade do cotidiano, são eliminados e esquecidos temporariamente.
"Para projetar edifícios com uma sensibilidade e conexão à vida, deve-se pensar de um modo que vai muito além da forma e da construção." (3)
nota
NE
Publicação original: COSTA, Márcio André Lopes da. Paralelismos. Termas de Vals, a obra prima de Peter Zumthor. Blog Arquiteto da Felicidade, seção ensaios <http://arquitetodafelicidade.com.br/2013/06/26/paralelismos-termas-de-vals-a-obra-prima-de-peter-zumthor/#more-2836>.
1
ZUMTHOR, Peter. Thinking Architecture, Editora Birkhauser, Basileia - Boston – Berlin, 1999, página 17.
2
ZUMTHOR, Peter. Therme Vals. Editora Scheidegger & Spiess,Zurich, 2007, p. 38.
3
ZUMTHOR, Peter. Thinking Architecture, Editora Birkhauser, Basileia - Boston – Berlin, 1999.
sobre o autor
Márcio André Lopes da Costa nasceu no Porto, Portugal, a 10 de Julho de 1982. No ano 2000, ingressa na Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa, iniciando paralelamente em 2003, estágio no atelier Risco S.A.. Em 2004, realiza intercâmbio na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, regressando no ano seguinte a Portugal para colaborar com o arquiteto Álvaro Leite Siza Vieira, onde obtém uma proximidade muito grande com as obras projetadas por dois arquitetos distinguidos com o Prémio Pritzker, Eduardo Souto Moura e Siza Vieira. Em 2006 licencia-se com distinção pela FAUTL e regressa ao Brasil para colaborar com o escritório CDC Arquitetos e DDG Arquitetura, onde no mesmo ano inicia uma série de viagens por todo o continente sul americano realizando pesquisas sobre a arquitetura das civilizações Incas e Pré-Colombianas.
Em 2007 retorna ao sul Portugal para colaborar com o escritório Planassociados, fundando juntamente com mais dois sócios a Veqtor Arquitetos Associados. Iniciando uma série de parcerias em diferentes projetos entre estas duas empresas resultando na construção do Hotel Design Praia em Lagos e da Casa Almancil, em Portugal e na realização dos projetos Adega Momentos, Clube de Golf de Almancil e da Moradia Villa. No mesmo ano, elabora uma série de projetos em Portugal, o Departamento de vendas turístico de Golf, Infraestrutura de apoio desportivo de Boliqueime e o Restaurante da Praia em Almancil.
Em 2008 co-funda a filial do escritório em Moçambique com projetos em Chidenguele, Gaza, Moçambique, resultando na elaboração do projeto eco-turístico Sands Resort e da Casa Mangais em Luanda, Angola.
No ano de 2009 regressa definitivamente ao Brasil para colaborar durante 2 anos com o atelier Campo AUD, atuando em diversas áreas desde a urbanização de favelas, habitação social a concursos internacionais e nacionais. Em 2011 co-funda a filial da Veqtor Arquitetos Associados no Rio de Janeiro, Brasil, onde constrói dois pequenos auditórios e uma série de instalações hospitalares para o Hospital Quinta D´Or. Desde 2012 é convidado para colaborar com o Instituto de Transporte Aéreo do Brasil, realizando estudos, pesquisas e projetos no âmbito da área de planejamento aeroportuário para diversos aeroportos em vários pontos do país. É desde 2013 arquiteto convidado como júri de Trabalho Final de Graduação de Arquitetura por diversas Universidades do Rio de Janeiro.