nota do editor
No início de março de 2016, o portal Vitruvius publicou artigo de Marcelo de Paiva (ver nota abaixo) que aborda os conflitos entre população e poder público na cidade de Ribeirão Pires, Estado de São Paulo. Militantes pela preservação do patrimônio histórico luta para salvar a Fábrica de Sal, um edifício fabril do final do século 19 às margens da Estrada de Ferro Santos Jundiaí, que corre o risco de ser convertido em Shopping Center.
A situação é ainda mais alarmante diante das ações anteriores pela preservação e conservação das antigas instalações do Moinho Di Semole Fratelli Maciota. Em 2001 a área foi desapropriada pela Prefeitura Municipal de Ribeirão Pires e convertida no Centro Educacional de Ribeirão Pires, com centro cultural, escola e secretaria de ensino.
O projeto de arquitetura e paisagismo de requalificação da antiga fábrica é de autoria dos arquitetos Rafael Perrone e Márcio do Amaral e foi premiado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, departamento São Paulo (IAB-SP) em 2004.
Aqui estão publicados dois documentos fundamentais para compreender a importância do projeto e a necessidade de sua preservação: nessa página, abaixo, um texto teórico de um dos autores do projeto arquitetônico, onde são apresentados os critérios projetuais e os conceitos teóricos que regulam a intervenção; e na página seguinte, ao lado, o próprio projeto arquitetônico, com desenhos e fotos da época da inauguração do complexo.
PAIVA, Marcelo de. Fábrica de Sal. Patrimônio cultural e disputa pelo espaço público. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 188.03, Vitruvius, mar. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.188/5965>.
Aspectos arquitetônicos na recuperação do edifício Moinho Di Semole Fratelli Maciota
Rafael Antonio Cunha Perrone
As questões relativas ao patrimônio, não suficientemente compreendidas pelo movimento moderno, foram retomadas pela arquitetura contemporânea. As mais recentes análises atestam que ela caracteriza-se por um conjunto não homogêneo de posturas, resultado de uma diversidade de visões, pluralidade de condutas e formas, como atestam críticos e historiadores internacionais como Josep Maria Montaner (1) e brasileiros como Maria Alice Junqueira Bastos (2).
Entretanto, em todas estas posturas, por mais variadas que sejam suas proposições, as questões relativas ao sítio, memória e patrimônio tornaram-se significativas. Foi a partir dos anos 1960 que elas tornaram-se, juntamente com as indagações sobre a identidade, referências teóricas decisivas nos campos disciplinares e projetuais da arquitetura.
No inicio do século passado, prevaleceram as proposições dos arquitetos modernos que constituíram seus discursos dirigidos à uma visão do futuro. Futuro apoiado, para eles, nos valores positivos da ciência, na crença da potencialidade das técnicas e nas esperanças conduzidas pelas visões utópicas e socialistas do surgimento de um novo homem e de um novo mundo.
Mantiveram-se, entretanto, latentes no pensamento arquitetônico outras visões, por vezes contidas em posicionamentos nostálgicos, por vezes conduzidas pelas próprias condições de produção capitalista da cidade, tendo como motores a cultura do mercado e as linguagens dela decorrentes. Outras visões nasceram da observação dos valores contidos nos patrimônios arquitetônicos: a constituição das memórias e das identidades sociais. Nesse sentido, à medida que o tempo passou e as obras modernas foram tornando-se objeto da história, a própria atitude da corrente moderna, em relação ao passado, teve de ser revista. Assim, aquelas visões latentes estabeleceram-se com mais clareza, sem confundir-se com a defesa de estilos ou do historicismo.
Nos anos 1960, os textos de Aldo Rossi, A arquitetura das cidades (3) e de Jane Jacobs, Vida e morte das grandes cidades (4), estabeleceram significativos referenciais para a compreensão dessas revisões.
Rossi vendo na cidade a arquitetura, recupera o conceito de “tipo” e morfologia urbana transformando-os em elementos primordiais para os novos projetos. Jacobs caracteriza outra visão retrospectiva, contrapondo a cidade moderna, fragmentada por zonas, aos elementos públicos das cidades tradicionais como a rua, as relações de vizinhança e o multifuncionalismo.
