As últimas décadas foram marcadas por frustradas tentativas para se efetivar o Museu Pelé em Santos. Poder público e iniciativa privada investiram em algumas propostas que não lograram êxito, sendo que em todas essas tentativas, ficava clara a importância que a instalação desse museu poderia trazer para a divulgação da cidade. As consequências positivas implícitas nesse equipamento cultural, como a criação de uma imagem publicitária qualificada na atração de turistas e negócios, além de possibilitarem uma melhora da autoestima da população, despertaram o interesse de várias cidades, demonstrando sua força como produto de comunicação e promoção urbana.
Isso terminou em 2007, quando a Prefeitura finalmente conseguiu firmar um acordo com Pelé, o “Rei do futebol”, o “atleta do século”, para fazer o museu em um local até então nunca pretendido, no antigo conjunto arquitetônico dos “casarões do Valongo”, na região central de Santos.
A definição para a ocupação dos casarões fora uma decisão política que encerrava definitivamente discussões intermináveis sobre sua instalação na cidade. Além disso, a escolha do local se deu também por outros motivos, como: a restauração de importante edifício histórico, solução de diversas questões jurídicas do imóvel, compatibilidade do programa de necessidades do museu com a área existente e catalisador da revitalização urbana da região.
A condição de arruinamento na qual o imóvel se encontrava, em decorrência do abandono dos proprietários, e os problemas fundiários e jurídicos que o imóvel possuía convergiam para um impasse que levava rapidamente os casarões à completa destruição. O acordo firmado entre a Prefeitura e o Governo do Estado encerrou essas questões, e a instalação do Museu Pelé nesse edifício foi entendido como momento oportuno de recuperação de um valioso bem cultural e de seu entorno, em acentuada deterioração decorrente do avanço das atividades portuárias na área urbana.
A intenção de levar a revitalização ao bairro do Valongo fazia parte de um dos projetos-âncora do programa de revitalização do Centro Histórico, atraindo investimentos para transformar o quadro atual de abandono de deterioração da paisagem urbana. Por ser um equipamento que atrairia muitos visitantes, crescia a expectativa de gerar desenvolvimento na região, fomentando novas atividades ao seu redor, melhorando a paisagem urbana e a segurança do local.
Os casarões do Valongo sofreram dois incêndios, em 1985 e 1992, que os levaram à quase total destruição, sendo que as coberturas e todo o interior, além de grande parte das quatro paredes laterais desabaram, ficando em absoluto abandono, vulneráveis a múltiplos fatores que provocaram a degradação dos edifícios e o estado de arruinamento em que permaneceram por muitos anos.
No correr do século 20, os edifícios sofreram descaracterizações decorrentes de modificações externas e acréscimos no interior em consequência das alterações funcionais. A sucessão de incêndios consumiu todos os elementos construtivos internos, acarretando total destruição dos ambientes. Restaram apenas fragmentos de paredes que compunham a volumetria dos edifícios. Apesar disso, os elementos construtivos conservados foram suficientes para levarem à compreensão da estética neoclássica dos casarões, servindo como referências fundamentais para a reintegração da configuração original e a reprodução desses elementos para a restauração.
Para a elaboração do projeto de restauração e reforma dos casarões, partiu-se da análise do estado de conservação do imóvel remanescente, constatando que o edifício continha graves problemas estruturais, com paredes em situação de risco de desabamento, compreendendo a urgente execução de novos escoramentos das paredes por meio de andaimes metálicos, uma vez que a consolidação estrutural investida no início da década de 1990 sofreu corrosão das peças metálicas, colocando-o em risco de eminente desabamento das paredes existentes. No ano de 2009, o desmoronamento de uma parede serviu como alerta final para que principiassem os trabalhos de restauração.