Nas últimas décadas do século 20, devido à ampliação da globalização e a inserção dos novos moldes de internacionalização da arquitetura , essas revisões ressoaram em reações críticas e teóricas que deram primazia a busca da identidade e a preservação do lugar como fundamentos dos artefatos arquitetônicos.
A primazia da utilização do conceito de lugar deve-se basicamente a duas linhas de compreensão. A primeira delas esta apoiada em Christian Norberg-Schulz (5) que ressalta a existência de um genius loci, um espírito do lugar que revela na sua constituição uma essência de caráter para a arquitetura a ser nele implantada.
Outra visão sobre a importância dos lugares é manifestada por Kenneth Frampton em sua obra Modern Architecture: A Critical History (6) e em Prospects for a Critical Regionalism (7). Nesses trabalhos ele enfatiza a reinterpretação do local e de sua cultura como eixos diretivos da arquitetura. Para Frampton, eles podem ser forças manipuladoras das formulações de projeto, tendo o cuidado de que a cultura contemporânea participe de modo que eles não venham a configurar uma postura endógena ou passadiça.
Nesse estudo de caso aborda-se a elaboração de um conjunto de edifícios destinados ao Centro Educacional de Ribeirão Pires. Devido a existência, no terreno destinado a sua implantação, de antigos edifícios industriais, as definições do projeto envolveram-se nos critérios e técnicas de sua recuperação e de seu inventário, descobertos e entendidos como elementos da memória da cidade. Ao mesmo tempo que realizaram-se estas definições, desenvolveram-se estudos morfológicos e seleção de elementos para a intervenção e a mudança de usos intentados.
A proposta do projeto definiu-se por uma pesquisa do lugar e uma metodologia estruturadas na crítica contemporânea (com ênfase nos conceitos da recuperação da memória) e estabelecidas por meio de uma interpretação de atitudes e projetos referenciais.
O programa do projeto
A área central da cidade Ribeirão Pires tem sido, por iniciativa da Prefeitura Municipal, objeto de um amplo trabalho de requalificação. Em 1999, com projeto de autoria dos arquitetos Caio Boucinhas e Raul Pereira, foi objeto de uma transformação substantiva com ampliação dos espaços livres, requalificação de calçadas e equipamentos públicos.
Outras melhorias foram recebidas em regiões próximas, como o tratamento paisagístico da Av. Brasil e em áreas lindeiras, como a remodelação do Paço Municipal e a recuperação do terminal rodoviário. Todas essas requalificações deram-se em locais pertencentes à área conhecida como Centro Baixo.
Dentro desse conjunto de programas foi desapropriada a área de uma indústria, situada no outro lado da ferrovia, no bairro conhecido como Centro Alto. Essa área pertenceu a uma antiga fabrica de sal, desativada desde o início dos anos 1990, a qual estava abandonada em processo de deterioração.
Devido a sua proximidade da praça da Matriz, o terreno da fábrica, com aproximadamente 12.000m2, tinha um grande potencial para dinamizar o lado mais antigo do centro da cidade, complementando as ações em realização no bairro do Centro Baixo. Selecionada por essas características locacionais, a área foi objeto de duas grandes proposições de intervenção.
A primeira proposição consistia na construção de um complexo educacional composto de um edifício de ensino infantil e fundamental, uma área administrativa para utilização da Secretaria da Educação e um complexo destinado a um Centro de Formação de Professores para o atendimento a várias necessidades de projetos educacionais.
A segunda intervenção proposta era de criar-se uma ligação viária entre o Centro Alto e o Centro Baixo. Essa intervenção visava articulá-los de modo a possibilitar a passagem de pedestres e veículos sob os trilhos do trem. A ferrovia mesmo tendo promovido o desenvolvimento do núcleo da cidade, gerou-o dividido, impedindo uma salutar permeabilidade da malha urbana e seus fluxos.
O programa da escola previa o atendimento em oito salas para ensino infantil e fundamental, com correspondentes áreas de apoio, administrativas, pedagógicas e recreativas.
O programa da Secretaria foi dimensionado em função das atividades existentes e futuras, com o objetivo de criar um prédio onde pudessem conviver espaços privativos, para as atividades administrativas, com as áreas destinadas ao acesso de público, para os programas de atendimento educacional.
O edifício do Centro de Professores deveria abrigar um amplo auditório, salas de aula e de atividades, ambientes para reuniões e seminários, um espaço para exposições e outros tipos de encontros.
Inicialmente, todas essas intervenções foram concebidas para serem realizadas ao mesmo tempo. Previa-se o rebaixamento da Rua Santo André e sua interligação com a Av. Humberto Campos. Este fator gerava uma subdivisão da área em dois lotes cortados por uma via rebaixada.
Como parte da proposição original as áreas do terreno não edificadas deveriam ser ocupadas como grandes espaços públicos abertos com características de praça.
Em relação à apropriação das edificações históricas havia recomendação da manutenção de elementos das construções existentes, principalmente da chaminé, por sua notória função referencial. Os outros elementos a serem mantidos seriam definidos ao longo do processo do projeto, através de avaliações ou os levantamentos técnicos, cadastrais e históricos.
Breve histórico da área
A implantação original do “Moinho Di Semole Fratelli Maciota”, em Ribeirão Pires no ano de 1898, deve-se à existência da ferrovia. Esta era o elemento estratégico mais importante para transporte de insumos e distribuição dos bens produzidos.
O desenho do terreno e a implantação do prédio original são conseqüências do traçado do ramal da ferrovia que acabou por determinar uma angulação marcante dos primeiros em relação à trama da cidade. Por outro lado, a importância do empreendimento foi definida por seu posicionamento junto à área central, próximo à Igreja Matriz e à estação ferroviária. A magnitude do Moinho era também notada pela sua entrada, pois seu lote finalizava a atual Rua Santo André, de elevada importância na cidade. Esta rua desenvolvendo-se linearmente ao longo da ferrovia, desenhava o caminho para os núcleos urbanos de Rio Grande da Serra e Paranapiacaba, unindo-os, através de Ribeirão Pires, a Mauá, Santo André e, mais adiante, à própria capital.
Em fotos antigas, a chaminé e o corpo do edifício industrial constituíam junto com o prédio da Matriz, o perfil dos marcos referenciais do Centro Alto da cidade.
Os registros relativos ao Moinho de Trigo constituem-se dos documentos da formação da empresa e dos desenhos de plantas, provavelmente da configuração inicial da edificação, fornecidos pelo CAPT – Centro de Apoio Técnico ao Patrimônio do Município. No que diz respeito ao empreendimento sabe-se que a sociedade entre os irmãos Frederico, Anacletto e Ottavio Maciotta, foi constituída, no ano de 1981 em Gênova, sete anos antes da conclusão da obra.
A área do projeto era utilizada anteriormente para algumas casas de trabalhadores, ranchos e fornos para fabricação de tijolos. passando em 1897, para a utilização dos irmãos Maciotta. A permissão de novo uso, para a construção do moinho, foi outorgada por meio de escritura pelo antigo proprietário Claudino Pinto de Oliveira e sua esposa.
O Moinho Maciotta teve vida relativamente curta, pois, aproximadamente em 1910, passou a ser propriedade de José Mortari, vindo a ser conhecido como “Moinho Mortari” do qual o museu de Ribeirão Pires detêm alguns documentos fotográficos.
A história de sua utilização final como Fábrica de Sal (refino) veio a ocorrer a partir de 1946, quando a família Cotelessa instalou-se nas antigas construções, aproveitando-se da situação estratégica do local.
O refino do sal dava-se por meio do recebimento do produto bruto através dos trens que vinham do Porto de Santos. O sal era descarregado nas plataformas e nos galpões foram construídos silos de armazenagem e tanques para lavagem. Após a lavagem o sal era, finalmente, torrado, moído, peneirado e ensacado para a distribuição.