Além disso, as paredes revelaram diversos trechos deteriorados, que contavam com densa vegetação que se incorporara na alvenaria de pedra, gerando riscos de desmoronamento. Elementos decorativos teimosamente permaneciam agarrados a plantas e rebocos. A situação de desagregação e consequente queda do revestimento era a patologia comum aos paramentos. Dos caixilhos de madeira restaram algumas unidades bastante descaracterizadas. Caso similar se manifestou com os gradis de ferro dos balcões. Com o tempo, as fachadas foram ficando cada vez mais vulneráveis às intempéries ou à depredação de invasores que levavam elementos construtivos de gradis, pisos de ladrilho hidráulico, ferragens, buzinotes, cantarias de pedra, entre outros.
Após a verificação de seu estado de conservação e as respectivas patologias, foram iniciados os procedimentos técnicos adequados para limpeza e recuperação das alvenarias antigas, compreendendo a reconstrução das partes desprendidas e desagregadas segundo os métodos construtivos tradicionais. Em seguida, foi providenciado o escoramento provisório das paredes, mantido até a execução do novo sistema estrutural que vinculou paredes novas e antigas.
Com a finalidade de restaurar e reformar o edifício histórico, adaptando-o para abrigar o Museu Pelé, o projeto arquitetônico tinha como premissa inicial a reconstrução das paredes externas de acordo com as características formais originais, refazendo a tipologia neoclássica que, além de resgatar a imagem do edifício arruinado, tinha como finalidade a valorização do conjunto arquitetônico do entorno, que é uma importante referência na história da cidade, composta por edifícios que compõem paisagem única ligada ao ciclo econômico do café.
Em face do arruinamento do edifício, a proposta de reconstrução das paredes que compõem a volumetria perdida, definida no partido de restauro, trouxe ao debate questões sobre o significado dessa materialidade segundo a imagem original. Tal escolha fora motivada, sobretudo diante do alto valor simbólico e arquitetônico do histórico imóvel, contrapondo às reformas sucedidas no correr dos anos que, em vez de agregar qualidade, promoveram descaracterização e deterioração generalizada.
A quantidade de informações colhidas permitiu adotar soluções arquitetônicas que estivessem em sintonia com as atuais teorias do restauro. Os critérios escolhidos obedeceram aos procedimentos usuais de intervenção em edifícios históricos, facilitados pela existência de levantamentos arquitetônicos e iconográficos anteriores à destruição, que permitiram a reconstrução da antiga tipologia. A simetria dos componentes construtivos facilitou o refazimento das partes que se encontravam destruídas, em obediência à modulação neoclássica de origem. Assim, as paredes remanescentes, somadas às cantarias de pedra lioz, se apresentavam como referências indutoras e tangíveis para a execução
A opção por reconstruir as paredes inexistentes consoante os vestígios originais remete às questões ligadas ao seu valor cultural em si, reconhecido no tombamento homologado pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado), em 1983, e posteriormente pelo CONDEPASA (Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Santos), quando as paredes ainda resguardavam a feição original. Os remanescentes que permaneceram mantinham referências fundamentais do partido arquitetônico de origem, permitindo a leitura plena das antigas características formais, tornando possível a reprodução desses elementos, necessários para a compreensão do todo. Dessa forma, o projeto buscou reconstruir as fachadas perdidas, refazendo envasaduras,volumetria e acabamentos, respeitando o entorno e a integridade da paisagem urbana do lugar.
Composto pela Igreja e Ordem Terceira de Santo Antônio (século 17), Estação Ferroviária (1865), conjunto de edifícios ecléticos e armazéns do cais (início do século 20), o bairro do Valongo reúne paisagem urbana peculiar onde se destacam os “casarões”, objeto estratégico nessa configuração diversificada. Nesses termos, reconstituir a imagem do edifício se justificava pela recomposição da memória vivenciada do lugar.
Ao intervir no edifício arruinado contendo significativos valores artísticos, históricos e culturais, o projeto levou em conta a qualidade única e insubstituível dos casarões, entendendo-o como obra de arte e documento histórico. Desse modo, o partido do restauro definiu a reconstrução das paredes externas – “como eram e onde eram” –, recuperando a imagem externa do conjunto arquitetônico tombado e a paisagem urbana do local. As novas funções propostas para atender a um museu seriam adaptadas aos espaços existentes, agora com áreas maiores decorrentes do espaço vazio causado pelos sucessivos desmoronamentos, ocasionando maior liberdade projetual e facilitando o atendimento do programa proposto. Optar pela reconstrução dos pavimentos com as antigas compartimentações de salas ao longo de um corredor se mostrava incompatível com o novo programa de necessidades do museu.