Entre o período do Moinho Mortari e a utilização para Fábrica de Sal em 1946, o local teve outros usos. Apesar da falta de registros, parece ter havido produção de salitre e de adubos no local durante o período da II Guerra Mundial.
Do ponto de vista arquitetônico, as diversas mudanças de proprietários e de funções acarretaram em uma total descaracterização das construções iniciais e daquelas que a sucederam.
A cultura de elaborar “puxados” que se agregam às edificações, sem o devido cuidado projetual técnico, transformou as instalações, não num palimpsesto, mas num verdadeiro pardieiro. Nas operações construtivas realizadas, a falta de qualquer critério arquitetônico agregou-se ao descuido técnico, fatores que provocaram a descaracterização e deterioração das construções.
Embora os diversos usos da fábrica tivessem grande importância na constituição da vida da cidade, poucos registros da transformação de seus edifícios foram deixados. Acrescente-se o fato de que evitar “aprovações” nos órgãos de controle da legislação edilícia, transformou-se em prática cultural corrente em todos os municípios brasileiros, dificultando o conhecimento das construções por qualquer interesse público.
A fase final da vida das construções do antigo moinho, até nosso primeiro contato, foi de abandono. O local passou a ser exposto ao tempo e ao vandalismo. As edificações originais já descaracterizadas pelas sucessivas alterações, foram mutiladas pela depredação que retirou delas os poucos materiais comercializáveis. Encoberto pelos “puxados” e escondido meio à depredação, nada lembrava o edifício do moinho que se destacava na paisagem.
A fábrica que deu origem à vida da cidade era um espaço morto, um estorvo no desenvolvimento. A última lembrança que poderia haver era a do descaso, a cidade esquecia-se da fábrica num procedimento similar ao da sociedade que, hoje, descarta um produto ultrapassado, jogando-o no lixo ou armazenado-o num porão qualquer.
As primeiras incursões projetuais realizadas visaram definir um partido bastante compacto, optando por um edifício de formato triangular, com pátio central, em que se desenvolveriam, em cada um dos seus lados, as atividades propostas.
O primeiro ensaio projetual foi baseado apenas nos desenhos de levantamento planialtimétrico fornecidos contratualmente, pois com a desapropriação em andamento era inviável um conhecimento aprofundado sobre as edificações existentes, assim preservou-se a chaminé e algumas “supostas” paredes da construção original.
Logo em nossa primeira visita ao interior da obra, em janeiro de 2001, pudemos, ao lado da constatação do estado lastimável das construções, observar com mais detalhes a existência do conjunto arquitetônico original, quase irreconhecível dado aos resultados das agregações e mutilação sofridas.
Nessa ocasião, em comum acordo com a Prefeitura, redefiniu-se o partido do projeto. Passou-se, com maior ênfase, à busca do reconhecimento do legado patrimonial, à procura de documentos existentes, à definição de critérios de preservação e a elaboração de levantamentos técnicos.
O partido do projeto foi redefinido, formulando-se que os programas da escola, da Secretaria e do centro de formação seriam tratado através de 3 (três) edificações. Esse novo partido permitiria o uso mais funcional dos espaços requeridos nos programas mais institucionalizados como os da escola e da Secretaria, a serem distribuídos em prédios novos. As edificações da fábrica seriam reservadas para utilização do Centro de Professores cujo programa era mais “livre”, com ambientes maiores e mais compatíveis com os espaços remanescentes. Além disso, esses espaços e sua destinação de uso poderiam restaurar o simbolismo e importância do prédio industrial.
Nessa ocasião, foi proposta a contratação de um levantamento cadastral minucioso da construção contendo medidas dos vãos existentes e desenhos em elevação de cada parede do edifício industrial.
Este levantamento foi conduzido pelo engenheiro Massao Arikawa, permitindo uma identificação mais completa das construções existentes e de suas possíveis fases de execução. Além do levantamento cadastral, foi realizada uma ampla documentação fotográfica, a qual comparada com o levantamento, possibilitou a descoberta de possíveis desenhos contidos nos prédios e suas alterações.
A inclinação do corpo superior da chaminé e a constatação de que seu coroamento já havia sido retirado (ou ruído), aliados a constatação da existência de paredes e estruturas colapsadas, conduziu a contratação de um parecer de outro especialista.
Para este parecer e vários outros relacionados à estrutura e alvenaria foi contratado o Engenheiro Dr. Luís Sérgio Franco, professor da Escola Politécnica da USP.
Em seu parecer, o professor avaliou como segura a manutenção da chaminé e analisou as paredes colapsadas, definindo com clareza os elementos tecnicamente possíveis de serem preservados.
Deve-se recordar para efeito de registro que as construções mais antigas, realizadas em alvenaria de tijolos de barro resistiram, mais vigorosamente, à atmosfera salina da indústria. Fato que não ocorreu com as estruturas de concreto, devido à corrosão provocada nas ferragens dos pilares e vigas.
Pelo lado da Secretaria da Educação, confirmou-se a diretriz do projeto arquitetônico como elemento da história urbana assim como a intenção do resgate didático das características do prédio, inclusive propondo que em alguns aspectos se permitisse a percepção dos ferimentos e maus-tratos recebidos pela edificação ao longo de sua história.
Em visitas realizadas ao local, foram definidos princípios desse resgate, como a manutenção de algumas paredes, frontões e o aproveitamento de uma grande seringueira existente como elemento de paisagem, fixando-a no centro do pátio da escola a ser construída. Confirmou-se, também, a não manutenção dos galpões industriais com cobertura em arco, provavelmente dos anos 1950. Os escombros desses galpões seriam demolidos. Essa decisão foi tomada quer pela sua situação estrutural, quer porque “escondiam” a construção “original” e também porque, embora fazendo parte da história, não apresentavam nada de exemplar em sua configuração.
Estabeleceu-se a ocupação do terreno, ainda contando com a passagem viária de ligação entre os dois lados da cidade. Permaneciam agora, além da chaminé, o suposto corpo original da fábrica e alguns frontões remanescentes que ainda não se encontravam colapsados. A configuração dessa proposição pode ser vista numa perspectiva onde se notam as proposições de preservação, a criação da praça central e a passarela de interligação sob a via rebaixada.
Referenciais históricos e técnicos e a reconstrução do lugar
A compreensão do lugar só tem sentido quando realizada por meio de sua história social e técnica. Sua geografia e a geometria nela construída decorrem de como os habitantes as compreenderam e as edificaram materialmente, como artifício humano.
As atividades decorrentes dessa visão originaram dois percursos paralelos de pesquisa, o histórico documentando a vida do lugar, seu sítio, nascimento e transformação, e o técnico descrevendo seu estado e diagnosticando sua situação como fato urbano, arquitetônico e técnico.
A pesquisa de ordem técnica constituiu-se por um levantamento cadastral de todas as edificações existentes com laudos técnicos sobre sua situação estrutural e sobre as patologias existentes. Além dos desenhos foram realizadas fotografias para estudos e análises das edificações suas dimensões, materiais e técnicas utilizadas.
O cotejamento da pesquisa histórica com a técnica possibilitou delinear um mapeamento das etapas construtivas das instalações e definir estruturalmente os elementos construtivos que poderiam ser mantidos e quais os irremediavelmente perdidos.
Novos delineamentos para o projeto surgiram dessas pesquisas histórica e técnica definindo os elementos da identidade e memória que devessem e pudessem ser utilizados. Assim fixaram-se algumas diretrizes para o projeto:
- refazer a memória do prédio original do moinho caracterizando sua forma, escala e desenho com relação a cidade;
- restaurar a chaminé – símbolo da edificação industrial;
- evidenciar a relação com a ferrovia da qual decorreu a cidade e as edificações industriais;
- revelar as transformações sofridas pelas edificações de forma didática apresentando inclusive o descaso com que em certos momentos foram tratadas.
Os outros elementos existentes no terreno não seriam mantidos. Como memória da paisagem, manteve-se a preservações da grande árvore existente que, mais tarde, soube-se que foi plantada por um dos administradores da fábrica, como um local para sua filha brincar.