O projeto teve o cuidado de entender as peculiaridades arquitetônicas do imóvel tombado, valorizando-os como documento histórico e espaço cultural de uso contemporâneo. O interior recebeu espaços com maiores qualidades plásticas e espaciais, sem prejudicar a imagem externa do imóvel, promovendo um renovado sentido de qualidade e unidade para o museu. De modo simultâneo, os edifícios se voltam para a interação com o entorno, ao se reintegrarem à paisagem urbana em processo de revitalização.
Sendo o conjunto arquitetônico constituído por dois blocos laterais, originalmente com três pavimentos, conectados por edifício térreo, o programa de necessidades foi adaptado às características espaciais dos casarões. O museu deveria contar com grandes áreas para a exposição do acervo que, em face do dimensionamento prévio, demandaria toda a área dos blocos laterais. Desse modo, optou-se por concentrar essa função em apenas um dos blocos, ampliando as áreas construídas por meio de mezaninos. A disposição desses mezaninos permitiu a criação de um átrio, e foram conectados por rampas nas laterais, possibilitando acesso a todos os pavimentos em um percurso onde se observa todo o interior do bloco. A entrada do museu ficou setorizada no corpo central diante das facilidades de organização e distribuição da circulação dos visitantes por meio de amplo espaço de acolhimento, dotado de café e loja. O outro bloco lateral esteve reservado a equipamentos de apoio – auditório e administração – e áreas para exposições itinerantes e eventos. O auditório foi projetado como uma caixa em concreto apoiada em pilotis, ficando isolado entre os pavimentos térreo e primeiro.
Um dos desafios enfrentados no projeto se revelou na escolha do local que abrigasse a infraestrutura de elétrica (cabine primária, transformador e gerador) e ar condicionado, sem que houvesse interferência nas fachadas do casarão. Esses equipamentos tiveram as instalações no bloco central, sem a percepção do público.
Desse modo, as atividades do museu ficaram distribuídas da seguinte maneira: bloco central contendo o pavimento onde se encontra a entrada do museu com bilheteria, hall, loja, café, sanitários, vestiário de funcionários e infraestrutura de elétrica e ar condicionado; bloco 1 com três pavimentos, sendo no térreo a área para exposições temporárias e equipamentos multimídia; no primeiro pavimento, área para exposições, eventos e outras atividades planejadas para o museu; nesse pavimento também há acesso ao auditório com 88 lugares destinado a filmes e palestras, e, acima dele, uma galeria para exposições; no terceiro pavimento está o setor administrativo, compreendendo salas da direção, monitoria, salas de reuniões, espaço destinado para receber autoridades e personalidades, além da reserva técnica que abriga todo o acervo de peças, objetos e documentos de Pelé; bloco 2: exposição do acervo permanente – fotos, filmes, troféus e material impresso dispostos nos sete mezaninos que compõem esse edifício, contendo átrio central ladeado por passarelas de concreto que acessam os diversos planos, gerando permeabilidade e leveza.
O diálogo presente entre a nova arquitetura, no interior, e a reconstituição da imagem histórica, no exterior, foi cercado de cautelas, prevalecendo o respeito e a hierarquia do edifício antigo. Na intervenção de bens culturais, a relação entre “novo e antigo” vem há tempos despertando calorosos debates entre especialistas da restauração, e nesse caso, o projeto, levou em consideração as particularidades da obra e do seu entorno para que a intervenção ocorresse de maneira respeitosa e valiosa, aproximando-se de uma relação positiva entre construção nova e antiga.