Referenciais arquitetônicas: a recomposição
A preservação do patrimônio arquitetônico compõe-se hoje, de um conjunto de procedimentos cuja conceituação deriva da evolução da ideia de restauração conforme indica Beatriz Mugayar Kuhl (8).
A preservação é contemporaneamente entendida dentro dos seguintes conceitos:
- restauração é a reconstrução idêntica de parte ou de todo um edifício em virtude de seu valor patrimonial;
- reconversão é uma operação realizada para mudar o uso de um edifício impedindo que ele torne-se inútil;
- reabilitação é a ação de melhorar um edifício conservando a sua função original.
A pesquisa apontava para as necessidades de uma outra categoria. Introduziu-se a ideia de recomposição. A recomposição seria uma operação onde o uso seria mudado mas as tarefas de recuperação da memória existiriam como eixo do projeto. A memória por sua vez deveria ser encontrada, restabelecida e, em alguns pontos, reconstituída.
Novas funções deveriam ser abrigadas e, nesse sentido, é possível afirmar que, no caso, a definição funcionalista de Sullivan (1856-1924) sofreria uma certa inversão, isto é, a função seguiria a forma.
O termo recomposição pareceu, assim, mais adequado para incorporar memória e intervenção, preservação e reutilização, entendendo-se as ações e utilizações novas como interligadas à reconstrução da memória e das identidades.
A pesquisa arquitetônica buscou encontrar, em intervenções exemplares, as referências para o projeto.
Dentre as referências internacionais surgiram as obras de Carlo Scarpa (1906-1978) em que coabitam o novo e o antigo. A ideia de tensão exprime a relação de Scarpa com a história. Seu diálogo nunca é só com o passado, mas com a presença do passado no presente, com todo feito em seu entorno, com a continuidade.
As intervenções de Reichen e Robert, na antiga Fábrica de chocolates Menier (1992-1995), as conhecidas intervenções projetuais de Herzog e Du Meuron, na Nova Tate Modern (1995-2000), foram também revisitados para a compreensão das possíveis articulações entre o novo e o antigo.
As experiências brasileiras mais significativas foram as do projeto do Sesc Pompeia em São Paulo (1982-1986), de Lina Bo Bardi (9), e a do Parque das Ruínas, no Rio de Janeiro (1997-1998), projetado pelos arquitetos E. Freire e S. Lopes.
Com esses panorama da produção arquitetônica e definido o conceito de recomposição foi possível aliar a pesquisa histórica às atitudes projetuais.
Assim, na recomposição proposta a atitude, em relação as linguagens do antigo e o novo, foi didática revelando uma clara distinção por oposição de materiais e ao mesmo tempo foi integradora dos ambientes buscando respeitar certas continuidades visuais e tipológicas.
Para a mudança de uso, nas construções existentes foram inseridos outros elementos espaciais através de técnica similar à da colagem. Segundo Philippe Robert, “todo o trabalho sobre edifícios existentes gira em torno dessa dialética forma / função: uma reconversão só pode ser um sucesso se há uma adequação entre a nova função e a forma existente” (10).
A técnica de colagem como entendida por Colin Rowe (11) permitiu convivências, ambiguidades, reciclagem de significados, conexões entre memória e engenho. É interessante lembrar que todas essas figuras de linguagem são reconhecíveis na síntese realizada por Pablo Picasso em sua escultura cabeça de touro de 1944.
Assim, as referências históricas pesquisadas e as referências arquitetônicas permitiram ao projeto a superposição das temporalidades arquitetônicas e urbanas impressas por seus substratos.
As contribuições do conselho do patrimônio
Do ponto de vista histórico e técnico os componentes do Conselho do Patrimônio local estabeleceram parâmetros para o projeto.
Para a definição do projeto foram fornecidos pelo CATP – Centro de Apoio Técnico ao Patrimônio de Ribeirão Pires algumas diretrizes de preservação.