Para a reconstrução e a restauração dos casarões, foram realizados projetos de fundação e estrutura que garantissem a estabilidade dos paramentos remanescentes em alvenaria de pedra. O projeto propôs um sistema em grelha de concreto armado junto às paredes, para auxílio do travamento das novas alvenarias com as antigas, ao mesmo tempo que sustenta lajes e cobertura. Antes do início das obras, foram tomadas medidas preventivas, como a instalação de sensores para monitoramento de vibração nas paredes, com o propósito de verificar possíveis ocorrências de desmoronamento durante os trabalhos de cravação das estacas.
Ao todo, foram instaladas mais de duzentas estacas, com profundidade média de quarenta e cinco metros, sem que houvesse a ocorrência de qualquer dano às paredes originais.
A viabilização técnica da construção dos diversos pavimentos ocorreu pelo emprego de estrutura em concreto protendido, sistema que favorece a eliminação de vigas e, por alcançar maiores vãos, conta no apoio com poucos pilares. Além de favorecer os espaços expositivos, oferece resultado plástico de maior leveza e contemporaneidade à solução arquitetônica projetada. O sistema protendido, devido à pequena espessura de laje, permitiu a criação de sete mezaninos em um dos blocos, potencializando a área de exposição e gerando permeabilidade espacial que conduz à ampliação do raio de observação do acervo exposto.
Para a restauração das paredes originais em alvenaria de pedra foi utilizada a mesma técnica construtiva original, garantindo o mínimo de interferência em sua autenticidade. Para isso foram reaproveitadas algumas pedras que se encontravam no terreno, sobra dos desmoronamentos que ocorreram, permitindo a reintegração de trechos deteriorados. Na execução das novas paredes para complemento da volumetria original, lançou-se mão das técnicas construtivas usuais, como a utilização de alvenaria de bloco de concreto e tijolos de barro maciço, seguindo a mesma espessura das paredes originais.
A adoção de técnicas construtivas contemporâneas na restauração de bens culturais é permitida desde que sejam compatíveis e de eficácia cientificamente comprovada, conforme estabelecido na Carta de Veneza (1964), documento-base que trata internacionalmente a questão da restauração e conservação de monumentos históricos, indicando modos de intervir no bem cultural.
Em outras intervenções, foi possível buscar a autenticidade dos materiais originais como no caso das esquadrias de madeira das fachadas, gradis em ferro dos balcões e azulejos, que foram executados réplicas dos modelos que existiam, como também em a toda ornamentação que compõe as fachadas. A presença de fragmentos de esquadrias originais somados ao levantamento iconográfico compuseram informações valiosas para a sua reconstituição.
Essas informações permitiram o refazimento das portas e janelas em conformidade com o desenho do século 19. De modo semelhante procedeu-se a recuperação dos gradis. Os ornamentos foram restaurados in loco. Algumas peças serviram como referência para a elaboração de formas de borracha e posteriormente executada réplicas em argamassa de cimento e areia desses elementos decorativos. Posteriormente foram fixados em seu local de origem. As molduras, pingadeiras e cimalhas também foram executadas in loco conforme as suas características formais existentes, utilizando moldes deslizantes. A cobertura foi completamente reconstruída consoante as características do passado, executada em estrutura de tesouras em aço, opção necessária em face da resistência e durabilidade. Terças e ripamentos em madeira se sobrepuseram à estrutura e posteriormente recoberta com telhas de barro tipo francesa.
A conclusão da restauração dos casarões do Valongo representou um enorme ganho para a preservação da memória da cidade. Conseguir trazer de volta ao presente um edifício tão importante que se encontrava arruinado e sem expectativa de solução, resultou no esforço conjunto dos poderes públicos e da iniciativa privada que se mobilizaram, segundo um objetivo comum direcionado para a instalação do Museu Pelé. Desse modo, foi trazido de volta à paisagem urbana o importante edifício da primeira fase do ciclo econômico do café no estado de São Paulo, patrimônio cultural que muitos já haviam esquecido.
sobre o autor
Ney Caldatto Barbosa é autor do projeto do Museu Pelé, arquiteto da Prefeitura de Santos, professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Católica de Santos, e membro do Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Santos – CONDEPASA