Essas diretrizes reafirmavam a importância histórica do Moinho e, em linhas gerais, solicitavam: a ampliação da área central preservada; a necessidade da valorização do prédio histórico; a garantia da visualização da construção como edifício histórico; a manutenção da inclinação das coberturas de duas águas; a garantia do restabelecimento das relações com o encontro urbano e com a ferrovia; a explicitação clara entre o que já existia e o que foi acrescentado; e o questionamento da mudança do sistema viário.
Em resposta a essas solicitações, apresentou-se ao CATP um conjunto de alternativas para o projeto, sendo redefinidas as áreas de intervenção e a ampliação de área preservada.
Foi também estabelecido que a proposta do novo sistema viário seria discutida posteriormente porque ele não mais seria realizado naquele momento.
A contribuição do CATP foi importante porque o mesmo tornou conhecidos fotos e documentos de plantas antigas que permitiram um maior conhecimento sobre o edifício e suas transformações.
Definiu-se então a configuração final do projeto com a incorporação do bloco dos fundos do corpo principal e a reconstrução dos portais ou fachadas existentes à época do Moinho Mortari.
A definição geral do conjunto e do edifício do Moinho no projeto final pode ser visto nas perspectivas gerais apresentadas.
O processo de construção
A Prefeitura tomou ciência de que o procedimento de projeto deveria ser realizado através de um processo contínuo de assessoria técnica, estabelecendo novas tratativas contratuais que possibilitaram dentro das diretrizes determinadas, uma constante tomada de decisões sobre as ações projetuais e suas relações com o desvendamento das condições das construções. Dessa maneira foram adotados procedimentos de prospecção ao mesmo tempo em que se executavam as obras e detalhes do projeto.
Tal fato permitiu o reconhecimento de um grande número de elementos, detalhes e espaços não registrados nos levantamentos ou documentos existentes. Em averiguações durante as obras, como no descascamento dos revestimentos, foi revelado um grande número de arcos no salão principal indicando a existência de porões e alicerces de pedras. Paredes, antes incompreensivelmente abauladas, revelaram ser vítimas de cargas de silos e tanques construídos no interior dos salões.
Alguns espaços internos existentes e a área dos silos levaram a novas considerações projetuais. Os cálculos estruturais das tesouras foram refeitos pela necessidade de travamento entre as paredes.
A obrigação de manter os frontões antigos conduziu à execuções de novos desenhos cadastrais e modelos para suas reconstituições e reforços.
A recuperação da chaminé, realizada pelo Sr. Gerhard Abeling, foi bem conduzida, implicando numa demolição cuidadosa das paredes que criminosamente apoiavam-se nela. A liberação da torre chaminé permitiu a exposição de seu octógono de base. Posteriormente a chaminé sofreu um tratamento em suas trincas e foi reforçada com cintas. Teve, também, sua porção superior recuperada, aprumada e foi refeito o desenho do acabamento de seu coroamento.
A contribuição do conhecimento e a metodologia do Sr. Gerhard foi de suma importância para as decisões de projeto, registra-se aqui, o modelo que realizou no solo para expor aos pedreiros os procedimentos para a execução e acabamento do topo.
Uma série de procedimentos e detalhes técnicos foram realizados durante a obra. Nesse trabalho apresentamos alguns deles para efeito de registro de algumas soluções.
Inicialmente, foram realizadas orientações para uma cuidadosa demolição das construções, conforme um roteiro elaborado. As demolições se procederiam em grande parte manualmente, sendo definidos os trechos onde os trabalhos poderiam ser realizados mecanicamente. Os tijolos retirados, em bom estado, foram reutilizados na recomposição e complementação das alvenarias, possibilitando uma mínima necessidade de encomenda de tijolos, em dimensões especiais, para a complementação do conjunto. Para a restauração e recomposição das alvenarias foram utilizados diversos procedimentos técnicos. Esses procedimentos foram indicados por meio de cadernos de detalhes com desenhos e orientações.
Para a fixação das estruturas metálicas foram desenhadas diversas ligações conforme necessidade técnicas ou expressivas.
Os critérios técnicos e a linguagem arquitetônica utilizados enfatizaram as relações entre novo e antigo mostrando as intervenções, os desgastes, o registro do tempo e dos usos de uma maneira didática e explícita. O projeto no seu conjunto e as atividades da assessoria executadas, conduziram a recomposição do prédio aos objetivos fixados. Intervir para um novo uso ao mesmo tempo que restaurar para constituir memória.
Algumas imagens captadas no início, durante as obras e ao seu final expõe com clareza os resultados obtidos.
Conclusão
O resultado final, o histórico do projeto e as repercussões já observadas na utilização permitem concluir:
- as ações de restabelecimento da memória urbana são perceptivelmente significativas para a cidade. A redescoberta do edifício e de sua trajetória, quando narradas na proposição arquitetônica e conduzem a reflexão sobre a identidade e memória da cidade;
- evidenciou-se pela pesquisa dos projetos precedentes e pelos processos realizados, a importância de um trabalho coletivo de investigações no qual todas as colaborações técnicas e arquitetônicas devem ser consideradas;
- embora existam precedentes, cada construção tem uma historia peculiar, assim deve-se dispor a cada caso de procedimentos técnicos e metodologias compatíveis com as soluções adotados e objetivos intentados;
- a retirada dos muros das ruas adjacentes e a colocação dos gradis para a ferrovia oferecem aos passantes a possibilidade de utilização dos espaços coletivos. As novas aberturas valorizam o edifício recuperado e refazem a compreensão do significado da ferrovia para sua implantação e desenho da cidade;
- a preocupação do poder público com relação a memória urbana é fator fundamental para a sua manutenção. Nesse sentido, as formas e processos de contratação que tratam os casos específicos das edificações e conjuntos patrimoniais, devem ser aperfeiçoadas.
notas
1
MONTANER, Josep Maria. Arquitectura y crítica. Barcelona, Gustavo Gili, 1999.
2
JUNQUEIRA, Maria Alice Junqueira. Pós-Brasília: rumos da arquitetura brasileira. São Paulo, Perspectiva, 2003.
3
ROSSI, Aldo. L'architettura della città. Padova, Marsilio, 1966.
4
JACOBS, Jane. The Death and life of Great American Cities. Nova York, Random House, 1961.
5
NORBERG-SCHULZ, Christian. The Phenomenon of Place (1976). In NESBITT, Kate. Theorizing a New Agenda for Architecture: an anthology of architectural theory, 1965-1995. Nova York, Princeton Architectural Press, 1996, p. 412-428. Ver também: NORBERG-SCHULZ, Christian. Existencia, espacio y arquitectura. Barcelona, Blume, 1975.
6
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. 5ª edição. Barcelona, Gustavo Gili, 1991.
7
FRAMPTON, Kenneth. Prospets for a Critical Regionalism. In NESBITT, Kate. Op. cit., p. 469-483.
8
KUHL, Beatriz Mugayar. A arquitetura do ferro a e arquitetura ferroviária em São Paulo. São Paulo, Ateliê/Fapesp, 1998.
9
FERRAZ, Marcelo Carvalho. Lina Bo Bardi. São Paulo, Empresa das Artes, 1993.
10
ROBERT, Philippe. Reconvertions. Paris, Le Moniteur, 1989, p. 9.
11
ROWE Colin; KOETTLER, Fred. Collage City (1975) – Excerpt. In NESBITT, Kate. Op. cit., p. 266-293.
referências bibliográficas
CASTELLS, Manuel. O poder da Identidade. Volume II. São Paulo, Paz e Terra, 1999.
LEMOS, Carlos. O que é patrimônio histórico. São Paulo, Brasiliense, 1981.
LYNCH, Kevin. What time is this space? Cambrige, M.I.T. Press, 1972.
PELISSER Alain. Reichen et Robert: architectures contextuelles. Paris, Le Moniteur, 1993.
sobre o autor
Rafael Antonio Cunha Perrone é arquiteto e professor doutor das Faculdades de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e Universidade Presbiteriana Mackenzie.